quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Anti-Metamorfose


Não consigo esquecê-lo. Sinto sua pele seu cheiro seu gosto seu gesto sua marcha sua voz entremeada em suspiros. É fina como um sussurro é grossa como um rugido e é fogo e incendeia e até hoje me curvo à janela a única janela no meio do cômodo e quero mesmo é ouvi-la essa voz e senti-la mas ele não está lá e então ela não está lá.

E eu estou aqui. E essa sala é tão quente...

Quente como a voz e a foz dos meus desejos que precipitam no meu busto e eu aperto o meu busto e gemo um pouquinho pra ninguém. E de uma quentura que vem queimando o solo podre das paixões às águas sujas das paixões aos ventos lascivos das paixões. De vez em quando fica morno como o chuveiro que abençoava nós dois nas danças em chamas molhadas de entrega e eu me entregava como um presente (inútil) na sua ausência que viria depois e dançava e éramos um quando éramos dois. E então só faltava sair fumaça de onde é brasa o amor de outrora de onde são cinzas as cartas escritas que agora eu abro e mal leio porque dói. Felicidade dói tristeza dói ciúmes dói ódio dói amor então mais ainda. É quente e dói. Um espelho na sala e me vejo dramática torpe maldita suja puta execrável condenada fadada ao eterno martírio da solidão. Feia. Aqui (e só hoje) é quente como vulcão quente como sopro de dragão e sinto pêlos crepitarem e o tilintar da loucura pulsar minhas artérias obstruir a garganta colabar os meus pulmões a respiração começa a falhar.

Desespero.

Cambaleante eu vou para a cozinha meio tonta meio querendo ficar tonta mesmo já completamente embriagada e medíocre insípida nessa história de gente perdedora. Meus dedos não encostam com firmeza são todos flébeis são como extensões da minha alma tão minguante que em nada se fixa que nada cativa que em nada consegue se firmar porque firmar exige força e não há isso (nem nada) em mim. E na excrescência do já falado desespero escorrego com esses dedos de barro um dois três quatro cinco talvez até seis goles que viajam pelo meu corpo esguio de boneca boquiaberta melindrosa e a quentura se potencializa e o suor é o banho que eu não vou tomar. E o ponteiro vai zombando de minha cara e vai lento sem querer girar direito parece até que caminha ao contrário ou são meus olhos a vagar?

Eu sou a borboleta que perdeu a asa mais colorida e vai rodopiando e derrapando em pleno vôo em círculos em caracóis em redemoinhos que a levam ao mesmo lugar que é o duro do chão o implacável (e eterno) soco da realidade. Pois essa mesma borboleta aleijada quando casulo se fixou numa árvore hostil e foi comida foi tragada foi decomposta por outras lagartas famintas que ali mesmo defecaram numa cena risível tal qual patética. E os restos o vento dissolveu na extensão infinita dos ares de amarguras e asperezas até mesmo avarezas de sonhos estúpidos que eu ou o casulo ousamos sonhar. É difícil respirar. Era difícil respirar quando lagarta mesmo antes de casulo num rastejo em meio à bosta da minha vida decomposta que eu insistia em comer de novo nesse calor de deserto que é a fornalha dessa sala. E ao suor juntam as lágrimas lágrimas de lagarta manca que se afunda e se entristece eu me entristeço eu padeço nessas águas que não são as dele que eu sonharia em beber.

Mas são as únicas em que posso fenecer e então com toda a força que me resta das palavras das letras das linhas desse livro fino desse livro pobre e que ninguém vai ler do qual se teceu minha torpe vida com toda a força que reúno de minhas lamúrias: choro e choro e choro. E ainda está quente...

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Dissecação



É bem verdade que me pus naquela situação de uma forma nada espontânea. Fingi um atraso e, sabendo que ele sempre se assentava nos fundos à direita, foi nessa direção que caminhei meio que trepidando, como se não tivesse escolha. Mentira: aquele era exatamente o espaço que eu mais almejaria estar em toda a Terra. Há uma carteira de distância.

Cruzei os braços e aninhei a cabeça, numa postura que poderia ser interpretada como tediosa ou sonolenta. Para que eu pudesse observar, e só observar. E aqui estou. Antes que eu me perdesse em pensamentos fantasiosos e alegres que me erguessem ao reino do amor, percebi de imediato que eu já não estava no meu próprio universo. Nunca antes houve tão pouco ar entre nós dois, e sinto agora que em seu mundo o ar tem uma consistência diferente. Sobretudo o aroma. Não é nada parecido com perfumes convencionais. Nem doce, nem ácido. Eis um cheiro forte, que exerce certa pressão confortante. Tento localizar sua fonte, mas não consigo. Tampouco sei se é de fato um perfume, um desodorante ou simplesmente uma aura natural que ele exala – o que me parece bem plausível. Entrou até pelos meus olhos e me vi abrindo um pouco a boca na estupidez da tentativa de sorver mais daquilo.

Calor...

Meus olhos titubeiam na margem das pálpebras. Hesitando. Eu estou hesitante e só. A exposição dos outros sentidos carrega uma percepção subjetiva mais acolhedora. Mas a visão é muito delicada. A imagem crua da realidade surge para mim uma possibilidade ofensiva em demasia. O meu desejo estando ali, ali poderia estar também minha maior dependência. Minha maior fraqueza. Minha maior utopia. Eu sairia da confortável atmosfera da ilusão para adentrar no que é concreto, mas talvez intangível e, por esse paradoxo, algo lascivamente sôfrego. E mesmo sobrenadando tantas reflexões sei que, como um ímã escravo da magnetização, meus olhos certamente se alinhariam nele. Decido por antecipar o inevitável.

E como jamais amá-lo? Como jamais me atentar outrora para aquela silhueta que surge como qualquer coisa entre o desalinho perfeito e um desajuste coeso? Afundo mais em mim. Era para ser uma dissecação visual fria e precisa, mas veio de dentro, de onde não tenho acesso. Eis diante de mim, a boca. A terra fértil de minhas volúpias. Os lábios quase crispados se contorcem numa diagonal de pouca curva. Nas margens onde eles se encontram há pequenas rachaduras. Ali o superior e o inferior nascem gloriosos. Ambos num tom de carne viva e assim se cora meu rosto. O de baixo mais proeminente, invadido por pequenos sulcos que me levam a bancarrota. Vão desenhando raízes e raios e rotas e rugas. Logo lateralmente ao centro, duas regiões de maior protuberância exibem um pouco do vermelho líquido da mucosa interna - uma fornada de desejo. E duas de arrepios. Volto. Volto porque as portas daquelas terras daquelas volúpias se abrem o mínimo exato para me paralisar. Dois dentes se mostram. Um pouco fenestrados ao centro, mas simetricamente poligonais. Até pontiagudos nos cantos. E o conjunto – boca e dois dentes –, que não era extremamente carnudo ou pateticamente fino beirando o feminino, leva-me ao espasmo da harmonia execrável. Essa era a palavra que borbulhava fria no meu estômago: harmonia.

E a viagem prossegue. Sem exaustão. Só do pescoço pra cima. Não tenho as rédeas de meu controle e as balizas de minha promiscuidade. Portanto, do pescoço pra cima.

Abaixo do queixo a pele é bem rente e isso me felicita. Dá pistas sobre seu corpo... Preciso de força. Ele não pára de exalar esse aroma! Pequenos fios de uma pelugem – absurdamente! – organizada salpicam a região para-bucal em círculos concêntricos na bochecha. Como gramíneas a forrar um relevo acidentado. Acne pregressa, parecia-me. E mergulho em devaneios: na hemiface esquerda uma pequena cicatriz me provoca. Quais seriam os segredos? Quais tipos de frustrações e anseios ele teria? Ah... O amargo interesse pelo pecado, pelo erro, pelo atroz. Por sorver o que havia acontecido por cima daquele relevo e por entre aquelas gramíneas negras. Estar ali e escavar até o subsolo com a mão. Para separar o barro. E quem sabe comê-lo? Sorver os momentos de raiva, de solidão, de punhos cerrados desferidos sem motivo nas paredes que sustentam suas dores. Cuspir na sua privacidade. E que ele cuspisse na minha.

Suas têmporas, que se coloriam de vermelho de tempos em tempos e isso eu já observara de antemão, estavam agora bastante pálidas. Ambas avançavam alguns centímetros da linha dos olhos como se temessem perdê-los dissolvidos. Duas ondulações configuram-no como marcadamente retilíneo. Um belo paradoxo... Onde tudo se afina até chegar ao queixo numa perversa simetria. No queixo, numa serena brutalidade, as linhas de pele vindas de todas as direções encontram o derradeiro precipício. As imperfeições eram como quadros caros numa parede branca: nem sempre apresentáveis, mas, por serem caros, são orgulhosamente exibidos. Eu não saberia dizer com precisão, ainda que eu faça das palavras as armas de minhas guerras e as guerras de meus dias, o que se escondia naquele mapa que o fazia detentor de tanta magnitude. Porque eu não ousaria chamar de beleza, simplesmente. Vai além. Quase sou capaz de tatear uma consonância do que há dentro com o que há fora. Como se a forma que o esculpisse fosse reflexo de sua trajetória. Cada curva, um desalento. Cada cicatriz, uma vitória (a do dedo mindinho, a do queixo resignado). Tatuagens naturais que a alma faz. Vi-o engolindo qualquer coisa e quis ser essa coisa. A entrar sem pensar em onde parar por não querer parar nem para pensar. Para quê pensar se a lógica é amar? E então abro os olhos, de verdade.

E, nessa mesma desgraçada verdade que me põe aqui de cócoras, dou-me conta: não havia ninguém ali. Somos um espelho e eu. Vejo alguém bebericando o fim de seu delírio como um viciado aspira o último resquício da droga.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Seu Desabafo?



Não venha esperando coesão nessas linhas que, sem rigor nem consciência, vou desenhando meio tortas por aqui. Coesão é pra quem a vida constrói histórias bem montadas. Roteiros bem escritos. Coesão, nexo, coerência, estabilidade... Não. E lhe digo que estou embriagado demais pra ordenar minhas lamúrias. Também de álcool. Mas mais daquele cansaço seco, sôfrego, que deprime os ombros e obstrui a garganta sequiosa com respirações cada vez mais entediantes. Um cansaço que vem de lugar algum, e ao mesmo tempo de todos os cantos que posso enxergar. Sem motivos, sem raízes, sem cerne. Simplesmente não sei. Como disse, não fiz pacto com a coerência.

