sexta-feira, 22 de julho de 2011

Quinas



Num desses momentos em que olho para minha sombra e vejo que ela se inclina até você. Foge de mim. O que é isso? Isso é o encontro entre a parede e o teto, que vejo aqui da cama. Esse encontro limítrofe e ao mesmo tempo absoluto de dois planos que se cruzam irremediavelmente. Como nós. Todas as quinas somos nós. Você foi dormir, mas ainda estou sem sono... O vento frio que a janela cospe na minha nuca. Sento.

E há na minha boca o fastio da espuma de palavras que morreram no início do silêncio. A contingência da solidão na madrugada que se demora e se demora e aponta a insônia lá no fim do escuro. E vou sem medo. E os armários abertos. Estampam roupas que nada mais são que retalhos de momentos tantos. De cheiros, martírios, silêncios e suspenses e segredos e sibilos. Da tripulação de inocência carreada por quem ainda desconhece o verdadeiro apego ao amadurecimento da candura de quem se entrega até do avesso. Avesso, onde tudo mais encanta e mais machuca... E nada cicatriza. Avesso que hoje sou eu, e não mais meu avesso. Não fecharei essas portas, para que as lembranças que viajam nas teias do tempo se coagulem na consciência e aí façam morada.

Vejo pelo canto dos olhos o instinto humano e sua busca visceral por respostas que aqui estão, no cubículo do quarto. Ficarão aqui, e ninguém virá buscá-las. Nas minhas têmporas ruborizadas ao bel sabor da memória e sua parafernália orgânica consequente. Na flexão quase involuntária dos membros de quem quer proteger alguém do frio intenso. Esse alguém tão distante, encasulado no confortável sono dos anjos! Esse paradoxo que pinta telas com as tintas do passado, do presente e do futuro nessas fotografias que me roubam a letargia. E também das lágrimas que são tudo que existe e não existe, entupindo veias, coalhando o olhar e então se fazendo cadentes no firmamento do mundo. A evidência clara e abissal da transformação de qualquer coisa em matéria. E da matéria em vida.

Abraço os joelhos e então sou pedra. A pedra que compõe qualquer paisagem que você queira. Dos lugares que quiser conhecer. A pedra também para o descanso. E quando fecho os olhos e as divagações fazem ondas na areia, já não sei se as mãos que me envolvem são minhas ou suas. Quando lentamente deixo que as pálpebras abram as cortinas vermelhas da peça, vejo que na verdade são as minhas. Mas na verdade são as suas.

Dormir... Sem sonhos, pois tenho ânsia de sorver a magia que vejo na realidade. Quero somente um salto nas horas. Adiantar o relógio até o minuto e o segundo em que sua voz fará estrada nos meus ouvidos, aquecendo tudo que encontra. E depois eu penso no café da manhã, nos compromissos. Em respirar.

Você fez da minha alma terra fértil para qualquer coisa. Depois plantou um infinito da mais bela arte: a de compreender o sentido da vida.

Esvaziado e extasiado - obrigado, agora posso dormir.

sábado, 16 de julho de 2011

Escapismo - Caim Castellamare



- Príncipe Caim, com sua licença, a Rainha me mandou dizer que exige pontualidade para essa noite.

A voz de Dolores era sempre uma balada doce. Suas bochechas fartas da gorda que era retumbavam para fora e para dentro da boca abaulando sua pele de cera como um instrumento orquestral. Naquela frase, porém, eu sentia notas de uma ironia ácida gotejada sobre o forro de discrição que sua posição impunha – afinal, minha mãe sempre e sempre se atrasava. E na previsibilidade dessas cordialidades tantas, que nas repetições ensinam, eu já me encontrava devidamente vestido. Ainda assim, assenti respeitosamente. Gostava daquela senhora. Muito.

Senhora e tia. Dolores é bastarda de meu avô. E para não ficar à deriva de seu destino maculado foi forçada a ser minha criadora. Mas parecia não se incomodar. Seus sorrisos de dentes marfinizados eram nada mais que um retrato do paraíso onde vivem os que com nada se preocupam, e apenas gozam da bênção da parcimônia, da ignorância. Sem ser nem por um segundo ignorante, mas um paradoxo espantoso e sobretudo angelical. Sabia muito de história, das cordialidades dos nobres e das engrenagens enferrujadas da política. Quando surgia pela manhã ondulando na fortaleza do próprio corpo, fitava-a sempre na esperança parca de que fosse minha mãe, já que era provavelmente a mais próxima dela em aparência. Quando a questionava, ela dizia num murmúrio vergonhoso que sua irmã tinha a beleza do dia, da tarde e da noite. Era o crepúsculo e o alvorecer. A mesma frase, ouvi durante anos... E nas terras férteis das minhas divagações de criança eu sentia não curiosidade, tampouco orgulho, mas uma frieza no âmago que se configurava num sentimento novo muito próximo do pavor absoluto.

