quarta-feira, 11 de julho de 2012

Caleidoscópio

Os olhos já negros de Vítor iam ficando cada vez menos translúcidos enquanto o vapor quente da janta turbilhonava pelas bordas dos pratos, até não haver mais reflexos na íris opaca. Muita salada, pouco do resto. Sua irmã mais nova o observava com a costumeira faceta de preocupação, que concentrava o enrugo dos lábios em um dos cantos da boca, geralmente o esquerdo. Como se ali estivessem contidas uma imensidão de palavras de apoio que jamais seriam ditas. Soaria impróprio fazê-lo naquele momento, de frágil etiqueta familiar. Derrotada pela inércia da ocasião, voltou-se para seus próprios pensamentos, em lúgubre silêncio.

Quatro pessoas compunham a mesa redonda que guarnecia a copa de poucos móveis e paredes róseas. Beatriz, a mãe, sentou-se por último, após distribuir as panelas pela extensão de madeira, e então dirigiu um sorriso plácido a sua família. Quase um reflexo. A já senhora, em sua idade de meio século de beleza sustentada pela austera vaidade feminina, exibia um vestido longo com folhas mortas de outono em fundo branco, que de certa forma contrastava com seus cabelos cor-de-topázio, espiralados até a cintura. Os lábios finos e ofídicos estavam enegrecidos pelo resto do cigarro de outrora, e quando se descolavam a abertura era tão tênue que se poderia esperar um suspiro, mas a voz era rouca e firme:

– Bernardo, coloque um pouco de suco para mim, por favor? – pediu ao namorado, indicando a jarra com um elevar impaciente de sobrancelhas.

– Claro. – acenou, enquanto a servia sem delongas. Sua barba desordenadamente crescida era uma evidente tentativa para que superestimassem sua idade. Os fios eram grossos em demasia e se voltavam para todas as direções, sendo uns mais desgrenhados que outros. Ainda assim não preenchiam dois rastros de pele ao redor da boca que permaneciam nus, mas que logo encontravam o fim ao desembocar no gramado alto que forrava o pescoço. Uma vez e meia mais alto que sua companheira, detinha gestos atabalhoados que porventura quebravam xícaras ou destruíam porta-retratos, dada a musculatura hipertrofiada. Não houve nenhum acidente enquanto o copo recebia o suco de laranja, fato que o fez grunhir em alívio.

– Flávia, Vítor, vocês não querem?

– Eu já bebi, mãe, obrigada.

A resposta do filho mais velho não era esperada por nenhum dos outros três. Sabendo-se disso, ele limitou-se a fechar os olhos como quem diz que fará o mesmo que se repete todos os dias: beberá, ao fim, um copo d’água. Nada mais. Vítor permaneceu naquele estado de leve concentração por mais alguns segundos, voltando sua atenção para o olfato que sorvia o aroma dos alimentos pelos poros das narinas, a subir pelas narinas, a fazer caminho pelo nariz e enfim se fazer sensação que deságua no âmago. Tão plena sensação! Podia sentir a textura das ranhuras das folhas e engolir uma saliva ácida que imitava o agridoce do tomate, rodela única. O cruel gosto da saudade, e também a saudade do gosto. Os ouvidos percebiam a frequência dos ponteiros do relógio que gritava que esse era o momento certo. O ansiado momento de sua libertação. Apunhalou com as respectivas mãos os talheres, destruindo grilhões invisíveis.

– Eu mesma terminei de arrumar a mala de vocês, enquanto estavam na escola. Partiremos amanhã bem cedo, para chegarmos mais ou menos na hora do almoço. Não durmam tarde, senão ficarão abatidos!

– Para onde vamos mesmo, mãe?

– Para a formatura de seu primo Ítalo, filha. Ficaremos durante três ou quatro dias. Missa, colação de grau e festa.

– Eu sei, eu sei. Estou perguntando a cidade.

– Ah, sim... Maringá, no Paraná.

As palavras atingiam meramente o garoto, fazendo morada numa camada longínqua qualquer de sua consciência. O outro dia parecia tão distante... As engrenagens do tempo giravam devagar, a seu tenro dissabor. O batimento cardíaco culminando em visíveis ondas na pele delgada. Essas engrenagens enferrujadas giravam vagarosas enquanto ele fitava sua refeição, a única ainda intocada. Imaculada. Como se no espaço entre eles dormisse um segredo prestes a ser também devorado. Cúmplices. Havia algo naquela paisagem que era inóspito e que o olhar agora acomodado podia ver: ele mesmo refletido na brancura do prato por trás da salada. Balançou a cabeça com certa força para tirar aquela imagem (que talvez fosse um sinal divino para que ele parasse) de sua frente, aquela horripilante imagem, e o pescoço se moveu de forma tão obtusa que retiniu em alto tom um estalar ósseo. Sua mãe e padrasto se voltaram contra ele, com as testas franzidas em cruas interrogações. A irmã, resignada.

– Tinha um mosquito no meu cabelo.

