sexta-feira, 9 de junho de 2017

Testemunha



Era um domingo pela manhã, e o mar brilhava. Mas não brilhava da mesma maneira uniforme e lisa; ao contrário, grandes zonas iluminadas viajavam na superfície ondulada pelo vento, contrastando com a sombra que os rochedos da ilha projetavam n'água. Algas arrancadas das pedras pelo último temporal, rolavam nas marés intermitentes - e as gaivotas, há tanto tempo desaparecidas do céu imenso e branco, surgiam de novo barulhentas enchendo o ar de gritos rápidos e cortantes.

O piquenique fora combinado para depois da missa, e junto à palmeira designada para o encontro - a mais antiga, meia curva, com um tufo roxo de parasitas sobressaindo dentre os espinhos negros - duas das minhas companheiras já se encontravam. De longe, vi os seus claros vestidos correndo, saltando, na estonteante alegria que nos vinha talvez da maravilhosa paisagem.

- Liz! Liz! - gritaram assim que me viram. - O que você trouxe para o nosso almoço?

E, sem esperar resposta, puseram-se a dançar em torno de mim, saltando e batendo palmas.

- Oh, Liz, como é lindo o seu vestido! Como você fica bem de vermelho!

Coloquei no chão o pequeno cesto que eu trazia, misteriosamente coberto por um guardanapo branco. A pequena Sara, mais curiosa do que a irmã, repetiu a pergunta:

- O que você trouxe para o almoço, Liz?

- Figos e morangos - disse eu, suspendendo o guardanapo -, morangos da serra.

- Oh, eu adoro morangos! - gritou Sara, recomeçando a saltar.

Colocado o cesto junto às outras provisões, tudo bem abrigado sob a palmeira, fomos ver as raridades que já tinham achado na praia: uma estrela do mar, seca e arroxeada, algumas conchas quebradas e duas ou três substâncias gelatinosas, estranhas, frementes, de cor azulada, incerta, que ainda parecia conter os últimos lampejos da noite submarina.

- Cuidado, Sara, isto queima!

- Ui! - fez ela, abandonando violentamente a matéria, que rolou inerte ao sol. Um instante ainda quedou imóvel e azulada - depois uma onda mais forte levou-a, incorporando-a de novo ao seu indevassável mundo escuro e líquido.

- Adeus - gritou a pequena Sara para a onda que se retraía -, volte outra vez ao fundo do mar!

Continuamos as nossas pesquisas e, como a espuma nos molhasse, tiramos os sapatos. Maravilhadas, deixávamos que nossas pegadas imprimissem na areia mole. O sol, mais alto, fazia verberar intensamente toda a vasta extensão do mar.

- Não nos afastemos muito - propus eu -, talvez os outros cheguem e não nos encontrem.

De fato, outros companheiros vinham chegando: Eduardo e a irmã, Amanda e Júlia. Ao todo éramos sete e tínhamos combinado aquele piquenique para comemorarmos o início das férias. Oh, depois do longo período de estudos, como estávamos sôfregos por liberdade, ar livre, o vento e as praias! Como a ilha nos pareceu um recanto abençoado, com suas rochas, suas furnas, suas árvores, sua cabeleira verde, nativa e abençoada! Eu então, a quem a longa doença de meu pai retivera tantos meses à sua cabeceira, olhava para tudo aquilo com um verdadeiro sentimento de embriaguez. Uma energia nova despontava realmente no meu íntimo - e isenta de cuidados, tonta, feliz, eu corria de um lado para o outro, sentindo a minha alma se dilatar como se dentro dela penetrasse todo o azul do oceano. Corríamos - e tudo nos servia de pretexto para correr: uma onda maior nos assustava, uma borboleta amarela que vinha do mato e se desgarrava na praia, um avião cortando alto e nítido a imensa placidez do céu...

