domingo, 20 de novembro de 2011

Fragmentos

I

Primeiro ele se aproximou até que os olhos fossem globosos como o mundo, a fitá-la num interesse para além daquilo, que viajava sobre algum ponto inalcançável do universo. Depois, acariciou a cabeleira desgrenhada da mulher, polindo seu couro com as falanges macilentas enquanto revirava qualquer coisa em lábios descarnados. Que porventura se alargavam em risinhos interrompidos. Os dela, um risco duro em madeira escura, deitavam quietos sobre o abismo da voz. O plano mais engavetado de sua consciência quis vociferar insultos, levantar da maca e ir embora de supetão. Nada a impedia. Mas aquele acordar do avesso, de gosto estranho, pareceu ter desconectado-a do que talvez chamasse, um dia, de sua única e verdadeira essência. Tudo o que fez foi nascer no ventre do silêncio e anestesiar as dúvidas com a curiosidade indiferente de quem a vida se faz surpresa pouca. E ficar ali. O semblante do homem revolvia-se e engolia-se para cuspir feições da candura ao pavor, do fogo ao pétreo, masculino e feminino imbricados. E ele se movimentava sobre o aposento de luz fraca procurando extensões de si como um moribundo desesperado. E os risinhos. Vera lembrou-se que era Vera, que era velha, que era fraca, que era suja e burra pouco menos que uma pedra. O senhor de súbito a encarava novamente, tão incisivo quanto outrora, e parecia discordar com veemência. Possuía olhos difíceis de enfrentar, que a fizeram fugir para o soslaio dos covardes. Viu que ele trazia pendendo no punho cerrado uma linha vermelha, que pendulava lentamente cantando os segundos como um filete de sangue que foge da morte. E então ela sentiu todo o sabor daquele cordão quando a agulha que ele escondia rasgou sua boca em ziguezagues desordenados. Era de uma umidade difícil de sorver, que ao precipitar sobre sua garganta seca ferveu as memórias do fundo e a levaram até Cenourinha. Seu único brinquedo, um coelho de pelúcia da cor do lodo. Sujeira impossível. Só possuía um dos olhos, e todas as vezes que Vera o notava melancólico em qualquer canto, eis uma fonte inesgotável de piedade inanimada – e por isso inesgotável. Abraçava-o com toda fugacidade dos abraços, no aperto embalado por ausências, e quando sua boca se encontrava com a pelugem do animal-mentira, era esse o gosto. Essa gota escondida que se suga com dificuldade. E agora também havia sangue, seu sangue, mas que não corria apavorado. Mergulhava, e o ferro era tudo que se sentia. Sem dor, sem incredulidade, sem martírios lúbricos. Sem dor... Como ela podia não sentir dor se ele havia costurado-a como seu mais primoroso espantalho particular? A cognição que destrói as falsas realidades denunciou, e ela partiu o pesadelo fracassado a contragosto.

Quando sentiu as costas suadas no lençol, veio a dor crucial da verdade. Inclinou-se rapidamente e tateou no escuro o relógio de cabeceira. O peito tamborilando numa síncope acostumada. O ar saindo pelos lábios livres da costura. Igualmente mudos. Vinte minutos haviam se passado. Queria horas, dias, vidas, mas o tempo a castigava tão somente por maldade. Na ausência de pelúcias e afagos, abraçou os joelhos e rezou a Deus para que o pesadelo acabasse. O pesadelo essencial.

II

Vera,

Não vou dizer que essa carta foi um ímpeto fácil, desses vômitos que nascem das bocas em fúria. Foram noites em claro, foram noites suspiradas, foram noites que se delongaram como um inferno gelado me queimando dia após dia. Mas há nos adultos essa coisa de tentar tampar as verdades com os dedos entreabertos enquanto o outro insiste em fechar os olhos com força. E é isso que nós dois fazemos, é isso que nosso casamento se tornou desde que foi consumado. Consumindo tudo até as cinzas em que nos afogamos sem perceber.

Éramos pouco mais que crianças, éramos apenas quase jovens quando decidimos com muita ignorância costurar nossos destinos nesse nó cego! Como haveríamos de ter a maturidade suficiente pra prescrever o futuro? A única coisa que eu sabia sobre você era das suas curvas morenas e dos nossos beijos. Nunca soube de fato quem você é, e diria que não sei até hoje. Não sei o que a compõe, essa matéria dissimulada que ergue esses muros no contorno. E ninguém passa. Nem você mesma. Não sei o que acontece dentro da sua cabeça, do seu coração. Você vive todos os dias com uma maquinaria robotizada e enferrujada, placidamente social, e quando surge até mim os beijos agora secos - eles não são nada além de tempo escarrado num ralo qualquer.