Era um bom mentiroso, já atestara diversas outras vezes. Mas aquela mentira soou para si tão irônica que quando enfim a classificou assim, o sentimento logo se transfigurou em tão somente e amarga raiva. Aquele era pra ser o seu espaço para mastigar, deglutir, engolir, arrotar, sorrir. Não era o momento para que aquela imagem o perturbasse. Fez uma nota para consigo mesmo: pegaria apenas pratos escuros de agora em diante.

– Coma logo, meu filho, senão vai esfriar!

Comentário estúpido: saladas já são naturalmente frias, ele pensou. A mãe quase não olhava diretamente no rosto do filho e ele interpretava isso como uma forma inconsciente de manter a verdade acumulada em algum ponto cego da retina. Sobre o forro da covardia de quem ama. Ainda assim não a culpava, entendia que negar a realidade era uma alternativa mais cômoda, naquele momento. Ao mesmo tempo, preocupá-la ou deixá-la histérica não iria ajudar em nada a afastar os fantasmas da culpa, do desejo e da imagem. Beatriz também travava lutas com os próprios fantasmas. Diante de um acordo de silêncio e mútua irresponsabilidade, limitavam-se a trocar sílabas fáceis sobre rotina e falsas preocupações.

O garfo já estava tão seco em contato com a pele que quase sentiu ser uma extensão do próprio membro. A penúria haveria de acabar, estava na hora. Desfolhou um redemoinho de espinafre como um mendigo que abandona a penúria. Os dentes trituravam o verde quase não o deixando encostar-se à mucosa. Não era exatamente o sabor do alimento que o interessava, mas o ato de se alimentar. De poder se alimentar. O próprio movimento da boca que abre e depois se fecha espalhava pelo seu corpo um prazer gelado e misterioso, que há muito não obtinha com fontes tão fartas. Algo que vinha de algum lugar abissal dentro de si mesmo que o remetia a suas origens animais. Sua natureza predadora. Comeu com urgência e prontamente encheu o prato de mais legumes e verduras, abocanhando tudo numa ferocidade tamanha que era claramente destoante de seu comportamento anterior. E repetiu o ciclo novamente, intercalando com copos de água. Engolia rápido, pois o atrito de qualquer volume descendo-lhe a garganta o incomodava. O preenchimento tão nefasto, digno de ser esquivado. Mas logo vinha a dúvida: era ele que se alimentava ou aquelas peças se alimentavam dele? Elas entrariam por dentro do seu corpo e ficariam alojadas em algum lugar de pele ou gordura, ocupando espaço. Carregaria algo daqueles tomates para sempre em seu corpo. Não eram muito diferentes de um parasita, na visão de Vítor.

– Crianças, vou recolher as coisas e ir dormir, estou muito cansada. Você vem comigo, Bernardo? – afundou a mão na cabeleira em sinal de impaciência. O grandalhão se levantou, anuiu para a mulher e levou os pratos e panelas para a cozinha, enquanto ela já se dirigia para o quarto de casal onde ambos dormiam. Na cozinha, o som da água corrente regia o fim do jantar, e ele se findou abruptamente. Os passos do padrasto faziam pequenos terremotos no assoalho – Não demorem para dormir porque amanhã acordaremos cedo, ouviram? Boa noite e durmam com Deus! – exclamou, antes que o namorado fechasse a porta do quarto.

– Boa noite, mãe! – os dois responderam em uníssono.

Flávia e Vítor entreolharam-se. A moça, apesar de seus meros catorze anos, detinha um poder de observação tão grande que não raro assustava o mais velho. Mesmo calada ela parecia entender tudo que se passava dentro do irmão, coisas que ele mesmo não entendia perfeitamente ela já conseguia racionalizar, de forma que apenas um olhar cálido era o suficiente para acalmá-lo. Ela raramente fazia das palavras o seu veículo de expressão. Sempre tão serena... Mas, naquele momento, as sobrancelhas caídas da menina revelavam somente piedade e falso contentamento, confirmada pelo aperto no ombro de Vítor, o beijo seco na bochecha dele e a despedida quase fúnebre.

Apagou as luzes quando viu que apenas ele restara no cômodo. E quando a penumbra pairou como um véu instantâneo que engole a luz, uma presença intangível pareceu tocar-lhe a face, bem rente, um toque gélido e fastidioso. Era a culpa. Encostou a testa na mesa mergulhando em revolta com os deuses, sobre a própria falta de poder sobre o próprio destino funesto. Por que não poderia ser da forma como ele quisesse? Por que se descontrolou daquela maneira se já havia prometido para si que jamais comeria daquela forma de novo? Ele arranhava o próprio couro cabeludo enfurecido por ser cárcere naquele corpo que tanto odiava. A falta de autocontrole, além de não ser capaz de frear os impulsos e vontades para ele tão efêmeras despencava qualquer coisa gélida no estômago já tão cheio.