Sim, lembra-me que Eduardo, de joelhos sobre a erva, comia gulosamente alguns morangos furtados. Sara e Amanda tinham desaparecido ao longo da praia - só suas vozes, agudas e alvoraçadas, denunciavam o fervor das primeiras descobertas. Júlia, os cabelos batidos pelo vento, tentava escalar um rochedo demasiado íngreme para suas forças. E no centro de tudo, como um pequeno coração pulsando pela natureza inteira, eu me achava sozinha. Foi nesse instante, exatamente, que vi o homem. Estava um pouco distante e não perdia nenhum dos nossos movimentos. Era magro, alto e, menos do que sua estranha atitude de observação, o que nele me chamou a atenção desde o início foi o chocante contraste que oferecia à paisagem: não havia nada em sua pessoa que lembrasse a claridade e a alegria que nos cercava, ao contrário, vestia-se severamente de preto, e escondia mais ou menos o rosto à sombra de um chapéu também preto. Não sei porque, meu coração se confrangeu, e nesse sentimento havia algo do terror e da emoção com que havíamos contemplado minutos antes a substância gelatinosa do mar. "Talvez seja um doente, um desses tipos tão comuns que procuram o clima hospitaleiro da ilha" - pensei comigo mesmo. O certo é que, sabendo-me observada, minha alegria não foi mais tão espontânea. Corria, corria ainda fugindo das ondas que vinham se desfazer nos meus pés, revoluteava à toa pela praia - mas já agora a figura do estranho me obcecava. Lá estava ele, imóvel, no mesmo lugar. Meu Deus, jamais abandonaria aquela posição?

Pouco a pouco senti que ele exercia certa atração sobre mim e que seus olhos me fixavam de preferência. Quase sem querer, e sem saber porque o fazia, fui me aproximando aos poucos. Vi então que seu rosto era triste e severo.

- Bom dia - disse-me ele, sem dúvida esforçando-se para ser acolhedor.

- Bom dia - respondeu eu, cheia de susto, de receio e de curiosidade.

- Como se chama? - perguntou-me.

- Liz.

- Bonito nome! E vieram fazer um piquenique?

- Sim, para aproveitar a manhã.

Ao mesmo tempo que eu falava, pensava comigo mesma: "É um doente, só pode ser um doente. Nunca vi ninguém tão pálido assim..."

- E que fazem vocês, correndo?

- Oh, apanhamos conchas... estrelas do mar... coisas por aí...

Ele me fitou severamente, como se isto não fosse uma ocupação para uma menina da minha idade.

- Já tem 15 anos? - tornou a perguntar

- Daqui três dias farei...

- Ah! - e não disse mais nada.

Por um momento olhou em torno, como se procurasse meus companheiros com a vista. E de repente, com voz surda e ligeiramente trêmula, indagou:

- Não gosta de flores?

- Flores? Adoro! - respondi.

Então ele fez um sinal e mostrou-me o rochedo mais próximo:

- Ali em cima há uma, maravilhosa...

- Uma quê? - fiz eu, sem compreender.

- Uma flor, uma papoula.

Não acreditei, cheguei a rir:

- Papoulas não dão sobre as pedras...

Ele zangou-se e seu rosto se tornou muito mais sério aidna:

- Está é uma papoula especial... uma papoula azul.

Eu não sabia o que pensar e fiquei olhando-o. Talvez fosse verdade, quem sabe? Sua voz era tão fria e convincente! Como eu demorasse a responder, vi acender-se nos seus olhos um brilho de impaciência:

- Não quer vê-la?

- Quero... mas onde está?

- Por trás daqueles cactos... daqui não se vê.

Sobre os rochedos mais próximos, estranhos e solitários, cresciam gigantescos cactos que o vento do mar açoitava. Naquele minuto, não sei se acreditava ou não que existisse entre eles uma papoula azul - sei apenas que o mistério daquele homem me atraía. Acompanhei-o. Por trás de mim, ouvia as risadas de meus companheiros, que se distanciavam. O homem caminhava na minha frente, curvado, ofegante, como se tivesse pressa. Seus dedos longos, agudos, agarravam-se à rocha como garras. Não tardou muito para chegarmos ao alto - e numa rápida pausa, enquanto respirava, banhei-me na visão do mar, que se descortinava inteiro, soberano, reinando dentro de um vasto espaço de luz e de silêncio. Ao longe, passava um vaporzinho - e lá em baixo, na franja dourada da areia, Sara e Amanda corriam descalças e gritava, deviam ter achado qualquer coisa. Súbito, voltei-me: o homem me fitava com olhos estranhos.

- Onde está a papoula? - perguntei.

- Ali - mostrou-me ele.

Olhei e não vi nada, só os cactos.

- Onde?

Ele se aproximou mais, como para me mostrar a flor.

- Ali, bem ali.

Olhei de novo - e de repente senti uma dor aguda, horrível, atravessar-me o braço. Dei um grito, sem compreender o que fosse e, erguendo-o, vi com espanto que o homem tinha enterrado nele um comprido e negro espinho de cactos.

