terça-feira, 11 de março de 2014

O parto da fé


A catedral era como a extensão do meu corpo mergulhado na imensidão líquida e intangível do universo. O mármore o vidro a madeira o calcário as pedras e todos os santos vibravam em alguma frequência que eu também estava que eu também vibrava. Lá fora minha vibração era apenas a nota triste fatigada e lânguida do silêncio. E o silêncio que pairava agora era o de palavras doces e suspiros cálidos nas minhas orelhas tão cansadas. As luzes que atravessavam os vitrais e rechaçavam a parede formaram um caleidoscópio que viajava entre todas as cores que viajava entre o tempo o espaço e todas as dimensões da carne enquanto eu me punha ali com os joelhos quase flexionados quase se debatendo ao chão para a cura dos pecados.

Quando ajoelhei e minha pele tocou a madeira senti o meu corpo se curvar mais do que a gravidade era capaz de fazê-lo. Naquele instante todos os fantasmas saíram pela minha boca esboçando qualquer murmúrio de pavor e me contornaram com suas fácies estupefatas incrédulas esdrúxulas maculadas pelo passado que escrevia minha história com o muco do que é podre e expurgável. E entre todos os meus erros as fornicações da carne teciam os mais longos pesadelos que me revelavam os apegos que me acorrentavam à patética condição humana e à patética restrição humana. Eu sentia o firmamento tremular com a energia que se desprendia daquele martírio do algoz que me fui embora eu quisesse no âmago um flagelo ainda mais doloroso e que fosse penoso o suficiente para arrancar de mim quase que meu todo eu que é menor do que sou. Eu confessei ali gritando aos prantos gritando aos santos e gritando aos homens berrando para as paredes que pareciam se mover numa dança de um julgamento crucial que eu queria que aquela mesma luz fizesse estrada por dentro da minha boca para purificar minha alma ou o que é que sofre ali atrás do peito. Eu abri minha boca e deixei que as palavras mais nocivas irrompessem em ondas para que sua liberdade fosse a minha liberdade e então eu pudesse exibir meus dentes outrora sujos de sangue e sujos da tinta vermelha com que se escreve a dor. Eu sofria da míngua máxima que um homem pode sofrer que é a contenção do afeto que coloca em pedestais divinos homens parcos de histórias torpes e índoles ainda mais e se o fiz me vi movido pela carência abissal sexual animal fatal que move todos os passos de todas as pessoas guiando os pés descalços para o inferno particular em que vivemos por sermos cegos à fagulha de luz ao brilho-estrela que se precipita no beijo e no amor.

Eu senti a força de mil homens propelindo meu tronco em direção ao assoalho enquanto outras mil vozes vociferavam em línguas ancestrais mas que o instinto conhecia o coral que regia o meu adeus a minha lástima e meu infortúnio. Instrumentos musicais de todas as eras irromperam dos andares daquele templo compondo a orquestra da minha vida agora morte enquanto borboletas do mundo inteiro beijavam o meu rosto embalando o meu corpo embalsamando minha pele para a metamorfose que eu buscava o nirvana porto final do meu destino. E quando meus olhos se fecharam para a oração finda para a última oração de misericórdia eu pude ver o pranto de todas as mães o pranto de todos os amores perdidos o pranto e desgraça de todas as civilizações e dos dias que se delongam na esteira da penúria que rasga a sola dos pés e faz da nossa estrada um ladrilho escarlate que cheira carne. E então quando toda as imagens se emaranharam num só filme que se repetiu todas as possíveis vezes a história da humanidade apareceu diante da minha consciência como um crepitar insignificante produzido pelas infinitas engrenagens que dão movimento aos retalhos da fé.

O tempo movimentou diversos de seus filhos até permitir que meus novos olhos nascessem e contemplassem por detrás dos meus ombros não mais cansados duas sacramentadas asas brancas que ruflavam alvas penas e produziam um vento de diamante um vento que era corrente de paz esquecimento e perdão. A catedral se esfarelou em inúmeros fragmentos de pó enquanto eu me despedia com a estranha postura qual a de um bebê que deixa o útero sem temer chorar.