Havia uma desconexão importante entre a mente e o corpo de Vítor, duas entidades que não deveriam ser polarizadas já que possuem tantas interseções. Num desses momentos em que ele não consegue estabelecer uma ponte racional e um diálogo entre a sua imagem corporal e a própria identidade, os atos vão deixando de ser permeados pela racionalidade e se tornam uma série de impulsos que revelam necessidades que ele mesmo não compreende. Desse modo nem sequer se deu conta de como chegou ali, onde todo o sofrimento era exaurido até o fim: em frente ao espelho do banheiro, com o peito despido e uma escova de dente na mão direita.

O espelho era sempre um algoz temível, a verdade na sua forma mais descarnada. Vítor era por muitos considerado um garoto bonito. Os fios enegrecidos e foscos caiam desordenadamente pelo rosto, e geralmente se movimentavam com vivacidade própria quando ele fazia os mais breves movimentos com o pescoço. Sua pele de cera era delicada como um pergaminho prestes a se rasgar, pálida. Todos detalhes eram cravejados profundamente: os olhos eram pedras negras semeadas num solo raso. Globosos e contornados por sobrancelhas grossas e imponentes. O nariz levemente torto se inclinava para cima em austeridade. A boca imitava a de sua mãe, ofídica, mas era carnuda e vermelha como sangue vivo. O queixo pontudo e nenhuma bochecha, como se algo dentro da boca fizesse um vácuo. Descarnado.

Para o jovem, ser bonito ou não ser era um fator pífio em seus dilemas. Ele queria ter um corpo que simbolizasse o que realmente era, a força de sua determinação engajada numa disciplina primorosa em que ele construiria a estrada que o guiasse para o futuro. Dominador de todas as variáveis. E aquele que ele via no reflexo a sua frente, desmesurado e desarmônico, não poderia representá-lo. Passava os dedos pelo tórax lendo a textura de sua pele, intrigado por apenas três das costelas serem visíveis dos dois lados. A clavícula poderia ser mais proeminente, gostaria de poder senti-la em toda a sua circunferência, mas ainda havia algo de gorduroso ali que precisaria ser eliminado. Sentiu na cintura a largura que ele possuía com as duas mãos em pinça. Comprimiu a pele até ser plano e a soltou, na esperança que ela não vibrasse. Vibrou. A bacia também era larga, e a articulação do joelho não era suficientemente exposta na pele adjacente. Em seu pensamento a imagem que ele mais odiava, o corpulento padrasto de braços enormes e peitoral animalesco, estava cada vez mais próxima do que ele poderia se tornar. Uma lágrima de fúria gotejou na pia abaixo de si. Ligou a torneira, levantando a escova de dente. Deixou o som da torrente criar uma ilusão do que ele poderia estar fazendo ali ser qualquer coisa habitual e costumeira.

Pois se ajoelhou em frente ao vaso sanitário como se ali fosse o altar para a sua rendição. Porque os grilhões que outrora desapareceram, voltaram com correntes ainda mais fortes. A purificação dolorosa, autoflagelada, punitiva e libertadora era necessária. Pendulou-se, a ponta austera do nariz quase fazendo ondas na lâmina d’água. Fundo, deveria ir muito fundo. A escova que agora era a sua espada deveria ceifar o mal, primeiramente trazendo-o à tona. Sentiu todas as suas vísceras contraindo, como se gritassem, quando induziu o reflexo do vômito levando o objeto a tocar a parede da garganta. Algo retumbava dentro de si como um clamor pela libertação de toda aquela sujeira que se aglomerava em grumos e drupas e bolores infectados. Em sua concepção, ele não estaria se ferindo, e sim se curando. E enfim o tão esperado som do jato inundou seus ouvidos, enquanto aquela mistura de cores e líquidos com esferas em suspensão se dissolvia lentamente com a água. O fedor já conhecido volatizava. Repetiu o procedimento três vezes até que conseguia identificar o que poderia ser o resto do tomate ou da alface de minutos atrás. Parou quando nada mais era expelido, além da pura saliva cuspida e dos murmúrios de dor. Fechou os olhos, exausto, e ficou consigo por alguns segundos em custódia, ouvindo o jorrar da torneira. Os joelhos doíam e estavam ruborizados. Precisou apoiar naquele altar para se reerguer. Acionou a descarga.

O gosto áspero na boca e o abdome doloroso seriam as marcas para que ele não cedesse a tentação novamente. Para que ele não pensasse que a próxima vez seria a única e que depois ele se privaria, porque a privação precisa ser constante para ser efetiva. Assim pensava...

Quando abriu a porta do banheiro, Flávia estava do outro lado, marejada em lágrimas. Irrompeu até ele num abraço apertado, querendo livrá-lo daquela penúria em que ele colocava a si próprio. Ele permaneceu com os braços caídos, retesado em sua acalentada miséria.

– Está se preocupando sem precisar, maninha. – acariciou a testa dela, dando-lhe um beijo delicado – Vamos dormir, amanhã temos um longo e cansativo caminho pela frente...

Não havia comoção em suas palavras, mas um fastio de inveja. Queria ter aquele corpo ressequido, e também sua despreocupação ignorante de criança.

– Estou indo dormir, Flávia. – naquele dia, portanto, não suportaria mais vê-la.