- O senhor! - exclamei com um soluço, apavorada.

Ele me fitou com olhos de que jamais me esquecerei, tão duros, tão cruéis se mostravam. Ao mesmo tempo que ele se revelava com esse olhar, não tive mais dúvida de que me achava na presença de um louco.

- Amanda! Sara! - comecei a gritar, com um fio de sangue a me escorrer pelo braço.

De um salto o homem se afastou e desceu pelas pedras, correndo. Na fuga o chapéu lhe caiu, ele o apanhou com um movimento convulso e continuou a correr, sem olhar para trás. Vi então que era completamente calvo e, fascinada, acompanhei-o com a vista até que, atravessando a zona de sol, integrou-se na sombra, onde desapareceu para sempre.

domingo, 28 de maio de 2017

Amigos

Algumas pessoas estão nas nossas vidas sem a gente saber de onde vieram. Não me lembro ao certo quando o conheci - como um membro acronológico deste corpo (um braço que a gente usa mas nunca racionaliza a existência). Sempre esteve ali. Mas nos últimos tempos a urgência de uma amizade nos aproximou ainda mais, de forma que nossos pensamentos precisavam ser compartilhados como se armazenássemos o conteúdo de esquecimento do outro nas nossas próprias pastas internas. Nunca lidamos muito bem com o silêncio. Quando não havia o que compartilhar: um vácuo aflitivo. Percebi que eu procurava me manter mais culto sobre os assuntos do mundo só pra poder compartilhá-los. Livros, música clássica, geopolítica, arquitetura, dança contemporânea... E com o passar do tempo a frustração pelos assuntos sem vida me deixava desolado, árido. Já nesse momento percebi alguma perturbação entre nós, foi quando tomei conhecimento que as trevas nunca vem em conta-gotas. O escuro não aceita meio-termo. No inexorável momento de ausência comunicativa, sentados na cama do meu quarto, meus olhos que procuravam alento em qualquer coisa se alinharam ao rosto dele e foi como se pela primeira vez eu visse aquele desenho como uma entidade viva interdependente das minhas necessidades de completude.

Foram os olhos que me chamaram a atenção num primeiro momento. Tinham o formato de uma pequena semente com uma nódoa de galáxia dentro, pequenos e velozes. De concavidade larga e baixa, eram tão escuros quanto a mancha do cansaço que se pusera abaixo de suas pálpebras. Trespassavam a qualidade do sôfrego e misterioso, carregados de segredos que eu invejava conhecer. Talvez eu tenha falado muito de mim... As sobrancelhas se arqueavam, com uma leve falha na extremidade medial, qual uma fenda no gramado escuro. Grossas e firmes, tenazes. Alguns fios revoltos atrapalhando a simetria e lhe conferindo simetria. Na sua expressão facial não era incomum que elas se erguessem, causando pequenos dobramentos na pele acima numa de suas feições mais usuais: a de inquérito. Diminuía a distância entre a região e os cabelos, dando mais harmonia entre as proporções e distâncias do seu rosto. Os cabelos eram violentamente pretos, organizados num corte comedido com um topete dianteiro. Eram lisos - nunca gostei de cabelos lisos demais, não sabia identificar se o brilho era limpeza ou sujeira. Cobriam a parte superior das orelhas, propositalmente, pois tinha vergonha de umas dobrinhas assimétricas que elas possuíam (a falta de assunto de outrora chegou nesse tópico). O nariz era astuto e arrogante, com narinas tímidas mas o dorso proeminente. A boca era pintada num carmesim delicado. O lábio superior ascendia até às fendas em ângulos perfeitamente simétricos, finos; e o inferior era uma meia-lua mais preenchida de carne. Eventualmente ele os crispava mesmo sem ter o que dizer, bebericando a si mesmo com a língua cor de fogo. Os dentes raramente se mostravam. Era natural que ele deixasse a barba crescer, mas nesse momento estava sem ela, gramínea rala e falha, e pude reconhecer algumas pequenas cicatrizes atróficas aqui e ali. Tive vontade de passar o dedo em todas elas. Mas manteve o bigode, o que o deixava com uma expressão de falsa experiência, algo entre o pseudo vintage e o cabo-de-exército. A mandíbula era larga e a parte mais importante daquele rosto. Conferia o sabor do obtuso, ácido, fazendo o mais singelo sorriso de meio-lábio ter a força de qualquer expressão que ele desejasse causar. Arrepios, suspiros, urgência.

