terça-feira, 27 de julho de 2010

Guardanapos - Parte II



Pouco se poderia dizer sobre aquela pequena silhueta. Nada mais que uma pequena silhueta. Crianças: ou são agitadas ou quietas. Bonitas ou bonitinhas. Choram ou não. João Paulo ascendia glorioso em seus cinco anos sem muitas lágrimas, resignado sempre e de traços retos. Já masculinizados.

Mas onde estava o cerne de sua beleza? A fonte era desconhecida... Pois quem o olhava via-se diante de uma presença que era só presença. E só. Contemplava um olhar enevoado que nada focava, mesmo encarando todos que se colocavam diante de si com uma austeridade infantil que não divertia a ninguém - amedrontava. E os sorrisos que pareciam ensaiados, as gargalhadas entrecortadas tão sociais. Assistia aos seus desenhos como que por obrigação, com as mãos repousando nos joelhos. O volume sempre baixo.

Pois entre tudo que seus sentidos sorveram até os completos cinco anos, o silêncio era o que mais o agradava. Acalentava de modo a fazê-lo invejar os surdos. Não precisava de vozes ou de sons, nem mesmo do atrito áspero do ar abandonando as narinas. Necessitava apenas de ouvir, ver, tatear, aspirar e engolir o silêncio e ser engolido por ele.

Os vizinhos poucas vezes o viam com a mãe. Não sabiam se ali morava um pai. A mulher de poucos amigos saía cedo, altaneira. De vaidade escarlate. Os cabelos soltos em ondas vermelhas. E o quadril ondulava pelas ruas, indo. E vindo - só se já era início de noite. Então descobriram que João passava muito tempo sozinho. E da perplexidade do que muitos considerariam abandono, nascia uma maior e corrosiva: nada mais o garoto fazia, senão se colocar no sofá, com as mãos deitadas, simétricas e paralisadas, sobre os joelhos delgados que procuravam crescer para atingir o assoalho. E nada ele parecia esconder, nada parecia se deteriorar em sua realidade solitária. Apenas uma presença, um ponto no universo. Que os vizinhos espreitavam pela única janela que recortava a sala de estar.

Notaram que a mãe engordara, os mesmos curiosos. João Paulo sorriu complacente ao ver o irmão, pouco familiar, ocupando o berço que outrora fora seu. E em semanas a mulher galgava novamente pelas ruas.

No decoro da boa conduta, ofereciam ajuda para mimar o recém nascido. O primogênito arqueava o cenho em agradecimento. Mas recusava qualquer oferta, fechando a porta aberta sempre em ângulos rasos. O bebê chorava alto, espavorido, estridente, agudo, até que o início da noite então chegava. João Paulo entendia: era a ausência da mãe.

Noutra tarde o caçula berrava como costumeiro. Pela janela quadrada uma senhora mais curiosa que as outras sentia o coração titubear ao sentir a imensidão do vazio daquela silhueta pétrea que parecia flutuar no divã. Os soluços agonizantes que engasgavam o recém nascido de minutos em minutos não pareciam exercer nele um frêmito sequer de reação. Mas dentro do garoto as coisas eram diferentes. Tudo queimava, tudo era fogo. Tudo doía e encarcerava e corroia e dilacerava sua paz silenciosa! Crispou os lábios ao perceber que era vigiado. Agora já alcançava o firmamento. A mulher não suportou o olhar etéreo da criança e se foi. Mesmo assim, João Paulo tampou as janelas com as cortinas brancas. E foi até a cozinha. Pegou alguns brancos guardanapos. E se dirigiu ao quarto do irmão.

Entrou a passos calmos. E aquele som que reverberava em cada quina de parede parecia cortar-lhe a pele, ceifar-lhe o espírito. Mas não exibia um gemido de dor. Sequer um suspiro. Passos calmos o levaram até o berço. Já era alto o suficiente para um olhar imperioso, que encontrava o bebê como um raio que despenca em terra virgem. E ele ainda chorava. A boca fatalmente aberta. Bem diante de si, ali, encarando-o. O seu maior e único algoz.

A boca de onde toda aquela torrente de notas destoantes invadia-lhe os ouvidos sem autorização. A boca de lábios encharcados do caldo de saliva e lágrimas. A boca que tampou sem hesitar, com os guardanapos que empunhava. Pressionou-os com uma força que não sabia ser detentor. Que nascera de todo aquele cárcere em que sua alma se alojava. Da chama que o consumia e que fazia dele sua própria pólvora e cinzas. Os olhos da criança vibraram nas órbitas. E depois ficaram estáticos. Retirou-se sobre os mesmos passos calmos.

E enfim foi engolido pelo silêncio novamente. E para sempre.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Guardanapos - Parte I


A cabeça se inclinava para a janela. Preguiçosa. A fumaça do cigarro se misturava ao vapor inebriante do café quente. E embaçava. Mas não tinha o que olhar do outro lado do vidro. Seus olhos, também de vidro - de cacos de vidro – se limitavam a observar a mancha fosca se alastrando em seus tentáculos. Os cabelos de um loiro quase branco estavam eriçados de um jeito pouco feminino. Rebeldes. Lábios róseos, levemente crispados. Rosto pontudo, maçãs sobressalentes. Olheiras profundas... Ela e a janela: foscas. E pela analogia que ela mesma fizera sobre tal semelhança, desprendeu-se um longo e triste suspiro. Voltou-se a xícara, esfriando o café em sacudidelas circulares. Do outro lado da vidraça não era possível dizer se era noite ou início de dia. Do outro lado de Gabriela, encontrava-se alívio ou simplesmente...