Duas irmãs com destinos tão opostos. Sentia-me inclinado a proteger Dolores já que minha mãe roubara dela não somente toda a possibilidade de poder, mas também a arma mais poderosa que uma mulher poderia empunhar: beleza. Ou talvez as duas coisas estejam intrinsecamente conectadas, beleza e poder. E as raras vezes que a Rainha se dirigia particularmente a mim com aquela máscara cicatrizada na pele, a insensibilidade de suas palavras eram como uma extensa carta sobre a mais sôfrega resistência e toda a amargura do mundo. E a um fascínio secreto e persistente. Mas como podia um abismo tão grande separá-las, se vieram em parte do mesmo sangue? Entendi depois que somos todos feitos de abismos, e são as diferenças que reinam na escuridão que nos controlam e nos completam, e escrevem todos os destinos. Hoje, na ilusão de sensatez do quase adulto que sou, abandono um pouco o sentimentalismo exacerbado de criança e coloco a indumentária da seriedade que faz um homem se impor. Sou príncipe, antes de pessoa. Portanto escondo a piedade em gavetas mofadas.

- Pois então vamos, já está na hora.

Numa reverência plácida, seguiu-me com os olhos enquanto eu saía do cômodo e apenas o estalar dos meus passos desconcertava a monotonia do silêncio. Para depois a cuidadora então me acompanhar.

O salão real era a alguns corredores dali, corredores quase desertos. O tom do mármore que estava em todos os lados, pois tudo era mármore e o mármore era tudo, sempre refletiu sobre meus olhos uma brancura extasiante, longe de tudo que é agradável. Parecia esconder a sujeira, disfarçá-la. Em algum lugar do castelo nascia uma sinfonia triste, nos dedos de algum pianista triste, que retinia nas quinas e nos cantos e debulhava-se nos meus ouvidos, impregnando-me com a sensação da lamúria de sua harmonia de sono e de morte e de silêncio. Passos depois, percebi que vinha do salão real. A música – meu guia.

Encontrei no fim dois guardas que inclinaram o pescoço em respeito. Sorri sem exibir os dentes. A porta escarlate que estava ali dava acesso ao local da reunião. O rangido metálico era o som que precedia minha entrada costumeira, teatral e, aos olhos de alguns e até de mim, cômica. O trompete explodiu num grave ensurdecedor que ocluiu o piano de outrora. As portas se abriram, um qualquer anunciou meu nome e então passo a desfilar tortamente no tapete vermelho e aveludado. Irritante. Meus passos já não fazem mais barulho. Nada faz barulho. Uma mulher que nunca vi antes flexionou o pescoço como se a musculatura cedesse na ausência do som, seu alimento. A pianista. Ela se encontrava um degrau acima de onde as poltronas dos nobres se alinhavam na horizontal. Era bonita, e eu não sabia dizer o porquê, já que sua face era totalmente escondida pela sombra de uma boina de renda, azul e aparentemente feita por um artesão raro em habilidade. Tudo nela parecia frágil. Magra, as mãos extremamente finas e seu único fragmento visível, a boca, não era nada senão um detalhe róseo sobre a pele pálida, mas sem exibir cansaço. Não parecia curvar-se para mim, mas para o piano.

Ah, para quem vive mergulhado nas águas densas do poder, aquilo que é grácil, mimoso e sutil é algo muito além do belo e se transfigura num convite de folha dourada. A uma paisagem de céu laranja-roxo, nuvens livres e vento raso a esfriar a canela, com poças também rasas aqui e ali. Atraente, mas tão distante! Que me faz intocável a tudo, e tudo intocável a mim.

Quando me sentei na grande cadeira dourada a esquerda de duas outras vazias, uma da Rainha e a outra do falecido Rei, notei que a musicista, agora às minhas costas, privara-me de perceber todos os outros ali presentes. Talvez três dezenas de pessoas sorriam para mim na placidez comum daquelas ocasiões. Poucas eu realmente conhecia o nome, a feição, a história de vida. Provavelmente todas mais interessantes que a minha. Retribuí.

- Haveremos de esperar mais alguns minutos, como todos já sabem. Até lá, donzela da música: continue.