Eu não soube carregar o peso daquele silêncio. A situação limítrofe que nos colocou diante do abismo destampou algumas caixas de Pandora, suscitando elementos maculados que eu não permitiria vir à superfície nem se custasse minha vida. Evitava ao máximo sequer racionalizá-los, tamanha a covardia. Já não me preocupava mais em ter o que dizer, me concentrava em controlar a respiração entrecortada quando ele se aproximava, daquele modo cotidiano: sempre mantendo a boa etiqueta e seguindo os roteiros, ser meticuloso que era. Já eu, nunca liguei muito para os ensaios sociais, às mascaras de boa convivência, à mecânica que regia os frívolos. Me isolei entre poesias românticas e músicas tristes, fiz outros planos mesmo sem o menor planejamento de executá-los, e em pouco tempo já não nos encontrávamos com a mesma frequência e havia um timbre de entendimento do fatídico quando nossos olhares se despediam. Fatigados, desiludidos.

A pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Um abraço distante e comovido foi nosso adeus. A certeza de que não nos encontraríamos mais, senão se devotássemos o acaso. Mas também não queríamos nos rever. Na conclusão de que éramos, sim, bons amigos. Amigos sinceros.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Insônia


Sento. O peito dói o coração está doendo e quando coloco a mão é a único grave que há de som nesse quartinho minúsculo. Deito de barriga pra cima. Os olhos ao teto fixo um ponto qualquer uma rachadura preta na pintura branca que não sei desde quando está ali nem quero saber mas continuo olhando continuo olhando fixamente na esperança de qualquer coisa daquilo abrir sair uma aranha qualquer coisa. Deito de barriga pra baixo. A respiração entrecortada porque os músculos definham. Foco na respiração. Uma duas três quatro cinco. O abdome sobe e desce e sobe e desce e desde quando tenho essa barriga tão nojenta? Os pelos em volta do umbigo mais parecem um redemoinho de minhocas no entorno de um buraco tipo aquelas lagartas que só andam juntas e tem uma crosta branca. Ah como sou nojento porco imundo feio gordo sujo fedorento patético. Sujo sujo sujo sujo. Sento. As mãos em garras vão nos cabelos arranhando o couro arranhando as costas arranhando o pulso. A dor é boa. Faz companhia. Sozinho... as batidas cada vez mais velozes como que no clímax de qualquer música e vão cavalgando em vários picos daqueles traçados de coisas do coração mesmo que a gente vê quando é internado. As mãos agora em frente aos olhos molhados tremem muito e quase não consigo focar seguro uma a outra para parar de tremer mas não consigo eu não tenho controle não tenho controle de absolutamente nada e como eu queria ser preso a qualquer tipo de receitinha pra ter alguma coerência ou mesmo um jeito torpe ou qualquer de funcionar. Mas não. Sou essa coisa completamente aberrante que berra que grita pra dentro e pra fora mas ninguém ouve bate no teto no chão na parede mas ninguém ouve. Levanto e pego um copo d'água mas as mãos ainda estão tremendo tremendo tanto que ao levá-lo à boca escorre um pouco de água pela beirada e cai pelo pescoço pelo peito e morre no buraquinho nojento do umbigo. Porra de umbigo nojento. Não sei se estou com febre. Febre eu sempre tive esse suor frio que brota na testa e cada vez que o percebo o coração cavalga mais e mais e mais o que diabos está acontecendo comigo? Cerro os punhos mas não sei exatamente do quê tenho raiva se é da vida se é da morte se é do amor se é do ódio. Deve ser do ódio pois só isso eu tenho. O nariz seco passo por cima do pó que resta ali na mesa mas não há mais efeito. Não há mais efeito! Não há mais o efeito, o feito, o que foi feito? O punho cerrado tem gana tem sangue tem veia tem raiva. Deixo um pouco do sangue no buraquinho do umbigo como se o polegar e o indicador pinçados fossem um conta gotas. Quando o desfiro até a parede num murro oco a dor não liberta mais mas soco uma duas três quatro cinco. As fileiras vermelhas que escorrem na parede vão desenhando qualquer coisa e fico acompanhando o gotejar até o chão querendo que saíssem lágrimas que morressem da mesma forma mas está tudo seco. Soco uma duas três quatro cinco. Uma duas três quatro cinco. Grito de dor de pavor de medo de fúria mas ninguém me ouve ninguém nunca me ouve. Passam por mim me dirigem sorrisos me dão conselhos mas não me ouvem. Não se drogue não fume não beba não faça isso não se desespere não se mate não morra. Mas ninguém escuta caralho! Agora as mãos tremem mais e vejo carne. Vejo sangue vejo vermelho vejo branco e vejo preto. Preto de qualquer coisa meio morta porque já estou em decomposição desde que nasci daquela merda de parideira. Ajoelho no chão em cima da lambança toda porque aquilo é meu me pertence. Produto meu nascido de mim e pertencente a mim e só assim sou capaz de me circunscrever. Me circunscrevo através da dor e talvez por isso só posso me recorrer a ela quando de alguma forma não sei onde estão os limites. Eu só queria conseguir dormir...