Sei é que esse mundo não tem para me dar o que eu quero. Não está aqui. Não criaram a palavra e nem a imagem e nem o sentido do que minha alma anseia. Talvez eu seja só um deslocado. Tresloucado. Porque não há nos olhos das pessoas a correspondência da brasa que eu queimo viva a cada palavra, das cicatrizes que eu faço em mim mesmo a cada gesto, sacrifício, resignação. Não há correspondência para os amores tantos. Eu sempre quero mais. Pois faço mais, e por mais que eu imagine levantando o escudo do altruísmo, quero sempre mais do outro. E nunca, nunca o tive. E não entenda errado: não culpo ninguém. Tive porventura a falta de sorte de nascer escritor. Escrevo romances, suspenses, aventuras e comédias que não passam de abstração. Eu vejo os pássaros e sinto inveja. Os namorados e sinto inveja. Os ricos e sinto inveja. Os talentosos, os de fato escritores, músicos, atores. Os famosos. Os políticos. Os amantes.

O cansaço que me entope as vias e me impede a reclamação. Passei desse estágio. Se na Terra os símbolos que sustentariam meus ensejos de fato existissem, eu teria a quem culpar. Mas não. E essa mácula faz de mim um eterno descontente e prisioneiro de mim mesmo. E em pensar que as coisas poderiam ser mais simples... Que as pessoas poderiam entregar-se umas as outras sem as amarras das frustrações, do passado. Seria bom se toda paixão louca fosse correspondida. Que todos de fato tivessem a oportunidade de se doar e ver seu íntimo completamente exposto, aceito e respeitado. E por que não é? E me sinto patético. Que tamanho tem a ausência desse amor ao lado de quem não possui nem sequer amparo da família? Cerro os punhos ao me ver parte desse quebra cabeça difuso em que me disponho tortamente. E passo horas e horas e horas dissecando uma única palavra: justiça. Que palavra é essa? Onde está a balança dourada que bagunça isso tudo? Mas o problema não é esse e só: vai mais no fundo, no subsolo, nas profundezas das mentes que acompanham o coletivo e vão se pervertendo, subvertendo. Não há aperto de mão sem a empunhadura da ameaça. Não há favor sem chantagens. E eu me perco. E eu me perco e me perco e ainda assim, vejo cada rosto sibilar um mistério tão instigante que vou, sem hesitar. Degusto cada sonho como uma criança que ganha o mais caro brinquedinho.

E amar essa vida torpe é a mais linda contradição. Essa que me põe de cócoras e lágrimas a cada decepção frequente. Em cada história de amor que não dá certo. Em cada linha esperançosa que eu, escrivão, vou tecendo para mim e que se desmancha e se desfaz, ao mero sabor do acaso. E mesmo assim amo amar e viver. Sonhar. E essa felicidade maculada e profunda que é o combustível de cada passo lento de superação, que ergue os joelhos para outro enfrentamento. E a cada início de batalha - coitado de mim - sei que acredito numa justiça invisível que reserva um segundo de recompensa. Ao menos um! Que permitirá que eu me abstenha da rotina lancinante do trabalho para um dia ver a relva, de mãos dadas com o fruto da minha inspiração, bebericando qualquer coisa e falando de sentimentos. Que permitirá que eu me faça controlador de todas as variáveis da vida e uma pessoa de instabilidade inviolável. Que permitirá que cada palavra de preocupação seja reconhecida e valorizada pelos outros. Que me fará ser amado em plenitude. Que me reservará alguns dias sem tristezas, sem desagradáveis surpresas. Não quero precisar da embriaguez. Quero remontar essas cascas de vidro que me tornei para recompor um vitral mais ou menos coerente. E quase gargalho alto ao ver até onde a insanidade faz sustento. E me sustento aí. Abraço os joelhos e esqueço que sofri, começo a cantar e a balançar a cabeça. O cansaço, posso suportar. E sigo em frente...

Pois o que mais é o amor?

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O Tecelão de Sonhos



Era ela a razão proeminente de toda a minha existência. A razão de tudo. Dez passos distante, e estava bem ali: o verdadeiro motivo pelo qual minha existência fez-se necessária. A experimentação devidamente germinada e crescida. Experimentação profusa de todos os sentimentos em uníssono, reverberando em cada canto das saliências de meu íntimo. O ápice das sensações humanas, da parafernália sentimental que outrora eu me fazia descrente. Pois eu não haveria de me focar naquele caixão, ainda que fosse o berço do cadáver de meu pai, enquanto aquela silhueta de fogo insistisse em me queimar com as chamas de sua beleza diabólica. Diabólica...

Lágrimas, sobretudo as lágrimas dos falsos. E a multidão se ocupava em zumbidos perfumados pelo odor de doce morte, das rosas tantas. Mas eram naqueles lábios mais vermelhos que aquelas rosas que eu me perdia. Nas inúmeras ranhuras que desenhavam infinitos labirintos num terreno de pecado. E eu me perdia.

À mercê de uma erupção nunca antes sentida de inúmeras cenas pecaminosas que salpicavam minha mente, invadiu-me um torpor ludibriante. Uma ou duas pessoas - e até mesmo meu irmão - vieram jogar palavras pífias ao vento e eu respondi com meros arqueares de sobrancelhas, sem o pesar na consciência que a polidez dos ricos manda. Pensaram que minha postura pétrea era o símbolo da tristeza avassaladora que um filho primogênito normalmente sente diante da morte de seu pai. Enganaram-se: minha relação com o morto era de apenas gratidão. Afinal, ele que promovera aquele encontro. E essa indiferença gélida fora outra descoberta do arcabouço fosco que eu era para mim mesmo até então e até agora.

E por minutos permaneci, como uma estátua viva, alheio às perturbações externas. Pois não havia energia para desprender em nenhum movimento expressivo sequer, senão a que eu necessitaria para me manter ali, estático. A energia que me impediria de contrair toda a minha musculatura e ir ao encontro daquela mulher para tomá-la entre os braços e fazer dela minha posse, minha prece, meu prêmio e recompensa. Em pleno velório... Mas energia para desviar o olhar, não - essa eu jamais teria. E ela respondia! Dentro de suas órbitas grandiosas reinavam pequenos círculos azuis, de resplandecência equiparável a um cristal. E todo o meu campo visual precisava se cruzar ali, para compreender a perfeição daquela obra, o que fez desaparecer todo o resto da Terra numa névoa disforme. Só nós dois, encarando-nos como conhecidos de uma eternidade, restamos de pé naquele palco de morte.

Eu não saberia precisar por quanto tempo permanecemos até que cada convidado evacuasse o cemitério. Por quanto tempo aguardamos, aos frêmitos nos corações, o almejado momento de consumar o contato que nossos corpos e almas sentiam sede. Mas, ao perceber que finalmente a polpa de sua feminilidade poderia agora ser degustada pela minha fome, disparei ao seu encontro.

Ela foi mais rápida. Antes mesmo que eu pudesse vê-la se movendo até mim, sua boca sequiosa emaranhou-se na minha, como se almejasse vasculhá-la em busca do sorvedouro daquele êxtase doentio. As mãos afundaram por dentro de minha camisa. Tinha força! Ouvi o barulho do tecido rasgando, mas não ousei abrir os olhos para ver a que trapos minha camisa se reduzira. Abri-los significaria emitir um convite à realidade. O que eu queria era a fuga. A evasão do significante, a ausência de significado. Que fosse quimérico, escabroso, perverso e até nojento! Por minutos, que eu me permitisse fugir das amarras dos preceitos sociais, da boa conduta. E ao passo que meu corpo ia sendo conduzido por aquela silhueta estranhamente gelada, eu mesmo construía no breu da mente o retrato daquela cena: dois maltrapilhos que procuram se fundir para preencher o vazio que são. E por serem dois vazios, quando se unem, nada encontram. Prosseguem procurando. Prosseguem expressando nas manobras corporais as frustrações, as cicatrizes que a auto-piedade habilmente destaca. Depois, percebi que estava enganado: o único vazio dessa triste peça era eu. E hoje, ainda mais. Infinitamente mais vazio.

A ruiva movia-se com selvageria. Ao líquido prazer que serpenteava minhas veias, adicionou o tempero da dor. Dor física. As engrenagens da insanidade giravam rápidas demais. Eu já não sabia se era tarde ou noite, se fazia frio ou calor. E não abriria os olhos. Não conseguia lembrar detalhes do cemitério, se meu pai já havia sido ou não enterrado, como meu pequeno irmão fora embora para casa. A respiração entrecortada da desconhecida eriçava os pêlos de cada centímetro de minha pele. Eu já não sabia o que ela estava fazendo comigo, as sensações adormeciam aos poucos. Um estúpido anestesiado, eu. Era apenas silêncio, culpa e angústia naquele vórtice que me levava ao desespero. E eu não abriria os olhos, agora por medo. Mas o fiz, imberbe no meu último impulso de orgulho. Eis que encontro, finalmente, quando a vejo mordiscando-me abaixo da mandíbula, uma sensação fácil de ser reconhecida: dor. Seus caninos em espículas mergulharam em minha pele. Então, como um final desafinado de uma música triste, surge meu último pensamento enquanto humano: fui tolo em imaginá-la sentimentalmente envolvida...

Quando abri meus olhos novamente – e nesse momento eu não sabia que estava morto -, a silhueta feminina agora nem um pouco atraente exibia uma face de escárnio petrificada, como se fosse parte de sua feição mais natural. Como não reparei antes? Olhava-a, na busca de entender o motivo da absurda dominação que ela outrora exercera sobre mim. Afugentei os pensamentos, concentrando-me no que poderia ter acontecido. Quando sua voz irrompeu nas paredes daquele cômodo escuro, que eu não sabia precisar a localização e nem mesmo há quanto tempo estava ali, senti a ausência de vida em cada tom que sua boca sibilava. E sibilava devagar, bem devagar.

- Você herdará a empresa do seu pai, não é? – desenhou um sorriso de meio lábio e continuou, antes que eu respondesse – A resposta é não. Eu herdarei. Quero todo o dinheiro, e tenho certeza que você será solícito em sua colaboração! Volte para a empresa amanhã, e só trabalhe à noite. – aproximou-se e, num átimo de segundo, colocou-me de pé utilizando apenas uma mão, que me abraçara o pescoço com voracidade. – Eu não irei atrás de você, não se preocupe. Na verdade, você virá atrás de mim...

A marca de suas falanges eram como brasas crepitando. Sentia estar dentro de um corpo que não era o meu, o verdadeiro. E, portanto, não encontrava nele forças para reagir. No fundo, sabia que não poderia. E mesmo diante do que ela dissera, não havia expressão nenhuma de minha parte. Era como se eu desconhecesse o sabor dos sentimentos. A despeito de a dor estar bem latente. Como se eu suportasse o peso de uma casca morta. Gélida. Uma carapaça acinzentada que, naquele instante, estava criando um laço de dependência para talvez toda uma eternidade.