Algumas risadas cordiais precederam a nova melodia. Eufórica em demasia, lasciva e lancinante. Convidava-me a olhar por atrás do meu ombro, mas não o faria. Enquanto os dedos da graciosa subiam e desciam cada vez mais rapidamente, o teste se tornava árduo. Ela queria contar sua história, ao mesmo tempo contando a minha por querer. Brotou na consciência a lembrança de Dolores cuidando de um corte que eu abrira em minha própria mão, na tentativa de cumprir a etiqueta dos banquetes e das facas. Tão preocupada, num dos poucos instantes que seu rosto se retesava num franzido completo e paralisado. Enfaixou-me com um tecido branco banhado num líquido qualquer. Mas no seu olhar que sempre se comprimia quando algo estava errado comigo, ela sabia: eu causara aquilo para chamar a atenção de Vêda. E à noite, eu exigia dormir mais cedo para sugar toda a expectativa que era fixar o olhar na porta do quarto esperando que ela irrompesse, nas suas vestes sempre imperiosas, para oferecer um carinho raro, materno. Cada estampido comum da madrugada era um sopro gélido de esperança. Ela não vinha. A tia que surgia. E antes de gratidão, sentia na boca o gosto áspero da raiva contida. Maldita Dolores! E crescendo e vivendo onde os papéis não eram claros - tia que era mãe e todo o resto, mãe que era máscara e nada mais, pai que era defunto e nem memórias -, onde eu encontraria a mim mesmo? Naquela melodia, talvez.

Rangido na porta. O trompete explode ainda mais alto. Breve silêncio. O anúncio.

A Rainha.

domingo, 10 de julho de 2011

Escapismo - Vêda Castellamare


Era de um tecido tão fino, parecia seda! O paradoxo de uma seda metálica. Pendia sobre minhas mãos como se desistisse da própria existência. Bordada sobre si, caracóis disformes, verdes na essência, criavam redemoinhos que viajavam em todas as cores por sua extensão, e preenchiam o que seriam minhas têmporas – tão cansadas têmporas! A superfície bege sofria o dissabor do tempo ancestral que crepitava minha alma fugidia num fogo azul e vermelho, de inverno a verão. Eterno. E era pouco observado naquele caleidoscópio de cores vivas que o transformavam numa abóbada de falsa riqueza, falsa alegria, falso poder. E os redemoinhos banhados num macerado brilhante precipitavam ao redor das narinas, onde pequenos furos me permitiriam a dádiva do respirar. O abismo maior, circundado pela ideia de meus lábios estreitos, não era nada além de uma abertura para o vazio. O vazio de minhas palavras de dor inexprimível, ou de destino insosso, ou até de uma desgraça de sobremaneira, gélida e sem razão. A razão, tão aclamada, mas nada bem vinda nesses tempos. Os olhos permaneceriam em cárcere, haveriam de enxergar por entre as fibras daquele pano, o que não era tão difícil quanto parecia. A imagem da justiça cega, justamente o detalhe que me fazia uma figura tão imponente na corte. E tão frágil na solidão do próprio leito.

Eis minha geniosa máscara! Minha única fonte de liberdade que me salva do pavor absoluto que é ser eu mesma. Fui ao seu encontro, como que oferecendo um beijo, e ela ocluiu cada poro em resposta, colando em mim como um membro que reconhece sua verdadeira gênese. Senti meu cabelo padecendo ao resvalar do vento que zunia pela janela pouco aberta. Os fios de cobre, tão longos quanto as cortinas brancas, debatiam sobre si mesmos. Temendo aos arrepios a previsível mudança de comportamento. Sentada na cama, vislumbrei as montanhas forradas por neve que emergiam no horizonte. O emanar da tranquilidade, tão perto. E intocável. Alguns segundos se passaram... Meu rosto, outrora gélido, agora já podia sentir o rubor da pele que não respira. Era o sinal do dever que chama. Preenchi os pulmões com os ares daquelas montanhas, a única porção delas que eu poderia obter. Levantei-me na imposição de minha alcunha: a impiedosa e justa Rainha Mascarada.

- Cornélia, Liz, Arlene!

Tão logo a voz ecoou no primeiro anteparo, as três fidalgas, identicamente decoradas num longo e denso vestido azul escuro entremeado por fiapos de prata, surgiram com os semblantes pétreos numa reverência deveras teatral. Na face externa da porta, admirei o brasão – o castelo esculpido em mármore e o mar tentando desfazê-lo. A fortaleza que resiste às ondas gigantes, às intempéries. A qualquer coisa! Um nome que perpassa gerações... E vários fardos que morrem com elas.