Dor?

Havia uma melodia calma que se repetia aos fundos do bar, já que ninguém estava ali para trocá-la. Que se alternava do grave ao agudo como se acompanhasse a velocidade dos pensamentos daquela mulher. Não saberia dizer a quanto tempo estava sentada ali, na última fileira de aposentos, com as pernas diagonalmente cruzadas. Mas tinha passado o suficiente para que a música se impregnasse em sua mente de tal maneira que era capaz de ignorá-la por completo. Como se tivesse sido elaborada unicamente para ser a trilha sonora de seu mais profundo íntimo. Uma canção fúnebre, sem voz.

Espalhados sobre a mesa, restavam seis cigarros. Apenas seis. Eles eram seu relógio, cuja iminência do fim despertava-lhe um medo feliz, capaz de dar vida a um sorriso de dentes à mostra. Qualquer sensação, até mesmo esse medo voraz, era completamente bem vinda. Ela poderia se sentir viva, afinal. Não que se importasse tanto assim. Ao galgar o pescoço de um lado para o outro como uma notívaga, submergia na crua indiferença dos assassinos e fazia daquele mesmo sorriso uma expressão sem vida. Vida, morte, amor, ódio... Já não eram símbolos que ela considerava fundamentais. Interessava o que era fugaz, transitório e prazeroso. Tudo se resumia ao presente momento, pois não existia conforto no passado. Resumia-se ao som que silenciava ainda mais o silêncio. E calava seu peito. Ao tempo. Aos cigarros que desapareciam sem ela ao menos perceber.

Àquele homem...

Uma silhueta que surgiu ao sabor do repentino. Embora parecesse fazer parte intrínseca daquele cenário desde o início. Foi apenas uma troca de olhares, mas Gabriela pôde ver com clareza aquela feição que destoava por completo de todas que já vira. Um rosto ofídico, de nariz puntiforme. Onde dois olhos enevoados faziam cratera. E fremiam de um lado para o outro da órbita como se estivessem sendo traídos. O semblante de um traidor. Ou de um traído.

A dúvida pareceu-lhe sufocante. Com a ponta da língua, molhou seus lábios secos mostrando-o o sorvedouro de sua sensualidade. Uma sedução salpicada de azedume e mergulhada em amargura. E um risinho de meio lábio – falsa provocação. Falso desdém. E dois longos segundos para se sentir completamente patética. Mas que passaram – até a autopiedade era falsa. No terceiro ela ouviu, pela primeira vez, aquela voz que a marcaria por definitivo:

- Posso?

De eco em eco, os fonemas retiniram em seus ouvidos. Acenando em afirmativo, viu-o colocar-se diante de si. Não o fitou. Bebeu mais um gole de café, o último gole, com a face retesada para a mesa e suas cinzas acumuladas. E tudo pareceu prendê-la. Um homem desconhecido, numa hora desconhecida. Num momento onde nem ela mesma se conhecia. Encarcerada nos próprios enleios, arrependeu-se impaciente por provocá-lo outrora. E ele com as sobrancelhas descansando tão calmas... Parecia confortável, quando pegou os guardanapos. Gabriela recebeu dele um, com uma caneta tirada de um bolso de sua jaqueta. Ele detinha o próprio par dos mesmos objetos. Sem entender, mas ao dissabor do tédio diante daquela atitude para ela tão piegas, esboçou um gemido de questionamento.

- Escreva qual é o seu problema aí, nessa folha. E trocaremos os papéis.

Atônita, viu-o curvar-se sem cerimônia para redigir. Aqueles olhos miúdos conseguiram perpassar a sua alma translúcida? Não entendia se ele estava de fato preocupado ou com o mero objetivo de exibir suas próprias cicatrizes. Poderia ser simplesmente louco, também. Mas não aparentava... Ao contrário, seu arquétipo era decerto familiar. Sendo isso ou aquilo, a possibilidade de evasão daquele torpor a fulminou como um choque.

Escreveu, sem controle. Os dedos tremiam numa excitação ácida. Era apenas uma frase. Apenas uma. Mas que a libertava da crisálida em que se alojara. Mesmo que apenas para uma pessoa. O retângulo branco, por segundos, foi como uma dimensão onde ela seria Deus. Que vai criando e recriando histórias e falsas verdades. Que pode apagar o que lhe machuca para desenhar casinhas simples e flores ao lado. Poderia inventar, causar a impressão que quisesse. Estava farta, porém. Diria a verdade. Mancharia de azul aquela superfície com a mais pura verdade da mentira que ela era por completo. O seu resquício de existência seria pintado ali. As consequências de pintá-lo - não importavam. Há muito abandonou as razões da consciência para abraçar o ilógico. O fosco, de contornos abstratos. O que tinha razão de ser, abandonaria. Como abandonou. E regurgitou: essa é a segunda gravidez que aborto.

E trocaram, sem ao menos dobrá-los.

Ao ler o guardanapo dele, foi tomada pela descrença. Na humanidade. E mais ainda nela. Por sua falta de humanidade. Pois foi incapaz de sentir medo ou piedade ou comoção ou até mesmo fúria ao ler: matei meu próprio irmão.