- Virá atrás de mim quando sentir fome.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O Maestro e a Bailarina


Três semanas... Três semanas e eu ainda não havia entregado o buquê.

Pouso meus olhos sobre a plástica capa que o cerceia. Há pequenas gotículas negras... Não digo que acordo. Não durmo. Levanto, porque os feixes de luz me incomodam. Esquentam as ranhuras das sobrancelhas. E quando volto a fitar as pétalas carcomidas, adormecidas na base da janela, deprecio sua aparência ao dar vida a um suspiro quente e lúgubre. Aquelas gotas eram gotas de quê?

O tempo, o frio, o vento... Mesmo na base da janela, o que havia esfarelado a haste verde antes tão rígida? Com espinhos antes tão incisivos... E vem uma lufada de agonia a contrair meus músculos. Uma constrição no peito que dói, muito! Ele precisava viver! E se não estivesse vivo – pois não sei quando um vegetal morre –, só me bastaria fingir. Não vejo com clareza a linha que separa minha vida de uma mentira viva. E com a falsa disposição de um bom mentiroso, tomo-o entre minhas mãos enlameadas de suor e vodka. Protejo-o...

Ou seria o contrário?

Mas o caminho era, embora curto, deveras pedregoso. Comumente, detenho-me no próximo cômodo. Os ombros arqueados, a respiração em frêmitos. O olhar fugidio a buscar abrigo na pequena sala de estar, outrora tão acolhedora. O olhar fugidio que cedo ou tarde decai sobre aquele armário. E decai, e decaio. Eis o móvel de sucupira. Majestoso, imponente, como se me enfrentasse pela milésima vez, já certificado de sua vitória. Ocupava dois terços da extensa parede que se alinhava à janela do lado oposto. Poucas gavetas porque não havia o que esconder: tudo estava bem ali, todas aquelas fotos que costuravam com o tecido de minha alma as memórias que minha mente lutava em afogar nas águas turvas da miséria que eu era e sou. Cerro os punhos ao redor das flores já frágeis e observo, resignado como um mendigo diante do almoço sujo, algumas pétalas pendularem até o chão, cristalizadas na morte. E invejo-as, pela profusão da liberdade que aquele fenômeno representava. Partir e partir-se sem dor. Num silêncio etéreo e absoluto. Talvez... Talvez fosse possível.

Imberbe no cenário florido de suicídio, retorno. Sou desse mundo. Desse mundo sou carne e dessa carne sou dor e dessa dor, prazer. Dor e prazer, miscíveis em cada lágrima desprendida e em cada sorriso de derrota. Pois não consigo desatrelar os motivos que me mantém vivo do sofrimento que minha vida transpira. O sofrer é o único meio de me conectar ao que eu realmente sou. A única forma de me exteriorizar e me reconhecer em meio a tantos desconhecimentos e estranhamentos como verdadeiro controlador do meu corpo. E que aqui me reteso, com os ombros ainda mais arqueados. O inevitável: retorno às fotos.

O que me surpreendia nela era que tudo o que a compunha era dança. Quando me atento ao porta retrato no centro, em que ela se abria toda para um sorriso e enforcava-me num abraço de veludo, sou capaz de vê-la em cada um dos seus movimentos tão penetrantes, ainda que delicados. Seus cabelos, os passos serelepes a correr ao meu encontro. Tudo era dança. E eu: o esquálido maestro. Suzane era a personificação de tudo o que compunha o meu paraíso. E nesses momentos que busco na minha memória seus atributos tantos, odeio-me com fervor por saber que algo dela eu estou perdendo. Que o tempo leva de mim, aos poucos, cada fragmento de sua vida breve. Porque no fundo eu sei do amor, sei que fui inflamado. Mas há algo faltando! Já não tenho certeza se lembro de sua voz. Depois de inúmeras noites esbaforindo-o, e quase bebendo-o, o perfume se esvaziou por completo e seu aroma se foi. Sei que era de flores... Qual? Mas as imagens estavam ali... E jamais sairiam.

Nossa paixão consumiu-se num fogo de chama única. Embebidos na euforia doente que acomete os apaixonados, decidimos por dividir uma casa. Essa casa. Esse espaço que foi do leito de intimidade ao covil de um caixão escuro. E vivemos dias raiados em beijos e beijos... Que secaram ao longo.

Pois a dança findou-se. Quando irrompia pela porta da casa, já não se abria em sorrisos. Já não corria ao meu encontro. Algo fragmentara os alicerces que a sustentavam e a semente desse mal desgrenhava suas raízes a cada dia. E nessas raízes que germinou o cerne de meu martírio: pois nada fiz, nada falei em consolo, nada expressei em preocupação. A mulher que eu considerava perfeita chorava de madrugada, na cama ao meu lado, e nem sequer um questionamento sobre seu estado saíra de minha boca rachada. Eu simplesmente dormia. Ranheta, por completo. Com os olhos titubeando nas periferias, eu tudo observava, mas fulgurava dentro de mim um medo que me deixou estático. E os pensamentos cômodos tantos (Devia ser uma fase. São coisas do serviço dela...)! E as engrenagens do tempo, implacáveis, não me perdoaram.

E a saliva ácida corrói a base da minha língua. Quando me coloco aqui, diante desses portais do tempo que são essas fotos. Portais de lembranças somente minhas, onde somente eu sou responsável por sua existência. O que significa que basta eu deixar de existir, e que a música que movia a dança de Suzane se esgotaria por completo. Não, ainda que fosse essa melodia triste, não podia interrompê-la! E era por respeito – e mais num autoflagelo de pura soberba – que eu precisava entregar aquelas flores. Mesmo mortas. Mesmo ela morta.

Eu não, mas ela liquidou o sofrimento, com uma faca a ceifar seu próprio pescoço. Trêmulo, passei dias vagando como um completo zumbi humano. Fétido como um. Sem sinais vitais expressivos, desejos ou sonhos. O laudo do Instituto Médico Legal alegara que, semanas antes do incidente, minha futura esposa tinha sofrido um abuso sexual. E afundando mais no mar de minha própria covardia, não procurei saber mais nada sobre o ocorrido. Cheguei a me convencer (e ainda penso nisso como algo plausível) de que tudo era um engano.

E desde então, da cama suja para esse cômodo. E nada mais. Das vodkas que me sequestram dessa realidade maldita para os tapas na cara que esse passado aqui desenhado me desfere. E muitas dores que não me causam dor. A pele quebradiça que me reveste já se pode ver margeando os flancos de músculo. Era um nojo pensar em comida. Mas o nojo maior sou eu. Encurvado feito um animal tendo piedade de mim mesmo. E a carne esfarelando. Nos pensamentos mais sórdidos que me circundam, percebo: nunca a amei. E não a amo, ainda. E talvez nunca ame ninguém. Porque todo aquele culto a sua imagem era um amortecedor para a minha consciência putrefata. Pois de nada vale a paixão sem coragem. Já que é, em sua totalidade, fruto de uma obra esculpida pelo tempo para que fique intacta. Eu, maestro patife e escultor torpe, concluí a obra cedo demais. E ao perceber isso, rendo-me:

Deixo as flores padecerem ao chão. E vou junto.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Lábios de Lodo

Eram nos seus lábios de lodo que eu encontrava o sorvedouro daquele torpor. Um torpor de líquido azedo, de gangrena ácida. Que se alastrava por cada palmo de meu corpo. E de tremores extasiados na nuca seca. Naqueles lábios de ranhuras tantas, de digitações tamanhas - como fendas num campo virgem. De carne e carne e deveras carne rósea a ser inflamada pela chama do animal humano. E degustada e sugada até o lúmen da insanidade. Porque não havia mais nada senão aquele momento, aquele instante que alongava os segundos. Mas encurtava a vida. E creio que todos deveriam se voltar para nós dois, observando a proeminência de nossa entrega mútua à essência da qual germinamos. A semente do pecado que nos envolve em sua casca podre, as ramificações do que é errado e circula em nossas veias senis. As raízes do nosso amor que se fazia amor só no silêncio de cada beijo áspero: a traição.

Ali, nos prensávamos numa quina de parede. Eu com a mão espalmada. A parede gelada. A cabeça encurvada. E a postura... A postura de completa resignação, de clemência por misericórdia. Misericórdia divina? Mas se há Deus para todos, há para os traidores. Não fora ele quem nos ascendeu ao pecado? Talvez em busca de minha própria misericórdia, então. E crispávamos nosso lábio num só nó, cego, que não avistava o fim da noite. E ainda assim faltava fôlego. Aquela secura na garganta que precede a dor. Afundei a mão direita e puxei-lhe os cabelos desgrenhados para mais desgrenha: pois eu era uma bagunça só. E talvez eu projetasse ali o meu infortúnio. Eu provava do que eu era. Eu afundava nos mares de sua intimidade para me conhecer. Aos meus limites, às feridas tantas que se esconde por sociabilidade e que são proibidas de boiar e respirar. Às cicatrizes mal feitas e latentes. Latejam rente ao ouvido na pulsação eufórica. Quero que a dor passe.

Amor... Quem virá me falar de amor? De amor puro? Quem virá falar de fidelidade para alguém que nunca foi amado de fato? Quem ousa evocar honestidade sem vestir a carapuça que é essa desgraça de corpo e de mente que me encarceram? Pois que julguem! Que gastem toda a saliva para proferir os mil júbilos de má fé! Fingirei que não me importo. Melhor, perderei mais tempo mordiscando essa boca gorda para não pensar nisso. E para provocá-los e me provocar e provocar essa organização turva que alicerça a existência que já nasce morta brincando de viva. Não sei se nasci pra conveniências, pra coisinhas pré-determinadas e regras inquestionáveis. Se um dia eu me atrelei nesses compromissos, hoje me arrependo. O que tenho não é só para uma pessoa. Há força demais dentro de mim para eu desprender numa silhueta só. Há chamas demais que me queimam para uma pessoa só me salvar. São tantas e tantas cadências. No meu passado – tantas saliências. E reticências. Há em mim um céu de covardia tão lindo. Sou covarde...

E o fim do beijo.

Eis o efeito colateral: o que antes era belo exala um cheiro enojado. Diálogos toscos, frases de prontidão. Eu quero logo é o silêncio profundo. A calmaria que a solidão dá, antes do martírio da consciência. Sentei no chão e cobri os joelhos com as mãos suadas. E a corpulência toda se reduz a uma esferinha de homem. E o suor das mãos sinto também no rosto empalidecido de um medo cru. O suor de um quente culpado. Culpado... E o celular toca:

Eu atrasei no serviço, meu bem. Em meia hora estarei em casa.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Guardanapos - Parte III


- É... – e dois extensos segundos se passaram – acho que nosso lugar no inferno está garantido!

