quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Anti-Metamorfose


Não consigo esquecê-lo. Sinto sua pele seu cheiro seu gosto seu gesto sua marcha sua voz entremeada em suspiros. É fina como um sussurro é grossa como um rugido e é fogo e incendeia e até hoje me curvo à janela a única janela no meio do cômodo e quero mesmo é ouvi-la essa voz e senti-la mas ele não está lá e então ela não está lá.

E eu estou aqui. E essa sala é tão quente...

Quente como a voz e a foz dos meus desejos que precipitam no meu busto e eu aperto o meu busto e gemo um pouquinho pra ninguém. E de uma quentura que vem queimando o solo podre das paixões às águas sujas das paixões aos ventos lascivos das paixões. De vez em quando fica morno como o chuveiro que abençoava nós dois nas danças em chamas molhadas de entrega e eu me entregava como um presente (inútil) na sua ausência que viria depois e dançava e éramos um quando éramos dois. E então só faltava sair fumaça de onde é brasa o amor de outrora de onde são cinzas as cartas escritas que agora eu abro e mal leio porque dói. Felicidade dói tristeza dói ciúmes dói ódio dói amor então mais ainda. É quente e dói. Um espelho na sala e me vejo dramática torpe maldita suja puta execrável condenada fadada ao eterno martírio da solidão. Feia. Aqui (e só hoje) é quente como vulcão quente como sopro de dragão e sinto pêlos crepitarem e o tilintar da loucura pulsar minhas artérias obstruir a garganta colabar os meus pulmões a respiração começa a falhar.

Desespero.

Cambaleante eu vou para a cozinha meio tonta meio querendo ficar tonta mesmo já completamente embriagada e medíocre insípida nessa história de gente perdedora. Meus dedos não encostam com firmeza são todos flébeis são como extensões da minha alma tão minguante que em nada se fixa que nada cativa que em nada consegue se firmar porque firmar exige força e não há isso (nem nada) em mim. E na excrescência do já falado desespero escorrego com esses dedos de barro um dois três quatro cinco talvez até seis goles que viajam pelo meu corpo esguio de boneca boquiaberta melindrosa e a quentura se potencializa e o suor é o banho que eu não vou tomar. E o ponteiro vai zombando de minha cara e vai lento sem querer girar direito parece até que caminha ao contrário ou são meus olhos a vagar?

Eu sou a borboleta que perdeu a asa mais colorida e vai rodopiando e derrapando em pleno vôo em círculos em caracóis em redemoinhos que a levam ao mesmo lugar que é o duro do chão o implacável (e eterno) soco da realidade. Pois essa mesma borboleta aleijada quando casulo se fixou numa árvore hostil e foi comida foi tragada foi decomposta por outras lagartas famintas que ali mesmo defecaram numa cena risível tal qual patética. E os restos o vento dissolveu na extensão infinita dos ares de amarguras e asperezas até mesmo avarezas de sonhos estúpidos que eu ou o casulo ousamos sonhar. É difícil respirar. Era difícil respirar quando lagarta mesmo antes de casulo num rastejo em meio à bosta da minha vida decomposta que eu insistia em comer de novo nesse calor de deserto que é a fornalha dessa sala. E ao suor juntam as lágrimas lágrimas de lagarta manca que se afunda e se entristece eu me entristeço eu padeço nessas águas que não são as dele que eu sonharia em beber.

Mas são as únicas em que posso fenecer e então com toda a força que me resta das palavras das letras das linhas desse livro fino desse livro pobre e que ninguém vai ler do qual se teceu minha torpe vida com toda a força que reúno de minhas lamúrias: choro e choro e choro. E ainda está quente...