segunda-feira, 28 de abril de 2014

Anamnese

Bom dia,
Não beba
Não fume
Não cheire
Não durma em horários aleatórios
Não durma tarde demais
Não durma depois de comer
Não coma deitado
Não coma muita fritura
Não coma muita gordura
Não coma bala, refrigerante, doces
Não coma em intervalos longos de tempo
Não se esqueça da garrafinha de água
Não se esqueça do cartão de vacina
Não se esqueça das campanhas anuais
Não se esqueça das medicações
Não se esqueça dos horários
Não se esqueça das doses
Não se esqueça do jejum
Não pode ficar sem as frutas
Não deixe de fazer os exames
Não deixe de caminhar
Não vale menos de trinta minutos
Não fique deprimido
Não se mate
Não fique ansioso
Não tenha medo
Não tenha pânico
Não enlouqueça
Não tenha insônia
Não fique com raiva
Não transe sem camisinha
Não transe com desconhecidos
Não seja promíscuo
Não pode continuar assim
Não pode engravidar de novo
Não movimente demais esse braço
Não exagere com essa perna
Não fique muito tempo sentado
Não fique muito tempo parado
Não fique muito tempo em pé
Não tem esse remédio no SUS
Não atendo aqui nesse dia
Não passo meu telefone
Não lembro seu nome
Não sei sua queixa
Não te entendo

Sobre cutucar casquinhas


Eu cutuquei a casquinha e imediatamente a ferida se mostrou: latejante, circunscrita num poço mais ou menos delimitado por bordas de pele rasgada num fundo róseo. Ela olhou pra mim com aquele costumeiro ziguezaguear de lábios, uma mistura de preocupação retida e constrangimento profissional velado.

- Como foi que se machucou?

Não gostava daquela neutralidade. As pernas cruzadas na grande poltrona vermelha. Apenas um tapete a afastava de mim numa distância menor que dois passos. Ela parecia flutuar. Como se estivesse meditando e algum poderoso monge a ordenasse para responder o que eu precisasse. O cabelo louro escorrido num caracol que terminava abaixo do pescoço era tão organizado que coçava o pedaço mole de pele entre o polegar e o indicador. Viajando em ondas perfeitas, fios paralelamente alinhados, perfeitos, perfeitos demais, ah! Por um momento imaginei algo muito pesado colidindo contra o firmamento daquele cômodo (um vaso de plantas, talvez) e ela se assustando, emitindo um grunhido esbaforido qualquer, como uma pequena galinha assustada, levando as mãos à cabeça e levando a desgrenha àquele penteado plástico e tosco. Ela se recomporia em segundos e não teria vergonha em me alinhar aos seus olhos de neblina, lançando mais uma de suas inúmeras interrogações.

- Eu me cortei com a gilete, me barbeando.

- Ah, sim... E como estão as coisas com a Olga?

- Nós terminamos.

Um esgar vermelho pintou sua pupila ao final da minha sentença. O silêncio se fez, e o silêncio dentro dele, e eu. Abaixei a cabeça para contemplar meus dedos que brincavam entre si, quase violentamente. Eu não responderia a nada que ela não verbalizasse, por mais tangível que a pergunta fosse. Ela pareceu entender isso.

- Onde comprou essa aliança?

- Ah, num lugar qualquer perto do centro. É uma aliança barata, tentei me desfazer dela ontem mas de alguma forma está travada no meu dedo.

- Entendo. E como se sente usando-a sem estar com a Olga.

- Normal...

- Como foi o término?

- Ela queria passar o Natal em Fortaleza. Eu agradeci o convite, mas disse que não poderia sair da cidade. Foi assim.

- Ela não o questionou?

- Sim, milhões de vezes...

- E o que você disse?

- Nada.

- E o que você gostaria de dizer?

- Você sabe.

- Não, não sei.

- Não, não, não! De novo, doutora? Você sabe! Que insistência em me fazer repetir esse assunto toda bendita vez que eu venho aqui... O que eu gostaria de dizer!? Gostaria de dizer que tenho uma irmã esquizofrênica que está perdida pelas ruas e que ainda tenho esperanças de revê-la. Gostaria de dizer que eu tenho medo de gastar dinheiro e um dia minha irmã precisar. Gostaria de dizer que não posso contar com os meus pais para me dar nenhum tipo de auxílio e, muito menos, para amparar minha irmã. Gostaria de dizer que eu também tenho medo de delirar e toda porra de voz que eu escuto eu fico pensando que pode ser alucinação. Gostaria de dizer tudo isso, assim bem gritado, entende? Está feliz, agora?