E foi dobrando e dobrando e dobrando até que o guardanapo tornou-se um pequeno quadradinho. Guardou no bolso da jaqueta. A mulher, que seguia o papel se diminuindo nas mãos de cera do homem, não sorriu. Como se nem ao menos tivesse ouvido o que João Paulo dissera. No entanto, ouviu para muito além do ouvido. Retiniu no crânio e borbulhou na mente. E questionou-se sobre inferno, coisa que nunca fizera em vida. Era coisa pra mortos se preocuparem - seu costumeiro ideário. Mas o inferno lhe pareceu tão convidativo! Nele, os pecadores não a mirariam com olhos de julgamento. Com aquela expressão de sobrancelhas mortas e lábios crispados em meia lua que tanto odiava. A piedade estampada nas feições... Afinal, seriam pecadores como ela! Ou, se olhassem de um jeito pedante, ela também poderia fazê-lo. E fez, para a mesa que viu na sua frente, imersa em suas conjecturas fantasiosas. Naquele instante o inferno configurou-se como talvez a única expressão de liberdade que ela poderia sorver. Porém, não pensou em morte.

- Acho que você precisa de cigarros... – murmurou para si, derramando um maço inteiro diante de Gabriela – Fume e diga alguma coisa, moça.

Havia mais tempo. Ele lhe dera mais tempo. Sem cerimônia, fumou a tragadas fortes. Permitiu-se contemplar a paisagem que bordava pequenas linhas vermelhas e costurava o céu, ainda lutando para fortalecer o tom azul tão prematuro. Mais um dia e ela nem dormira. Alguém encerrou a música que se repetira durante horas nos fundos do bar. Uma gorda surgiu, quebrando a dualidade daquele cenário. Lavava pratos sujos sem muita paciência, o rosto carrancudo. O som da água arranhando a louça era a nova sinfonia daquela cena.

- Não tenho o que dizer. – pontificou, com a voz impregnada de uma rouquidão áspera que nem ela mesma se sabia detentora.

- Conte-me sobre como isso tudo ocorreu, então...

A gorda rangia os dentes. Dois barulhos: os dentes e a água. Os dentes e a água... A torrente alternava a vazão numa lógica incompreensível. Gabriela pôs-se a fitar a torneira enferrujada. Como queria um banho! Pensou que talvez pudesse ser como uma daquelas louças. Que debaixo da água, despida de quaisquer pudores acerca de suas máculas, pudesse se purificar. E que a exibição das tantas feridas fosse, em suma, a penitência que a limpeza exigiria. Mas ela teria que lavar a si e a outros. Pois pecados não acinzentam a alma apenas do pecador. Há a vítima. Vítimas. Vítimas que já se foram e que então não poderiam ser simplesmente lavadas numa água sacra. Que glosa ingênua, a que perpassara seus pensamentos... Elas estariam no inferno, essas vítimas? Voltou a caricaturar o inferno. Só conseguia pensar em fogo e cinzas. Desconhecia o cheiro de enxofre... E a simples ideia que ela ouvia no subconsciente fugia por todas as quinas da consciência. Ela não queria pensar. Não queria enfrentar. Uma pergunta que ela nunca poderia se fazer: teria mandado dois filhos para o inferno? E antes de concluir já imaginou um acervo de respostas. Não! Claro que não! Eram apenas fetos, o que poderiam ter feito para merecer o inferno? A voz da mãe ao pé do ouvido: quem suicida, quem nega a vida e a benção de Deus, tem um destino muito claro...

- Mas fui eu quem os matei! – vociferou de imediato, afundando as mãos nos cabelos curtos em impaciência.

A gorda olhou de soslaio. Nem uma nesga de reação - provavelmente não ouvira com detalhes. João Paulo pareceu interessado naquele torpor eufórico, mas ainda assim sorria. O cenho franzido. Gabriela se deteve naqueles dentes pontiagudos... De cobra. E aquela brancura lhe pareceu diabólica. E voltou a desconfiar com o fastio de sanidade que lhe invadia. Não se lembrava direito como aquele indivíduo surgira há algumas horas atrás, tampouco no que o fizera sentar-se ali, tão próximo em sua distância. Ele estava sorrindo. Estático. O casaco de couro curtido era entrecortado por feixes de luz matutina. Havia algo nele de atraente. Porém perigoso: e talvez atraente por isso. Uma identificação entre duas almas corrompidas e malignas. Que mesclava no mesmo caldo sujo pecados inconfessáveis já confessados. Um líquido de que ela poderia embebedar-se e banhar-se e afogar-se sem medo. A purificação pelo avesso. Pois ele deu a ela algo que ninguém jamais ousou. Tempo. Pela primeira vez Gabriela olhava os ponteiros do relógio na parede sem sentir aquela dor inexplicável que ceifava seu peito. E lacerava seus dias com as lágrimas tantas. Não sentia fome ou sede. Senão a fome de liberdade e a sede por misericórdia. Os ponteiros revelavam a iminência de algum juízo final o qual ela não poderia ser submetida. Ali, naquele vórtice ilusório, sentia tranquilidade. E uma vergonha incipiente. Já que ele estava bem ali, o dono de seu tempo, e ela respondia somente com silêncio – sem saber que esse mesmo silêncio era sua maior paixão.

- Podíamos sair daqui. – e apontou para a gorda com uma leve inclinação de cabeça - Não falarei o que houve nesse lugar. – desdenhou, retomando a vivacidade do rosto e dos lábios já fendidos de secura.

- Por mim tudo bem. Eu estou de moto, posso levá-la onde quiser.

- Vamos para a minha casa.

Ele acenou, agora mais sério. Ela, em síncope. Pela primeira vez se fez vítima de um olhar tão penetrante. E cogitou cenas. E só cogitar doía. Sua cama estaria arrumada? O homem colocou-se de pé e pareceu-lhe muito mais corpulento. A feminilidade em ebulição. Fervilhava a garganta.

- Não tem problemas com moto? – um roto cortejo?

- Nenhum – uma talvez mentira.

- Vou buscar a moto e espero em frente o bar, então.

Gabriela concordou. Quando a silhueta de João Paulo sumiu nos corredores, a mulher pôs-se a catar cada cigarro da mesa e afundá-los em sua bolsa com a gesticulação própria de um esfomeado. Aprumou o busto, retocou com cuidado o batom carmesim no vidro embaçado e ensaiou algumas palavras incisivas. Uma risadinha de impaciência consigo mesma. Quando enfim levantou, notou que o companheiro esquecera uma pochete no banco em que estava acomodado. O zíper entreaberto a impediu de ignorar: um revólver.

Pegou a pochete e foi. Como uma ratazana à caça.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Memórias Amargas


- Você não vai ver seu pai, Matheus?

Que chá amargo! Como um rio furioso que dissolve suas margens - minha garganta. Esse chá amargo. Portanto bebo-o devagar. Um gole, três ou quatro pensamentos. Tem muito chá nessa xícara gorda! Poucos pensamentos, na mente vazia. Então os mesmos se repetem. E se repetem... Duas bolachas de queijo. Beberico, mordisco. Queijo enjoativo!

- Todos os seus parentes estarão lá...

Levanto-me num supetão desengonçado. Precisava de música! Uma frequência qualquer numa rádio qualquer. Samba? Até que está bom... Poderia sorver aquele som ao mesmo tempo em que respirava. Inspirava, expirava. O diafragma se contraindo descontroladamente. Sinto como se a quentura do chá amargo fosse incapaz de desfazer a gélida sensação que preenchia meu interior. E que fazia até o chá parecer frio. Além de mim. Tombo a cabeça ao assoalho. Pendulo no eixo encarando meus próprios pés. E pendulo... O samba no clímax. Dois passos pra lá, um passo para cá. Em qual mês mesmo foi o desfile das escolas de samba? Quem venceu? E os passos me levam à janela. E me debruço.

- Vão perguntar por você. Acho melhor desligar o celular.

Lá na rua poucos transeuntes. Há uma mulher com uma sacola grande. Meio verde... Penso que são frutas. Toda em forma de ameba, ela. E atravessa... O sinal também verde, mas não há carros. Nem mesmo um barulho de cidade. Apenas o samba. O cabelo encrespado num coque, posso vê-lo agora que ela vira a esquina rebolando. Seriam mesmo frutas? Vou até a mesa e desligo o celular. Apenas hoje não quero a voz de ninguém. Nada de parentes me aborrecendo. Nada de amigos. Nunca os tive e agora eles aparecem...

- Não vai demorar muito até que venham até aqui...

Mas que merda! Não entendo essa mania de me perseguir! Todos fazem o que querem, no momento que querem. Quem são para me julgar? Meu irmão não dá as caras há anos. A irmã, fugiu o quanto antes para o exterior... Quem são eles para falarem qualquer coisa que seja comigo? Eu já nem ouço mais o samba... Esse ódio fulminante retumbando no crânio. Dor de cabeça... Desgraçadas, essas normas de boa conduta. Volto ao chá. Amargo!

- Mas você passou tanto tempo com ele!

Alguém cala essa voz! Não adianta balançar a cabeça, esmurrar a parede. Já tentei... Por favor, alguém a cale! Imploro! Eu sei que passei muito tempo com ele. Lembro-me muito bem: horas e horas fitando aquelas paredes brancas carcomidas pelo tempo. O assoalho de porcelana refletindo qualquer coisa. Sentava-me na cadeira branca, a olhar para qualquer coisa. Já não tinham revistas antigas que eu já não as tivesse lido por inteiro. E meu irmão cuidando de sua familiazinha de etiqueta. A caçula usurpando algum otário por aí. E eu lá... Meses e meses a fio.

- Tenho certeza que ele gostava tanto de você!

Cale a boca! Cale! Já fazia mais de um ano que ele nem sequer olhava-me no rosto. Não sabia quem eu era. Chamava-me pelo nome de meu tio, de meu irmão. Até pelo nome de minha mãe! Quando as complicações mais sérias surgiam, ele dizia que eu não cuidava bem dele. Que eu era um estorvo, uma despesa que deveria ter sido abortada. Eu olhava resignado, no esforço de não tampar os ouvidos. Com o olhar cético de um resignado complacente. E como aquilo doía! Todos os dias, ao acordar, rezava – mesmo sem Deus e sem fé e sem amor – para que ele ao menos pudesse me abraçar em sinceridade. E eu perdoaria tudo. Bastaria um abraço... Apenas um.

- Essas complicações acontecem...

E o abraço nunca veio! Não conseguia se mover, nem esboçar qualquer reação diante do mundo. Nenhuma lágrima fluiu de meus olhos, eu simplesmente sentava e pegava uma revista. Fingia que lia. De meia em meia hora olhava-o, desconfiado. Esperava uma reação milagrosa. E ao mesmo tempo preferia-o quieto. Em primeiro plano, que a memória retornasse! Os enfermeiros entravam e saiam trocando olhares comprimidos, um ou dois suspiros. Larguei o emprego, a dedicação precisava ser integral.