Das três, que nada mais eram do que qualquer coisa entre a estupidez e a falta de beleza, apenas Arlene me interessava naquela noite. No silêncio salgado na boca que envolve quem manda e quem serve, as empregadas iniciaram seus fazeres noturnos sem delongas. O jantar na corte exigia um preparo minucioso para minha apresentação, sempre tardia, que trazia consigo as desejadas expectativas. Liz, que já empunhava o pente fino em cabo de madeira, alisava meus cabelos com uma força suspeita, segurando o couro cabeludo na altura da nuca. Sentada numa cadeira de mogno defronte ao espelho, eu podia ver seu rosto contrair em cada energia gasta, e aquilo me alimentava num amargo lascivo. Embora não soubesse ao certo que sentimento inundava o coração da tosca moça, podia até sorrir por trás do manto em resposta ao estranho prazer. Mas na honra que ela deveria sentir por ser fidalga pessoal da rainha, se percebia qualquer reação, recolhia-se sabiamente na mesquinhez de si mesma. Eu não precisei proferir uma sílaba sequer, e Liz sabia: reuniu quase todos os fios num coque horizontal, e deixou que em quatro pontos, exatamente simétricos em torno do centro, eles pendulassem livres, chegando à altura da cintura. Apenas um olhar em direção a porta e ela se retirou, não antes de reverenciar-me novamente.

Cornélia trouxe o vinho real, especialmente dedicado a mim, encheu dois cálices fitando-os como quem sente o paladar ser inundado por saliva seca e o gosto só no plano etéreo e fugaz da imaginação. Reverência. Foi-se.

Restou Arlene, negra e de seios mais fartos que os meus. Que os de qualquer uma. Lábios profusos. Olhos, bocas e cabelo também muito pigmentados. Meu antônimo perfeito. Prostrada a alguns centímetros, eu podia sentir o cheiro sujo de seu suor. Nojento.

- Seu marido veio?

Ela assentiu. Arqueei levemente as sobrancelhas como quem ordena a retirada. Ela assentiu. E apenas quando chegou ao limite da porta, virou-se para uma reverência que foi até a metade de altura das outras duas. Fechou a porta, que em menos de dois segundos foi novamente aberta.

O homem que surgiu, de meia idade, de meia altura, cabelos meio grisalhos e alma totalmente corrompida, entrou aos passos tímidos - embora frequentasse sempre aquele quarto. Levantei-me e fui ao seu encontro. Retirei a máscara e senti quase de imediato o toque de suas mãos ásperas analisando meu rosto. No vício e ao mesmo tempo reféns do silêncio, trocávamos nossa intimidade travestida na urgência do tempo que era pouco. As paredes de fato ouvem, haveria mesmo de ser daquela forma. O homem então calculava a textura, os traços, as curvas. Os dedos viajaram por tudo que residia acima do meu pescoço e por onde caminhavam devolviam a vivacidade e o rubor para o meu todo de palidez. E o sorriso quase risível que se desenhava em sua feição alongava-se gradativamente. Como quem perde a inibição num supetão de falsa intimidade, bebeu do vinho que sobrenadava no cálice dourado e vi seus olhos fechados como o convite do paraíso. Aproximei-me o suficiente para que só coubessem beijos ou palavras. Vieram palavras:

- Parece que tudo vai bem, minha rainha! Um resultado notório, além do esperado, eu diria... – a voz morosa num suspiro rouco, excitava-me por trás de minha realeza de obelisco, e eu resistia – Mas continuarei te visitando, se isso não for problema para Vossa Majestade.

Parei de resistir. Despi-me, num ritual costumeiro no nosso pacto particular, e fiquei nua para que ele me moldasse da forma que bem entendesse. Que me tocasse. E vieram os beijos, apascentados em pressa. Virou-me e, por trás, envolveu-me num vestido totalmente dourado, que ondulava sobre si mesmo e no assoalho. O busto escasso bem oculto. Eivado. E soprou ao meu ouvido que eu lhe lembrava o sol, o visitante mais raro. Mas eram beijos frios, que talvez só encontravam calor no terreno quente e desmesurado que Arlene deveria ser.

Antes de Hector me deixar, resguardou um último olhar, silente. Devassada pela névoa de seus olhos opacos, coloquei-me à deriva de um sentimento que eu traduzira como o mais tenro desgosto. Talvez eu não fosse a sua experiência oportuna e primorosa. Encarcerada naquele invólucro de pele. No meio do bramido da porta se fechando na sua cruel despedida, ouvi sua voz de terra infértil pela última vez naquela noite.

- Não esqueça sua máscara.

Sem reverência.