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Sol


Nos pusemos diante um do outro com o magnetismo invisível do acaso. Daquilo que tem o agridoce sabor do tinha-que-ser. O encontro enfim se deu, pariu um pequeno incômodo que coça, que se esconde na qualidade do miúdo, desejando tomar conta de tudo. Daí que esse tudo reverberou e desde então ressoa, ressoa em demasia tanta qual pude te desenhar perfeito mesmo eu de olhos fechados e te ler em segredo nas partituras do silêncio, ainda que eu só ande boquiaberto. Vejo - sem olhar - o céu tingido à laranja acima da praia, mas me equilibro no último penhasco de relevo frágil que restou na Terra, bem próximo ao Sol e todos os seus segredos. Você - o Sol. Olhar seu rosto é tão doloroso-misterioso quanto. De forma que talvez me encantei primeiro pelos seus reflexos. Quero chegar lá, mas não sei se mais do que quero querer chegar lá. Na maior parte das vezes só quero querer. Querer querer é sem dor. Não é o veneno da serpente da volúpia que me paralisa, mas o medo da prisão entre suas escamas. De forma que nesse chão esfarelado qualquer coisa pode ser peso, me fazer derrubado. Mesmo o som tranquilo da sua voz estremece. Mais ainda: não posso falar. O grito voaria às nuvens e inevitavelmente morreria porque entre nós há a distância do impossível, e o eu-lírico-poético-simbólico morreria junto. Quase não tenho falado. Eu que nunca fui acostumado à continência dos desejos, que outrora tinha feito pacto de só bradar no idioma da verdade, estou aprendendo assim tão tarde a por as paixões em grilhões e a me esconder em quartos na penumbra da melancolia quando as pernas vibram pra correr a passos largos até você. Mas há a areia, a areia molhada, as ondas e o resto dos oceanos. Dói, como se eu as acumulasse - as paixões - logo acima do diafragma, fazendo minhas respirações viverem pouco ou nada. Apenas o nariz acima da superfície e as pedras de gelo no estômago. Caio. Afundo.

Mergulhado me volto para os meus medos e desejos e traumas e sonhos. Toda a distância entre nós. Me volto ao âmago da minha arquitetura. O incômodo pruriginoso ainda está ali, emitindo tentáculos por entre minhas veias e fazendo morada no corpo todo. Tornou-se um componente. O fundo é escuro e tem cor de trevas, mas nele eu posso gritar que não saem sons. Só bolhas. Amor! Paixão! Desejo! Tesão! Inveja! Ora, que falsa-surpresa, então o incômodo era amor... Quando cristalizado se fez no meu corpo lânguido, boiei novamente, gélido. Os sentimentos só existem para o mundo quando colocados em palavras, mas às vezes a covardia de sermos nosso espelho interior congela as cordas e desafina a orquestra interna. Eu podia ver meu rosto na lâmina d'água. Quando enfim a música se inicia, e minha música tem só algumas notas de um piano velho com uma mulher cantando ao fundo, percebo então que se a música existe, o amor existe. Se o amor existe, existe. Não há necessidade de retribuição para que eu me aqueça com o seu calor. Há reciprocidade numa psicologia torta que me convence pouco, mas está tudo bem assim. Com esse amor tenho o universo, e se eu não erguer nenhuma barreira que projete sombras no meu firmamento, continuarei aquecido e o tempo fará anestesia na consciência da minha insignificância.

Mas ainda que eu possa sorrir e viver tranquilo, a confundir amores com ilusões, terei sempre inveja do céu.