- E você não queria...

Evidente que não! Quem quer desprender horas e horas de seu tempo para cuidar em vão de uma peça humana que se reluta em morrer de uma vez? E todo momento em que penso nisso, um silêncio tenebroso envolve-me como um manto. Fúnebre em toda a sua extensão. Mas ele era um cadáver vivo, e nada mais.

- Você desejou.

E não posso vê-lo nesse velório, sabendo disso. Ele não me deu um simples abraço que tanto esperei. E eu não o verei. Afundo em amargura, apodreço em azedume. Esse fardo é eterno. Mas, enquanto houve tempo, eu fiz o que pude. E sei que ninguém jamais reconhecerá.

- Tudo bem. Sente-se. Beba outro gole de chá.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Guardanapos - Parte II



Pouco se poderia dizer sobre aquela pequena silhueta. Nada mais que uma pequena silhueta. Crianças: ou são agitadas ou quietas. Bonitas ou bonitinhas. Choram ou não. João Paulo ascendia glorioso em seus cinco anos sem muitas lágrimas, resignado sempre e de traços retos. Já masculinizados.

Mas onde estava o cerne de sua beleza? A fonte era desconhecida... Pois quem o olhava via-se diante de uma presença que era só presença. E só. Contemplava um olhar enevoado que nada focava, mesmo encarando todos que se colocavam diante de si com uma austeridade infantil que não divertia a ninguém - amedrontava. E os sorrisos que pareciam ensaiados, as gargalhadas entrecortadas tão sociais. Assistia aos seus desenhos como que por obrigação, com as mãos repousando nos joelhos. O volume sempre baixo.

Pois entre tudo que seus sentidos sorveram até os completos cinco anos, o silêncio era o que mais o agradava. Acalentava de modo a fazê-lo invejar os surdos. Não precisava de vozes ou de sons, nem mesmo do atrito áspero do ar abandonando as narinas. Necessitava apenas de ouvir, ver, tatear, aspirar e engolir o silêncio e ser engolido por ele.

Os vizinhos poucas vezes o viam com a mãe. Não sabiam se ali morava um pai. A mulher de poucos amigos saía cedo, altaneira. De vaidade escarlate. Os cabelos soltos em ondas vermelhas. E o quadril ondulava pelas ruas, indo. E vindo - só se já era início de noite. Então descobriram que João passava muito tempo sozinho. E da perplexidade do que muitos considerariam abandono, nascia uma maior e corrosiva: nada mais o garoto fazia, senão se colocar no sofá, com as mãos deitadas, simétricas e paralisadas, sobre os joelhos delgados que procuravam crescer para atingir o assoalho. E nada ele parecia esconder, nada parecia se deteriorar em sua realidade solitária. Apenas uma presença, um ponto no universo. Que os vizinhos espreitavam pela única janela que recortava a sala de estar.

Notaram que a mãe engordara, os mesmos curiosos. João Paulo sorriu complacente ao ver o irmão, pouco familiar, ocupando o berço que outrora fora seu. E em semanas a mulher galgava novamente pelas ruas.

No decoro da boa conduta, ofereciam ajuda para mimar o recém nascido. O primogênito arqueava o cenho em agradecimento. Mas recusava qualquer oferta, fechando a porta aberta sempre em ângulos rasos. O bebê chorava alto, espavorido, estridente, agudo, até que o início da noite então chegava. João Paulo entendia: era a ausência da mãe.

Noutra tarde o caçula berrava como costumeiro. Pela janela quadrada uma senhora mais curiosa que as outras sentia o coração titubear ao sentir a imensidão do vazio daquela silhueta pétrea que parecia flutuar no divã. Os soluços agonizantes que engasgavam o recém nascido de minutos em minutos não pareciam exercer nele um frêmito sequer de reação. Mas dentro do garoto as coisas eram diferentes. Tudo queimava, tudo era fogo. Tudo doía e encarcerava e corroia e dilacerava sua paz silenciosa! Crispou os lábios ao perceber que era vigiado. Agora já alcançava o firmamento. A mulher não suportou o olhar etéreo da criança e se foi. Mesmo assim, João Paulo tampou as janelas com as cortinas brancas. E foi até a cozinha. Pegou alguns brancos guardanapos. E se dirigiu ao quarto do irmão.

Entrou a passos calmos. E aquele som que reverberava em cada quina de parede parecia cortar-lhe a pele, ceifar-lhe o espírito. Mas não exibia um gemido de dor. Sequer um suspiro. Passos calmos o levaram até o berço. Já era alto o suficiente para um olhar imperioso, que encontrava o bebê como um raio que despenca em terra virgem. E ele ainda chorava. A boca fatalmente aberta. Bem diante de si, ali, encarando-o. O seu maior e único algoz.

A boca de onde toda aquela torrente de notas destoantes invadia-lhe os ouvidos sem autorização. A boca de lábios encharcados do caldo de saliva e lágrimas. A boca que tampou sem hesitar, com os guardanapos que empunhava. Pressionou-os com uma força que não sabia ser detentor. Que nascera de todo aquele cárcere em que sua alma se alojava. Da chama que o consumia e que fazia dele sua própria pólvora e cinzas. Os olhos da criança vibraram nas órbitas. E depois ficaram estáticos. Retirou-se sobre os mesmos passos calmos.

E enfim foi engolido pelo silêncio novamente. E para sempre.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Guardanapos - Parte I


A cabeça se inclinava para a janela. Preguiçosa. A fumaça do cigarro se misturava ao vapor inebriante do café quente. E embaçava. Mas não tinha o que olhar do outro lado do vidro. Seus olhos, também de vidro - de cacos de vidro – se limitavam a observar a mancha fosca se alastrando em seus tentáculos. Os cabelos de um loiro quase branco estavam eriçados de um jeito pouco feminino. Rebeldes. Lábios róseos, levemente crispados. Rosto pontudo, maçãs sobressalentes. Olheiras profundas... Ela e a janela: foscas. E pela analogia que ela mesma fizera sobre tal semelhança, desprendeu-se um longo e triste suspiro. Voltou-se a xícara, esfriando o café em sacudidelas circulares. Do outro lado da vidraça não era possível dizer se era noite ou início de dia. Do outro lado de Gabriela, encontrava-se alívio ou simplesmente...

Dor?

Havia uma melodia calma que se repetia aos fundos do bar, já que ninguém estava ali para trocá-la. Que se alternava do grave ao agudo como se acompanhasse a velocidade dos pensamentos daquela mulher. Não saberia dizer a quanto tempo estava sentada ali, na última fileira de aposentos, com as pernas diagonalmente cruzadas. Mas tinha passado o suficiente para que a música se impregnasse em sua mente de tal maneira que era capaz de ignorá-la por completo. Como se tivesse sido elaborada unicamente para ser a trilha sonora de seu mais profundo íntimo. Uma canção fúnebre, sem voz.

Espalhados sobre a mesa, restavam seis cigarros. Apenas seis. Eles eram seu relógio, cuja iminência do fim despertava-lhe um medo feliz, capaz de dar vida a um sorriso de dentes à mostra. Qualquer sensação, até mesmo esse medo voraz, era completamente bem vinda. Ela poderia se sentir viva, afinal. Não que se importasse tanto assim. Ao galgar o pescoço de um lado para o outro como uma notívaga, submergia na crua indiferença dos assassinos e fazia daquele mesmo sorriso uma expressão sem vida. Vida, morte, amor, ódio... Já não eram símbolos que ela considerava fundamentais. Interessava o que era fugaz, transitório e prazeroso. Tudo se resumia ao presente momento, pois não existia conforto no passado. Resumia-se ao som que silenciava ainda mais o silêncio. E calava seu peito. Ao tempo. Aos cigarros que desapareciam sem ela ao menos perceber.

Àquele homem...

Uma silhueta que surgiu ao sabor do repentino. Embora parecesse fazer parte intrínseca daquele cenário desde o início. Foi apenas uma troca de olhares, mas Gabriela pôde ver com clareza aquela feição que destoava por completo de todas que já vira. Um rosto ofídico, de nariz puntiforme. Onde dois olhos enevoados faziam cratera. E fremiam de um lado para o outro da órbita como se estivessem sendo traídos. O semblante de um traidor. Ou de um traído.

A dúvida pareceu-lhe sufocante. Com a ponta da língua, molhou seus lábios secos mostrando-o o sorvedouro de sua sensualidade. Uma sedução salpicada de azedume e mergulhada em amargura. E um risinho de meio lábio – falsa provocação. Falso desdém. E dois longos segundos para se sentir completamente patética. Mas que passaram – até a autopiedade era falsa. No terceiro ela ouviu, pela primeira vez, aquela voz que a marcaria por definitivo:

- Posso?

De eco em eco, os fonemas retiniram em seus ouvidos. Acenando em afirmativo, viu-o colocar-se diante de si. Não o fitou. Bebeu mais um gole de café, o último gole, com a face retesada para a mesa e suas cinzas acumuladas. E tudo pareceu prendê-la. Um homem desconhecido, numa hora desconhecida. Num momento onde nem ela mesma se conhecia. Encarcerada nos próprios enleios, arrependeu-se impaciente por provocá-lo outrora. E ele com as sobrancelhas descansando tão calmas... Parecia confortável, quando pegou os guardanapos. Gabriela recebeu dele um, com uma caneta tirada de um bolso de sua jaqueta. Ele detinha o próprio par dos mesmos objetos. Sem entender, mas ao dissabor do tédio diante daquela atitude para ela tão piegas, esboçou um gemido de questionamento.

- Escreva qual é o seu problema aí, nessa folha. E trocaremos os papéis.

Atônita, viu-o curvar-se sem cerimônia para redigir. Aqueles olhos miúdos conseguiram perpassar a sua alma translúcida? Não entendia se ele estava de fato preocupado ou com o mero objetivo de exibir suas próprias cicatrizes. Poderia ser simplesmente louco, também. Mas não aparentava... Ao contrário, seu arquétipo era decerto familiar. Sendo isso ou aquilo, a possibilidade de evasão daquele torpor a fulminou como um choque.

Escreveu, sem controle. Os dedos tremiam numa excitação ácida. Era apenas uma frase. Apenas uma. Mas que a libertava da crisálida em que se alojara. Mesmo que apenas para uma pessoa. O retângulo branco, por segundos, foi como uma dimensão onde ela seria Deus. Que vai criando e recriando histórias e falsas verdades. Que pode apagar o que lhe machuca para desenhar casinhas simples e flores ao lado. Poderia inventar, causar a impressão que quisesse. Estava farta, porém. Diria a verdade. Mancharia de azul aquela superfície com a mais pura verdade da mentira que ela era por completo. O seu resquício de existência seria pintado ali. As consequências de pintá-lo - não importavam. Há muito abandonou as razões da consciência para abraçar o ilógico. O fosco, de contornos abstratos. O que tinha razão de ser, abandonaria. Como abandonou. E regurgitou: essa é a segunda gravidez que aborto.