- Você está?

- Falar ou não falar isso, pra mim, tanto faz.

- Então por que você me disse?

- Porque é seu trabalho me ouvir. É pra isso que eu te pago.

Não surtira efeito. Ela apenas transportou o par de mãos cruzadas para o outro braço do aposento. Curvou o tronco, inclinou-se até mim, ajustou os óculos de armação retangular na origem do nariz e crispou os lábios. Eu nem sequer tinha tempo para sentir remorso, mas ela podia me ler como a um livro escancarado. Parecia aceitar meu pedido de desculpas inerte nas partículas da minha mente cuspidas pelos meus olhos.

- Você não pretende se relacionar com nenhuma mulher?

- Tenho me relacionado. Com várias. Eu vou levando dessa forma, é como eu vejo que é possível lidar.

- E, pelo visto, está lidando muito bem...

Meus punhos cerraram como se tivessem vida própria. Levantei-me, num supetão desordenado que quase me presenteou ao assoalho, mas ainda capaz de dirigi-la meu olhar mais odioso.

- Qual é, doutora. Ironia? Que artimanha mesquinha, mesmo pra você! Eu achei que seu objetivo aqui era me ajudar. É assim que vai ser? Eu sento nessa merda de cadeira, abro o meu coração, despejo meus problemas e tudo que eu recebo em troca é sarcasmo e indiferença?

Ela era capaz de falar sem mover qualquer célula, suspeito.

- Eu não estou aqui para te dar o que você quer, Tarcísio. Eu estou aqui para fazer com que você veja o que você precisa. E o tempo está acabando para você.

- Eu preciso que você cale a sua boca, só isso!

Quando deixei o aposento, dediquei meu último adeus, fitando-a por trás do ombro sem saber se eu sorria ou mantinha a raiva. Acho que fiz qualquer coisa do espectro do ridículo. Em algum lugar ela parecia triste, afinal...

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Áries

Fechar seus olhos com fogo em boca 
Crispar seus lábios com meu grito rouco
Abraçar seu corpo com as mãos em soco
Levantar meu zíper e lá dentro: oco
Cantar o gozo com minha loucura pouca
Crispar seu beijo com minha voz rouca
Dar seu abraço a minha carne solta
Aguardar a noite pela manhã insossa
Estapear-lhe a face, chamar de moça
Marejar suas lágrimas
Quebrar a louça
Plantar o infinito
Alcançar o infinitivo

Amar

sábado, 19 de abril de 2014

Peixes

Não te quero pelo que tens de pleno
Quero o caldo do efêmero
Da qualidade de quem se vai no supetão
Pra que eu possa fantasiar memórias
Sobre sua despedida amistosa e triste

Não te quero pelo que tens de verdadeiro
Mas pelas mentiras que são arte eterna
Pela fuga que me permite voar pra longe
Pra que eu possa roubar de ti
Tudo que você nunca teve
E preencher esse vácuo na alma

Não te quero em hipótese alguma
Mas me quero em antítese contigo
Entre essas quinas e curvas oblíquas
Onde nasceu nosso amor já findo

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Ela


Ela se debruçou na janela do seu quarto, que foi esculpida a frente da janela do meu quarto, como a esperança do beijo impossível. Ela se debruçou, enquanto eu fitava o seu olhar e pude ver que não havia nenhum lugar onde eu pudesse me refletir. Ela vagava com a cabeça de um lado para o outro, cantarolando minúcias sobre as aventuras vividas com um rapaz que acabara de conhecer. Ela, Simone. Simone sofre da contenção de afeto.