Isso que faço não é uma vontade recente. É tão antiga quanto eu e o tempo que lembro de você. Só que, essa noite, sonhei com sua morte. Uma gangue de ladrões entrou aqui em casa e disparou todas as balas de todas as armas do mundo no seu corpo. Eu, ao longe, ouvia os barulhos como quem ouve uma sinfonia em melodia rara. Quando acordei, Vera, senti sua respiração e lamentei! Quase até chorar! Lamentei como um homem que pragueja contra a própria fé.

Não tenho piedade em fazer essas linhas porque já imagino sua feição que só se limitará a erguer as sobrancelhas num atrevimento comedido. Sei que não haverá lágrimas, nem palavras, nem telefonemas, nem procuras, apenas a interiorização de tudo para a introspecção no seu mundo, onde você realmente vive. Sua intimidade vazia.

Meu único pesar é pelas crianças, mas elas também não merecem essa família de porcelana. Tenho medo que elas herdem seu caráter podre, e por isso as levarei comigo. Embora pode ser tarde demais... Talvez você até goste de ficar sozinha, talvez encontre paz dessa maneira. Não adianta me procurar, ou colocar a polícia atrás de mim. Não me encontrará, nunca me encontrou.

Guarde essa carta como prova da minha derrota, de que tanto me orgulho. Eu tentei, Vera, eu tentei, mas você é quebrada e eu não me acostumei a me cortar com seus cacos. Você não funciona, é errante, é devastada, é um erro implacável que eu me recuso a cometer novamente. E eu vou me perdoar, acredite.

Adeus,

Sérgio.

III


Subir aquela rua – só com esses passos de quem finge não ter pressa. A menina Vera defletiu a cabeça em direção ao véu negro salpicado de pequenos pontos brilhantes. Gostar de estrelas era um bom refúgio. Preferia as nuvens, agora camufladas na treva, que quando banhadas pelos dedos do Sol pareciam esconder qualquer mistério execrável no dorso. Vera se perguntava se haveriam de viajar ali as pessoas mortas, num jazigo flutuante. Se um dia veria o mundo de tão alto. E seguia a contar estrelas, contando estrelas, contando estrelas...

O portão era uma tábua de madeira sempre aberta e sempre emperrada, em que ela precisava usar toda a contração parca de corpo marasmático e exausto pelo dia de trabalho para enfim movê-lo alguns centímetros. Ao passar através da pequena fresta, esgueirando-se como um lagarto furtivo, outra pequena elevação do lote se erguia a sua frente. Por um momento buscou dentro de si qualquer fonte de força abissal, ares quentes e impulsos de origem desconhecida, porque lá dentro do âmago crepitava o medo da noite.

Um grito, desses de entranhas massacradas, irrompeu das janelas do casebre como um sopro de morte e ceifou devaneios. Por um momento Vera pensou em correr, fugir, dormir na rua, desistir. Mas o dever era seu mais hábil ventríloquo, e as linhas estavam em todos os lugares. E o estrangular completo se ousasse fugir era o horizonte em que se via. O dever de filha mais velha. E quando a mais nova lhe veio correndo e a cabeleira hirta estapeando o espaço na desordem toda que tudo era, sabia: o usual prelúdio de qualquer tragédia diária. Não sabia, era mais: a hecatombe.

– Vera, vem logo! – pavoneou e exibiu a bocarra suja de criança, sua irmã, dois anos mais nova e cem anos mais jovem – É a mamãe, Vera! Ela tomou alguma coisa de um vidrinho e agora tá lá no chão, acho que tá morta!

Era mesmo a mãe e estava mesmo morta. A mulher parecia um amontoado de qualquer coisa e panos e cabelo embalados num sono fugidio e pálido, meio curvada no assoalho como quem sente a ardósia gélida demais. Em algum momento ela deveria se acostumar. Derrisória paisagem, mas não o suficiente para lágrimas. Ali, uma vírgula humana entre as próprias reticências. Não havia no seu rosto expressão alguma, mas a aceitação tenra de quem não contrai músculos nem vísceras. O vestido era do tecido da noite, calcinado de quaisquer tarefas doméstica extasiantes, que ela usou com frequência nas semanas anteriores. Luto?

Vera afagou a caçula roufenha a chorar em pânico, afundando com força o rosto da menina nas suas vestes agora empapadas. Os sentimentos imiscuídos eram menos que aquele vômito de silêncio, o paraíso de que sonhara. Caso a irmã interrompesse os berros. Seu mestre invisível, o ventríloquo, fez dela somente movimentos precisos e mais linhas e responsabilidades. Havia uma inveja pela libertação, a querela de um suspiro de onde vem essa anátema persistente. A fruição das sensações era mais vertente do ódio que do amor, a mãe amaldiçoara-a com seu egoísmo. Não a culpava.