E trocaram, sem ao menos dobrá-los.

Ao ler o guardanapo dele, foi tomada pela descrença. Na humanidade. E mais ainda nela. Por sua falta de humanidade. Pois foi incapaz de sentir medo ou piedade ou comoção ou até mesmo fúria ao ler: matei meu próprio irmão.

sábado, 26 de junho de 2010

Samanta



É amanhã, o dia do ultimato. Ela virá amanhã. A dona de meus devaneios virtuais virá amanhã. Samanta...

O singelo deslocamento de algumas centenas de quilômetros que ela faria bastava para configurar aquela noite como palco do mais patético teatro de horrores. Sentado na cama, eu, com as mãos sobre os joelhos, penso em algo para pensar. As luzes já estavam apagadas, o pijama colocado. Recolocado. Mas deitar significaria um completo rompimento com a data presente para mergulhar na posterior. Quantos meses eu esperei? Quatro ou cinco... Quatro ou cinco meses de jejum sincero dos envolvimentos carnais. O banquete viria amanhã. E eu me imaginava degustando-o com uma voracidade lenta, como um esfomeado que tem pouco. Por ser pouco. Seria tudo tão mais simples se fosse questão apenas do corpo! No coração, a arritmia de um peregrino desconcertado. E mentiroso. Menti suficientemente bem para viver na mente momentos que eu sabia serem puramente ilusórios. Minhas fotos, minha profissão, meu peso, meu salário. E da sinceridade dessas tantas mentiras que eu me vi escravo. Queria aquele romance, idealizado nas várias juras de eternidade e proteção, e acreditava. Veemente. Deito, de olhos abertos. Há uma única fresta de luz que desenha um raio na parede.

Passo o cobertor por cima da cabeça. Sem de fato enxergar, vejo na escuridão daquele casulo manchas coloridas vagando pra lá e pra cá. De dentro dos meus olhos. Havia ali, e em mim, um clamor por ar puro – que latejava. E pisco, viro, estico os braços, dobro as pernas. O que eu faria com a doçura daquela mulher? Nas poucas vezes que nos falamos por telefone, sentia, em arrepios mornos, a suavidade de sua voz suspirada. Gargalhava sem maldade de sua inocência. Nem sabia como comprar as passagens... Ora, meu sentimento era sincero! Pensava nela, em presentes, em viagens. Na textura dos beijos. Eu distorcia os fatos para concretizar o nosso relacionamento que seria distorcido de qualquer maneira. Pela distância, por Deus ou pelo acaso. Reguei as terras do nosso amor com falsas verdades. E a paixão germinou. E tanto, que sinto medo. A pulsação me incomoda na orelha... Quero ar! Empurro a coberta para o lado. O risco de luz na parede...

E era sempre ela que ligava. Mandava mensagens aos montes. Acordava no meio da madrugada querendo ouvir minha voz. E aquele mel que escorria de sua meiguice me saciava. Era ela, sempre ela... Uma abelha sem ferrão. E foi ela que tocou na palavra amor pela primeira vez, com uma timidez preguiçosa. Amor? Mudo de posição. Ouço um gotejo tímido na cozinha. E me chamava de lindo, de príncipe, de tesão. E como ator principal vesti a indumentária de cavalheiro que eu não era, de uma maneira tão exímia que eu mesmo passava a duvidar – o que eu era, afinal? Mas há um espelho, cruel em sua realidade, logo em frente à cama. Eu o miro, e ele me vê: uma massa disforme de gordura. Uma quase esfera, amebóide. Patética. E goteja, e goteja. Se era amor, poderia ela entender essa fragilidade? Decerto, eu não aceitaria se ela fosse, na realidade, metade do que eu sou. Essa paixão egoísta, minha amargura. Era a esperança que sondava furtiva as minhas lancinantes conjecturas, a esperança que ela perpassasse minha aparência. E o que tinha depois? Uma mentira. Uma gorda e asquerosa mentira. Não queria chegar ali, na verdade despida, e só ali conseguia ficar. Está frio, e suo por todos os poros. Fome. E goteja. E goteja.

A torneira estava devidamente fechada. Como já estava na cozinha, aproveito para comer mais dois pedaços de pizza. E durmo.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Bianca


E entre desventuras e dissabores, aqui estou. Afogada em amarguras. Entre essas cartas, de tantas cores, de tantos tamanhos. De tantas palavras. Formatos e formatações e épocas distintas. Mas a mesma grafia miúda. Em meio a essas folhas de letras já mortas espalhadas como um vitral sobre a cama. Fico de pé, eu: a tecelã desesperada. Diante de uma ruína que exerce um tipo magnético de fascinação. Meus olhos se estatelam de estupor. Mesmo já morto, o acervo. Mesmo tendo seu conteúdo extirpado pela mentira. Era isso o que eram: mentiras, e só! Extensão de uma alma que imprime sua fugacidade na escrita. E eu de pé, na tentativa de remendar aquelas migalhas do tempo de minha vida. Os cacos de vidro. Como, se eu nem sequer conseguia tocá-las? Então me dobro sobre a nuca e pendulo os olhos da cama para o teto. Para que as lágrimas resvalem pelas bordas, sem tocar os lábios. E no cárcere do silêncio eu me calo de boca aberta, mas me ocorrem lembranças...


Era um poeta em sua essência de ser, o Roberto. E se não houvesse um veículo para escrever seu turbilhão de ideias, recorrente em demasia, ele recitava ao mundo, ainda que meio a esmo. Numa faceirice... No modo de falar era trovador, vozeirão grave. Espécime raro de prógnato. Imponente em sua aparência esguia e por pouco mais baixa que a minha. Debates e debates e debates, até esgotar a fonte etérea de seus argumentos. E empurrava os óculos de aro pobre encimando o nariz. Irritado com a futilidade de nossa juventude e seus ídolos de barro. Lastimado pela supervalorização das aparências nos diversos julgamentos das pessoas, e se empertigava até com os mais silenciosos. Até nos olhares furtivos. Decerto sabia bem de sua pequenez como mero homem, mas elevava-se mesmo sem intenção. E queria mudanças. Também poeta pelo amor, que surgia em erupção em cada singelo afeto. Nos mimos diários, no telefonema preocupado quando eu me atrasava de propósito. Quando assentia compreensivo a cada tropeço meu, nos ciúmes e carências de mulher. Poeta pela vida: ao sorrir pro céu, pras crianças na rua. Ao chorar o desamparo da mendicância. Como eu queria esquecer essa benevolência toda! Seria injusto, mas que Deus me desse espaço para a injustiça! Ele me dizia ser “a” musa – e se negava a dizer “minha”, por maior que fosse meu esforço -, e eu não conseguia conter o rubor das têmporas. É bem verdade que em sua presença o que mais dava em mim era ficar vermelha! É o vermelho a cor do amor? Ou a dor dele que é? Pois permaneço.


A modéstia me impede de ir muito além, mas sou musicista. O que talvez me faz melódica até a raiz da palavra. E da forma como minha desenvoltura diminuta permitia, eis meu sorvedouro: amava-o em cada sibilar de nota, muito embora me incomodava dividir esse calor com o amigo violino. Queria algo que fosse inteiramente meu, nos enleios de minha falsa candura. Que existisse em minha função. Minha. Se devaneei, agora retorno a mirar a cama. Com a incisão de quem quer respostas.


Pra isso preciso recolocar os fatos.


A cidade entrou numa grande balburdia quando uma missão artística estrangeira viera selecionar alguns jovens para o aprendizado na Europa. Adolescentes ensaiavam apresentações perfeitas e sonhavam os ares de fora. E lá fomos nós, um alicerçando a auto-estima do outro. Sem fazer planos. Sem exigir nada. Ele com sua literatura e eu com minha música. Passei no teste e recusei a proposta, resoluta. Aleguei um motivo não de todo uma mentira: a superproteção de minha mãe. Não por isso.


E sobre o teste dele. Vejo-o diante de mim, quase brilhando, numa cópia de brochurão que me fizera da poesia que apresentaria a julgamento. Inspirado na musa... E minha inspiração, a de ar mesmo, é longa, para que eu possa abrir a folha mais uma vez:


Da temperança de meu torpor me faço súdito


Tresloucado na aquiescência de seus lábios tão perjuros


E na cadência de cara respiração prometo auroras


Com meu suspiro rente a pele – singelo profuso!



E pra sorver a sua essência interpelo lágrimas


Ao repisar e destoar os bálsamos de dor


E alquebrado me exorcizo dos fáceis júbilos


Me recolhendo ao cerne de meu labor:



Tu és a boêmia musa de meus sonhos resolutos,


Meu amor!


Aos soluços agora crescendo aos vômitos, de eco em eco, retomo quase titubeando: Roberto se apresentou aos juízes e foi reprovado. Foi o que me dissera, com uma postura de complacência que me fez ruir inteira em dó. Mas no fundo não importava tanto: aqueles versos eram para mim. Passando ou não no teste que fosse, nasceram pra homenagear a minha existência. E se eu o acariciava com afagos de piedade, por dentro eu era só gargalhada. Aos frêmitos em minha crisálida de ignorância. E me sinto idiota só de lembrar.


Idiota, sim. Ele foi. Primeiramente ele me dissera sobre a mentira, redimindo-se. Disse que era o sonho dele aspirar os ares de outras culturas e que preferia dizer a verdade a simplesmente desaparecer. Irada, contraí em ódio, em frenesi pela infidelidade. Pior: por ser desleal a mim. E mesmo que ele dissesse a verdade: ele não poderia ir, ele não poderia nem sequer pensar nisso. Pediu para que eu compreendesse, que me amava muito, mas era o mais lógico a se fazer, naquele momento. Lógico? Quem ousa falar de lógica aos apaixonados? Então gritei, completamente histérica (o que despertou um olhar de piedade que jamais esquecerei) para que fosse logo, o mais cedo possível. E que nunca voltasse!


No fim, virei as costas para ele e para mim. Suas últimas palavras, ditas com uma doçura cruel “É uma pena, Bianca, queria muito que viesse comigo...”, pareceram ricochetear pela eternidade, de quina em quina, parede em parede. Do passado ao futuro. O intervalo exato para que todas as imagens de momentos perfeitos me viessem à mente. Fiquei paralisada por minutos do tamanho de séculos, como estou agora, estupefata, desejando no abismo do meu âmago rasgar essas cartas. Queimar.


