sexta-feira, 24 de junho de 2011

Narrador Personagem



Não lembro bem se primeiro em mim brotaram os olhos ou essa gota opaca de consciência. Vieram juntos, talvez. A consciência com uma única imagem. Moldada do barro etéreo do solo das ideias do qual germinei.


A única imagem: um deserto de areia branca e uma tempestade de penas negras, que dançavam ao dissabor da própria loucura (e não do vento) criando pequenos e efêmeros eclipses. No assoalho arenoso e também no céu igualmente alvo.


Soube depois que todas as suas criações começam com um recorte de uma realidade tresloucada. Um misto de fantasia de lugares que nunca foi com sentimentos de infância, juventude e ao resvalar de seus mistérios. Ao visualizar a minha paisagem particular, selei o pacto. O segredo que nos uniria pela eternidade. E ao fim da minha construção eis a sensação que eu teria que devolver: da areia branca e as penas loucas reverberando em seu âmago. E mais que isso, os significados que dormem por baixo. Sei que ele olharia pra mim ao final de tudo com o olhar altaneiro de um criador e exigiria de mim o retorno.


E a gota de consciência dobrava-se sobre si mesma, crescendo em bolhas em grumos em poças e em rios.


E a primeira imagem que se refletiu nos meus olhos foram os próprios olhos. Flutuando defronte a um espelho, para que eu compreendesse minha própria gênese. Ele haveria de estar em algum lugar por ali, mas eu ainda não tinha a voluntariedade de meus movimentos. Então me vi. A íris primeiramente pintou-se de um tom ambíguo entre o verde e o azul. Desmanchou-se em branco e precipitou por fim no negro da treva e do inverno. Ele não me faria diferente, me faria comum como as garotas comuns de dias comuns. Para que me lessem e encontrassem o delírio dos loucos na figura mais patética. E, portanto, em alguma ilha patética dentro do oceano de si mesmos. E seu questionamento tilintava em algum lugar dentro de mim que ainda haveria de ser criado: de que vale a beleza pálida de olhos coloridos se ela sempre tropeça e falece no abismo da inexistência? Lendo-o e, por conseguinte, vendo-me, todos haveriam de ler e ver um pouco de si mesmos. Já que ler é exibir os olhos da alma: o livro de páginas infinitas e de fórmulas complexas que cada um é.


O rosto que se emoldurou ao redor me parece com uma personagem de sua própria vida. Pela prontidão que foi moldado e pela familiaridade que eu não sei de onde vem. Não haveria de estar totalmente abstido de sua própria vida, uma vez que toda sua arte seria em menor ou maior grau reflexo de suas próprias experiências, ainda que modificadas. Conclusões que já me vieram prontas. Talvez devido aos fragmentos de alma que compartilhamos. Mas enfim: uma face pontiaguda, pouco simétrica, de queixo profuso e maçãs inchadas. A boca era quase que uma linha rosa desenhada a lápis na pele morena. Um pequenino nariz e uma cascata de fios espiralados em cor de ferro. Eu não me imaginaria de outra forma.


Ele estava atrás de mim, agora que eu podia vê-lo. Sei que ele não retribuiria o olhar até que todos os seus sentimentos confusos precipitassem numa arquitetura sublime. Que eu ainda não era. Mas era bom vê-lo. Não muito diferente do espelho. A mão esquerda do jovem ancorava a testa como se os conflitos pesassem. As ideias em ebulição que não encontram um meio de explodir para o mundo! Pois ele, o artista que era, dobrava-se sobre a maldição dos pobres sentimentais. Ele haveria de expressar tudo, e nem tudo as palavras abrangem. São criações do homem, o imperfeito homem! As emoções seriam como galhos espinhosos a perfurar-lhe o íntimo que até doía. Então usaria os segredos por trás das criações (as paisagens), os detalhes por trás das palavras, as vicissitudes dos cenários e enredos oblíquos e difíceis. A maldição solitária colocava-o no fim como única testemunha. E talvez por isso ele me criava, como testemunha virtual – minha triste limitação. Mas se ao fim os galhos puderem ser cortados pela proficiência de seu labor, borbulhará na garganta um regozijo também solitário. E por isso tão almejado.


O monitor do computador emitindo a única luz do quarto escuro. Eu não conseguia ler, mas sabia que ali se emparelhava todo o código do meu nascimento, onde se bordava com linhas de seda os retalhos que comporão meu destino. Num supetão desorientado, levantou-se e deixou o quarto. Eu ali, ainda sem corpo...


E na triste cacofonia do silêncio, veio-me um lampejo. Minha primeira sensação autônoma, fruto da liberdade que quase faz de mim uma pessoa. Faria dele também meu, de pacto a contrato justo. O rapaz esguio, crítico e decerto deveras solitário, seria também algum fenômeno dentro de mim. Paisagem?


Uma árvore morta flutuando no ar, as raízes pendulando lentamente.


Com pouca noção do que é vida, eu já sabia: antes que eu fosse a sua tempestade de penas negras, ele me devolveria uma sensação de morte. Morte rápida para alguém que nem sequer sentiu a firmeza do chão, e só meramente levitava. Como a árvore. Entrou no quarto, acendeu a luz e pela primeira vez me fitou. Trocamos um olhar de resignação e de mútuo respeito, que durou a menor fração de um piscar. As linhas de seda se desintegraram. Um suspiro: o retorno não viera. A experiência fracassada, a labuta postergada. Sem encarar o monitor, desligou a máquina. Desapareci – diferente de morrer.


Porque entre suas penas e desertos, me faço imortal.