Ela dizia sobre o cheiro dele, almiscarado cheiro do paraíso, e como ele conseguia mandar mensagens nos menores intervalos que o tempo tem. Como ele era gentil e diferente de todos os homens porque a chamava de princesa desde o primeiro dia que a conheceu. Como ele lhe dera as mais belas flores, lindas orquídeas, quase imortais. Como ele era bonito, casto, justo... Quase um santo! Ela tão logo disse, trouxe o celular ao punho, acariciando-o com o dedo – acariciando-o. Ela exibia algo de uma inocência treva, ao tecer elogios aleatórios para a figura que conhecera outrora. Ah, como eu odiava essa inocência! Não apenas pelo desejo pulsante que me corre, mas porque havia algo de tão fugaz em seus amores de piscares que me mostrava que a experiência de viver não é nada além de um eterno facear com inícios, que trás o facear com os fins. Não gosto de facear com os fins. Então me agarro a ela, mesmo que apenas nos meus mais solitários devaneios, mas ainda assim contrapondo-a. Encontrei no meu amor a solução para o meu ódio. Que se diluiu em detalhes, no meu sorriso evidentemente enojado, nos suspiros que viajavam nas paredes do prédio. Eu estendi minha mão, o indicador apontando para qualquer coisa que se punha entre nós. Ela sequer notou.
.
Convidei-a para que descêssemos.

Há algo de triste nos ventos de quarta-feira... Afinal, onde é que o vento nasce? Uma melancolia crepitava no quadro que a tinta cinza das nuvens pintava nas ruas e nos becos que fomos caminhando, um passo por segundo, um segundo em cada passo. Com o pescoço inclinado ao chão, me perdi entre as assimetrias das arquiteturas porcas, entre os farelos de alimentos lançados aos pombos e seus dejetos, entre os sapatos dos outros compondo músicas efêmeras, entremeadas pelo som das buzinas, das vozes, da alegria de Simone que trovejava sobre quão exímio ator o seu homem era. Ela também, se equilibrando sobre os cacos de si, do vitral que era e se esfarelava ao longo de sua existência. Seus pés sangravam, ela já comprou todo o desdém do mundo. Ela nunca gostou de atores. Essa frase, ansiosa para se fazer voz, foi impedida pelos meus dentes e o lábio mordido. Qualquer mínima ofensa, mesmo uma onda sonora levemente impetuosa, e ela se esfarelaria por completo. E eu quem deveria segurá-la em minhas mãos, entre os meus dedos, a apertar até a mais doce agonia. Ela enfim se dirigiu a mim, ela não sabia onde estávamos indo.

Eu não sei quem me habita, quem gera o automatismo da minha violência apaixonada. Mas eu lhe agradeço. Pois ali, embalado pelo ruflar gelado de uma chuva grossa, vendo o corpo de Simone todo pétreo, atirada ao chão molhado, a face estupefata, lagrimas... Ali eu pude nascer pela primeira vez. Amarrei seus membros contra os próprios membros e tapei sua boca com minhas duas mãos calejadas. Temporariamente - gosto daqueles lábios de damasco crispados pelo pavor. Pude vê-la se debatendo até a exaustão, como um casulo incompleto e assustado. Eu disse que era o seu facilitador, o advogado de sua metamorfose, o embagador da sua ira, e que ela não precisaria se preocupar. Não fez efeito. Movido por pulsos desconhecidos, derramei o meu escarro mais sujo sob sua face e observei-a se contorcer, meu gozo infinito ao ver o nosso desgosto agora equalizado. Ela era linda... E seu tronco se revirava, incapaz de conter todos os gritos que reverberavam ao lado do coração. Havia amor naquela região, eu bem sabia. No fim, o curso dos meus pensamentos, mesmo girando em trilhas tortuosas, me levava sempre ao mesmo destino execrável: Simone era uma mulher patética. Como era patética! Se a vida dela fosse objeto de arte, seria exatamente aquela montagem que exibi ali. Eu lhe dei o presente divino da revelação. Porque eu a conheci muito além dela mesmo ou de seu homem. Eu a possuí. Eu era o maestro final de sua performance. Bati sinceras palmas pra Simone. E até lhe arremessaria uma flor. Uma orquídea morta.

Quando eu me virei a encarar as ruas mais uma vez, vi borboletas de asas azuis contornando um poste desligado e senti um peso nas maçãs do rosto. Constrição no peito, respiração arfada. Continuar caminhando... É preciso continuar caminhando. Nada me resta. E pude entender que esse era o destino do primeiro aborto do destino.