Mas elas eram minha única fonte de vitalidade. Ali estava minha bonança mesmo que atrelada ao passado. Não importa. Não vejo muita diferença entre minhas elaboradas ilusões e esses amores de chamas curtas. No fim, somos apenas eu, minha cama e minhas amadas cartas.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Marina

E quando das volúpias abrasadoras restaram apenas as brasas, fez-se silêncio. Não que fôssemos de muita conversa. Bastava ela abrir a porta e partíamos logo para as vias de fato. Porém, naquele momento em que cada um se vira para um lado da cama para contemplar a fugacidade do sexo, a atmosfera ganhava um ar lúgubre quase palpável. Clamava pelo decoro da verbalização. Embora talvez um pouco hermético, sou um bom samaritano... Abriria, embora não sem desprazer, as cortinas para o diálogo. E só isso bastava: ela o manteria sem exigir interlocução.

- Acha que isso está certo? Nós...

Fácil. Já era capaz de senti-la se munindo de argumentos. Pigarreou, erguendo o lençol numa austeridade de fêmea ressentida. A simples interrogativa que eu dissera ocultava um acervo de julgamentos silenciosos que, se outrora tecia um palco pecaminoso propício para a consumação daquele erro, agora era apenas sujeira a enfiar por baixo dos tapetes já imundos. Fingi um bocejo despreocupado. Marina sustentava de pé a nudeza desavergonhada. Fitou-me de soslaio por cima dos ombros e, a passos barulhentos, dirigiu-se ao banheiro no aposento ao lado. Podia imaginá-la defronte ao espelho, buscando o amor próprio tão ausente nos traidores. Depois reunindo conchas de água fria para reavivar a face. E para enfim galgar em si mesma e dizer:

- Nem comece com esse papinho, Gustavo. Esse moralismo todo não funciona comigo, você sabe disso. – como eu haveria de saber? Dela eu só conhecia os gemidos entrecortados, a respiração falha e essa falta de pudor bem mascarada. Até nas palavras! – Não estou te segurando aqui...

Sem fechar a porta, ligou o chuveiro. O som de chuva fraca me desfez do dever de pensar em algo pra falar. E em pensamentos sobre não ter o que pensar, acabei por me perder na pequena trégua que o tempo dava. A falsa chuva então se reduziu a um gotejo e outro. Pensei nela como uma cadela e ri. Algumas cadelas feridas latem, furiosas; outras choram. Mas sempre voltam para o dono. Ela latira e voltava para vestir-se. O cenho todo contraído e as sobrancelhas em finos arcos de ironia cravados na testa. Espreguicei-me em sua cama, ao som de outro bocejo - agora longo e sincero. Eu não poderia me levantar e ir embora, assim de supetão. Era fácil de prever os vômitos de chantagens torpes e as pragas, as maldições. Ela se contorcendo em prantos fingidos como se representasse a vítima de um engodo maligno do qual eu seria o articulador. O único. Não... Preferia suportá-la mais uns minutos (já que poucos minutos se passariam até que ela se convencesse de sua pureza) a sentir o gosto enjoativo da exacerbada emotividade feminina. Ou talvez eu não partiria pois sei que, sem muita cerimônia, desejaria voltar a possuí-la em breve. Naquele instante me parecia uma proposição insólita, mas há muito compreendi as engrenagens da carne.

- Eu não nego que sou pecadora: aceito. – continuou, com azedume, esfarelando um pó meio róseo sobre as maçãs do rosto para amenizar a aparência de notívaga. – Não vou ficar me crucificando por ser, antes de qualquer coisa, humana. O pecado é humano. E se na criação de Deus há espaço para o pecado, irei viver com ele e suportarei as consequências.

Quanta erudição! Mas não cabia me deixar seduzir pelo arranjo dessa desenvoltura na oratória. É bem verdade que essa ornamentação toda, ao sabor do meu julgamento, expunha com clareza uma fragilidade latente. Que pulsava. E só encontrava em discursos fantasiosos a anestesia para a dor viscerosa. E muito embora isto não comumente se sucede entre amantes: tive uma réstia de piedade.

- Mas você realmente ama o Gabriel?

- Claro que amo! – vociferou, num rompante teatral – Até no ato de trair eu estou manifestando meu amor por ele, você não consegue ver?

Ora, é evidente que amava! Não amá-lo significaria rever uma série de escolhas feitas ao longo da vida. E se admitir fracassado exige muita força. Exige dissecar cada proposta recusada e projetá-la num futuro que nunca virá. E se for belo: frustra. Exige lembrar das promessas poéticas de amor eterno e as juras tão bem ensaiadas. E se tudo se mostra muito efêmero: frustra. E os frustrados não se importam com o próprio caráter. Ou melhor, se acomodam pela incapacidade de libertação. Eis o ciclo: a traição era apenas um trecho sinuoso.

- Manifestando com mentiras? – pontifiquei, estranhamente protegendo meu irmão.

- Vê se tira essas viseiras, Gustavo! – e se ela estivesse tentando ser intelectual com essas metáforas, só conseguia me soar mais patética – Nessas mentiras que eu revelo o desejo de protegê-lo, não percebe? As histórias de amor da vida real são diferentes dos contos de fadas. Se não o amasse caía fora do casamento há muito tempo, nem precisaria mentir!

Contraditório, eu. Como poderia julgá-la? Se ela, altaneira, não se utilizava dessa incoerência como argumento, certamente almejava o cessar fogo. E o pescoço se virava para os ponteiros, em desalento, mais rapidamente do que os próprios ponteiros seriam capazes de girar.

- Logo o seu irmão chegará com as crianças. – sei que ele demoraria, ainda. Mas era um convite que ela sabiamente elaborara para uma retirada sem vencedores. Deveras convidativo.

- Bem, eu vou indo, então...

Recolhi as peças de roupa espalhadas aqui e ali, vestindo-as sem delongas. E vi, pelas janelas, os anúncios da noite no céu purpúreo. O pôr do sol, que fazia os pontos luminosos acenderem pouco a pouco pelo horizonte de concreto da cidade, mergulhava o apartamento já escurecido em mais penumbra. Num átimo de segundo, contemplei Marina com sua silhueta espavorida curvada no leito de nossa desventura. De olhos fechados e compressos. Estava ao resvalar da própria podridão. Trocamos olhares abissais: nos entendíamos.

- Quando posso voltar?

- Na terça-feira. Ou na quarta.

- Virei nos dois dias.

E nos despedimos. Rápidos sorrisos de meio lábio.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Anita


Era do tipo de homem que cataloga, analisa, discerne. Desse tipo raro. Ourives do próprio caráter. Bom em palavras cruzadas, jogos de tabuleiro, desafios de raciocínio. Bom em qualquer tipo de diversão solitária. Também dotado de muita minúcia, devorava detalhes por mais detalhes e mais e mais. Sempre implacável com os erros ortográficos. Ao revisar os textos dos colegas, comprimia a visão e corrigia consigo. Em silêncio. Repudiava o papel de piegas. Apesar de, na maioria dos casos, a crítica que não vinha em palavras mas vinha em olhares debatia áspera nas feições de escárnio dos outros funcionários. Era fácil ler aqueles olhos de pupilas gordas e também as íris. E lá ia Diogo ascender glorioso no palanque dos chatos! E acendia um cigarro e outro. Como bom observador, acabava atuando para evitar atritos – e eis um ponto crucial de sua personalidade, essa coisa de evitar atritos. Então, desenhava um sorriso de complacência. De forte metido a fraco que treme de medo da própria força. E fumava...

Não era dos mais modernos. Tinha um carrinho simples. Gostava mesmo é de andar. Ia caminhando para a empresa, nem tão próxima nem tão distante de onde morava. Mesmo nos dias chuvosos. Mesmo nos dias de tempestade. Até mesmo nos dias de folga. Aos passos largos de quem constrói altar para a pontualidade, lia as placas de carro em busca de algum sentido. Lia ao contrário o nome das lojas, os títulos das músicas. Quando encontrava alguma informação escondida, deleitava-se numa diversão infantil e triste. Aquela tristeza amarga de quem não tem a quem compartilhar. E da solidão brota o materialismo funesto dos pobres. Suas gavetas de madeira cara obedeciam a uma lógica fácil e inalienável. Livros pelo tamanho e discos pela ordem alfabética. Remédios – os intocados e intocáveis remédios – dum lado, as fotos de parentes longínquos noutro. Sempre limpas: aquelas gavetas escondidas nos poucos móveis que guarneciam o quarto ao fundo do modesto apartamento. No fundo de si ardia lasciva a saudade. Saudade de algo que nunca viveu – sua amiga, a frustração. A única.

Mas pra reconstruir aquele encontro, aquela obra megalomaníaca do acaso que unira as duas almas díspares, cabe entender alguns retalhos na cortina vermelha que esconde a peça.

Sobre seus ódios e medos. Entre tudo o que odiava e mais que tudo, estavam os erros. Os de qualquer espécie. De qualquer dimensão. E mais ainda dos conformados: de gente que se faz de orgulhosa por errar e revelar o podre. Como se pudesse servir de álibi. Os ourives não aceitam falhas. Eles lapidam, incansavelmente. E eis que um dia, desses bem típicos a princípio, bem rotineiros, Diogo se torna algoz da condição humana a qual procurava evasão. E erra, grotesco. Na sala de estar, a lisura rósea das paredes exibia apenas uma mácula - um prego que sustentava um calendário de padaria. E mesmo assim esquecera do aniversário da mãe. Data assiduamente santificada na família. Lembrou-se na tarde agora atípica, num supetão enraivecido que o fez sacudir violentamente a xícara de chá. Bem que eu achei estranho ela não ligar nos últimos dias! pensou, imaginando formas de se redimir. Fantasiou mentiras. Ensaiou a mansidão da fala e os votos de boa fé, os exauridos. Inútil: alguns erros são simplesmente imperdoáveis. Melhor seria não tentar. Juntou as pálpebras com os dedos, levando a outra mão ao bolso e desligando o celular. E naquele silêncio nasceu o temor. O prurido na consciência. E na garganta uma nódoa viscosa. Não seria capaz de enfrentar aquelas chantagens. A velha aludiria a uma emotividade típica de quem está pra morrer. Não estava munido de paciência. Uma mistura de tédio e medo o invadia. Talvez a mãe também o xingasse. Em marteladas ferozes na casca rija do caráter que ele polia no suor. Não suportava rachaduras. Era essa sua coisa de evitar atritos.

Brilhou a lâmpada das ideias: precisava de férias! Talvez não. A verdade é que não. Mas se convenceu disso. Embora não sentisse fadiga, tinha motivos para senti-la. Ora, já se passara quanto tempo desde o último descanso prolongado? Dois anos? Três? Não sabia. E como bom funcionário, direito tinha. Tiraria uma semana. Excitação e euforia se introjetaram naquelas artérias e veias sobressalentes. De um lado para o outro, entre cigarros e fumaça e brasa e cinzeiros e cigarros, esquecera da velha. E dos velhos recentes tempos: do Diogo com postura de velho, jeito de velho, rosto de velho. Mas enfim encontrou a palavra. Almejava no âmago, talvez sem saber, uma metamorfose - e que fosse completa. Que o completasse. Que o transformasse. Uma verdadeira combustão na alma. Pronto. Traduziu o rebuliço e se acalmou.

Dois dias depois comunicou ao chefe e tirou licença. Voltou caminhando. No ensejo da reforma íntima, começou uma luta voraz contra os próprios símbolos. Os símbolos criados por uma personalidade que ele queria abandonar. O perfil certinho, perfeito, polido, prolixo, mas sempre mal interpretado de outrora: nunca mais! Brindou o egoísmo, o politicamente incorreto. Começou então por ignorar as placas e os letreiros. Mudou o passo, agora numa lentidão de quem não tem compromissos. E não tinha, e se regozijava gargalhando alto. Fez promessas de libertinagem com pecados e futilidades. Coerente, afinal, enterrava ali o fardo de joalheiro de si mesmo.

Mas o mundo... O mundo não parecia diferente. Aquele cinza que manchava a paisagem urbana persistia. Tudo era cinza e de concreto, e permanecia. E os folhetos espiralando no vento que alertava o nascer da noite, naquele zumbido fúnebre. Junto com o zumbido dos carros. E as buzinas com sua impaciência retinindo no mármore de qualquer lugar pra qualquer lugar, em qualquer lugar. Ninguém notava aquela metamorfose, como costumam notar nas borboletas. O mundo não parou de girar. Meu fado é não ser notado? perguntou-se em represália.

O mundo resolveu dar uma trégua.

E enfim, configurando o que seria então o cenário principal de sua trama de existência, eclodiu de súbito um estampido metálico ensurdecedor. Num arco reflexo, protegeu a face nas palmas das mãos e curvou a cabeça. Quando do silêncio borbulharam os murmurinhos excitados, voltou-se para a rua. Um corpo esticado, num banho de sangue. Acidente de moto. Com vísceras à mostra e muita gente olhando. Ninguém agindo. Mergulhou num suspiro demorado, que lhe escapava tímido pela boca e pelo nariz. A verdade era que não se importava. E que se danasse as regras de boa conduta! Ainda não se importava, nunca se importou. Deu de ombros e deu as costas. Mas não completamente, pois aqueles olhos de tâmara o impediram de completar o giro de calcanhar. Aqueles olhos de tâmara...

Aqueles olhinhos comprimidos em pílulas. Compactos, atentos e estáticos. E seus cabelos, os longos, muito longos, eram os únicos da multidão que se debatiam loucamente contra o vento. Desesperados, alucinados. E lhe beijavam a boca, vibravam no ar, giravam vigiando a nuca e depois precipitavam em cascata sobre os ombros delgados. Segurou-os, agora cativos. Mas ainda na sacudidela. Pulso firme. Diogo, dez passos distante, fulminou-a. Seu corpo se eriçava em uníssono. Ele todo. Não que a silhueta fosse das mais belas. Não era. Viu sardas, pintinhas, cravos, saliências. Também a gordura envergonhada em pontos localizados. Notou a forma como tampava os lábios com a mão... Como se tivesse medo do animal humano. Que mulher diferente! Tinha algo de pura, calma, tímida. Ou somente calma. A verdade é que ela pareceu perceber o fuzilamento visual e retribuiu. Com seus olhos de tâmara. Libertou os cabelos estonteados, em molas. Afrouxou o pulso. Sorriu.

Naquele instante, naquele exato instante, se existe alguém sentado num trono manipulando essas gracinhas do acaso, esse alguém se empertigou. Olhou altivo. Resolveu se divertir. Bancar o ventríloquo. Senão, o mundo resolveu dar uma trégua ao infeliz Diogo, impulsionando-o na quebra dos próprios símbolos. Outra hipótese é que tudo não passa de coincidências, efêmeras e casuais. Como a vida. O fato é que eles se atraíram, como os pólos opostos de um imã. Ela, com as mãos mergulhadas nos bolsos de uma bermuda branca, não se moveu. Ele o fez pelos dois. Foi, sem delongas. Ele, outrora desprovido de qualquer impulsividade.

Começou com o pretexto da preocupação, o falso pretexto. Perguntou o motivo de tanta palidez, se precisava de água, de carona, de qualquer coisa. Ela negou tudo, de menos a conversa fática. Era o seu tom de pele natural! Exibia os dentes grandes. Meio alienada, flutuando no diálogo. Tentou ir mais fundo, perguntou o nome da moça, que lhe parecia poucos anos mais nova. Quatro, no máximo. Me chamo Anita, respondeu, adocicando a voz. Prazer, o meu é Diogo. Prazer. Não houve contato físico.

E os carros com suas buzinas. A cidade e o seu cinza. Os folhetos e suas mensagens aleatórias rodopiando aqui e ali. O aglutinado se dissolvia. A ambulância chegou e foi. Acabou a festa. E só restaram os dois, no meio da calçada. Envoltos numa esfera de silêncio. Ele fingia esperar algo, ou alguém, enquanto pensava no que dizer. Ela ainda parecia flutuar, como se visse cores e alegria naquele centro urbano. Foi então que um punhado de gelo se derramou no estômago de Diogo. Essa é uma oportunidade única, não posso deixar escapar! Preciso pensar em algo pra falar. Rápido Diogo. Rápido, rápido! Anita se curvou ao relógio. O silêncio então se ceifou quando o homem, numa postura de quem já não tem mais nada a perder, abriu a tampa dos receios e limites e ferveu as ideias antes submersas no âmago. Embora sempre vivas. Amanhã estou indo viajar, vou pra Búzios. Quer vir? as palavras atropelaram umas as outras. Quis fechar os olhos.

Tá doido? Não tenho dinheiro! Nadinha nadinha, em risinhos, mostrando o avesso dos bolsos. Realmente vazios. Uma brecha... Encontrou a fresta e foi, sem olhar pra trás. Eu pago tudo, não se preocupe! Vamos de carro e vai ser tudo tranquilo, assegurou, sem pensar muito. Búzios tinha sido o primeiro lugar que viera na mente. Teria que pesquisar o caminho. Impulsos. Impulsos encarcerados ao longo de toda uma vida. Ajustou os óculos na base do nariz. E viu, pelas lentes de vidro grosso, os olhos de tâmara se esvaziarem. E germinaram olhos de damasco, faiscantes. De fogo, brasa vermelha. E crepitava. Queimando na órbita. Digeriu as informações em poucos segundo. Enfim, escapuliu um gritinho de excitação, meio débil: então eu aceito! Despediram-se com meros arqueares de sobrancelhas e ela pediu para que a esperasse ali, no dia seguinte. Ele concordou. E partiu. Sem toques. Lembrou-se de sorrir, ao vê-la diminuindo no horizonte vertical.

Destrancou as portas do singelo apartamento com certo receio. Sem saber de que. Com firulas em meu próprio lar? murmurou para si. Uma pequena abertura na janela revelou a lua. A lua e sua benção de prata. Por segundos, pôs-se a admirar as nuvens convergindo para a iluminação. E os segundos convergiram em minutos. E as nuvens convergiram até se fundirem em trevas. E depois eram apenas nuvens. Uma lufada gélida adormeceu-lhe a face, com o sopro inebriante da noite. Assustou-se, num calafrio exagerado. As mãos em concha em frente à boca. Baforadas quentes... Foi à cozinha. O coração zumbindo, a pulsação rente ao pé da orelha. Havia algo naquele silêncio que o irritava. Como se fosse espiado, condenado, julgado pelas paredes anormalmente quietas. Aquele silêncio anormalmente doloroso. Esqueceu-se da fome e se jogou no divã da sala de estar. Conferiu o celular: nada. Procurou afastar resquícios de saudade da mãe, de altruísmo e culpa. Um toque de dor no peito. Encolheu-se. Se a dor fosse a consequência daquele caminho, estava disposto a enfrentá-la. Disposto a vencê-la, fazer dela cicatriz. E entre os pululantes pensamentos que circundavam o vazio daquele cataclismo interior, dormiu. E depois acordou. E enfim dormiu.

Antes permanecesse dormindo, e dormindo pra sempre. Pois aquela realidade tão bizarra precisava ser mantida; cada minuto de hora, prolongado; a ilusão, alimentada. Diogo se mergulhava, pela primeira vez, na vibração de um calor interno que nunca degustara. Nada fazia muito sentido, e mesmo assim fremia a cada sensação nova. Movido por esse desespero fulminante de quem se despe de uma personalidade que passara a sufocar, rompeu os grilhões da lógica e da boa fé. Pelo menos em sonhos. Bastou um toque num botão para gerar um titilar nunca tão áspero. Que o acordou, que o colocou de pé no resvalar da manhã. E mais que isso: que o fez emergir daquele poço de fantasias. E revestir-se e enraizar-se definitivamente nas vestimentas de outrora. A campainha.

Meu filho! Que saudades! Desculpa te acordar, mas vim de tão longe pra te ver... Só faltou você lá no sítio no dia do meu aniversário. Mas não vou te xingar, tá? Sei que você não gosta... Meu Deus! Que aparência é essa, meu querido? Parece tão pálido. Vem, me dá um abraço. Hum... Como senti sua falta! Vamos, sente-se aqui: me conta como vão as coisas na firma, nos seus namoricos...

E correspondeu a cada palavra com sorrisos sinceros e afagos verdadeiros. E isso o corroia. Vergonha inata aos covardes. Procurava não imaginar aquela moça esperando-o. Curvando-se ao relógio: os cabelos debatendo-se freneticamente. Levaria muitas coisas para a viagem? Muitas malas? Fingiu duvidar que ela apareceria, e convenceu-se. E entre os atritos tantos que já evitara, eis o maior. E se tentasse relembrar sua aparência, só lhe viria uma neblina disforme, e aqueles olhos... Ora de tâmara, ora de damasco. Anita! Num suspiro de derrota consentida, olhou para aquelas memórias como um adulto vê, resignado, as peripécias de uma criança. O espírito revoltoso de um jovem. Arrastando-se, assim viveu, entre encontros e tarefas e correções e críticas e futilidades e formalidades e cigarros e lágrimas, lágrimas, lágrimas.

A mesma abertura na janela. O sol a pino, a benção de ouro. Havia luz para todos. E as nuvens, ainda assim, eram somente nuvens. Nada mais.