Na madrugada que veio e passou, elas ali sentadas numa quina da cozinha. Abraçavam joelhos, imaginando os passos seguintes na neblina escura, a revolver uma fraternidade colossal nunca antes existente, quando os estômagos gritaram pela fome crônica. E entre os vasilhames poucos de arroz e outras coisas, também havia comprimidos. Comprimidos em todos os lugares, esfarelados sobre todos os alimentos.

Derrisória paisagem, suficiente para lágrimas.

IV

Ele lambia os cantos da boca como uma hiena.

– Você precisa muito desse emprego?

– Muito!

– E qual é o motivo?

– O motivo é que sou a melhor para esse cargo.

– Ousada, ousada...

– Sincera.

– Até onde você estaria disposta a ir para tê-lo?

– Até onde o senhor iria para me testar?

O homem de gravata prata fitava a saia de Vera e sua pupila se dilatou. Prendeu-a pelos punhos e colocou a mulher na mesa, encurvada. A despeito das formalidades, a moça de dezoito anos ensinou para ele o caminho até a umidade que guardava entre as pernas. Foi fácil passar pelo conduto de barreiras tantas, e de dois se somaram por fim em um.

– Quantos dias você trabalharia por semana?

– Todos.

– Você é casada?

– Talvez.

Gemidos em suspiros derradeiros, farpas de vento no espaço morto. Vera não sentia prazer, tampouco seu fôlego se imiscuía com aquele atrito indiferente.

– Têm filhos?

– Talvez.

– Conheço seu tipo.

– Talvez.

– Entendi, entendi. Está empregada. Volte amanhã.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Retrato


Ele foi buscar qualquer coisa na cozinha e me deixou ali. Estratégia maliciosa... Alguns minutos naquele quarto já seriam o suficiente para que eu não viesse a emitir quaisquer sons no seu retorno – a mais tenra tentativa de diálogo seria reduzida a uma conversa meramente fática. Talvez gemêssemos. Iríamos direto ao ponto, e depois do ponto, direto aos beijos de adeus definitivo. Ao mesmo tempo, aquele gesto de polidez falsa exibia, sem o demorado e inconveniente recurso das palavras, seu sustentáculo de homem firme, chefe de família e imperioso no reino que só dança ao sabor da sua vontade. E volúpias. Quando as intimidades se emparelhassem para assinar o contrato breve do prazer, nada precisaria ser dito nem tratado. Como se sua voz fosse o próprio silêncio: eu mando. Você, puta recalcada e burra, obedeça e vá embora.

Ah, querido, não pense que isso me ofende. A liberdade é um doce em drupa gorda. Desses que mais escorrem fora da boca do que dentro. E essa indignação que você projeta em mim, e exterioriza tão não galantemente, nada mais é do que o seu faro virgem invejando o meu melado que vaza, tal excesso em cachoeira. Liberdade é um balanço de criança de largura infinita oscilando em nuvens brancas, ancorado em tudo, controlando as direções em que o mundo se expande. Enquanto o seu se contrai até esse quarto agora quase leito do pecado. A infância dos desejos é onde eu vivo, não migrei para a infâmia onde você me quer. Não tenho limites porque limites me transformariam num todo indesejado e eu me tornaria um outro eu, cheio de pontas remodeladas e adestradas. Não, prefiro essas ranhuras que sangram. Que fazem poros e me conectam a mim mesma. Revolvo o destino nos dedos, mergulhando-o no caldo do que é execrável, animalesco, instintivo, atroz e incompreensível. Isso porque já estou totalmente afogada, meu bem, e suas palavras não chegam aqui tão fundo. O que eu quero de você são movimentos. Você, homem de superfície, existência comum.

Um cômodo grande, móveis caros e uma arquitetura simétrica como a fuga e o tempo. Nenhuma poeira, senão minhas partículas descamando no tapete felpudo. O cheiro era algo entre a essência da lavanda e da menta, misturadas, quase agradável. Um palácio estéril pronto para a mácula. Mas algo ali ressonava, inquieto no avesso do sossego, reverberando para me expelir do ventre. O corpo estranho, destruidor do firmamento familiar de ruínas remendadas. O aborto do mais profundo querer. Meus dedos raspavam na madeira que gemia no atrito tentando cravejar as farpas sem sucesso. As fotos encaravam-me num fitar de fúria, presas nas molduras plácidas. Todas amontoadas num palanque marmóreo ao lado de um espelho elipsóide. Meio escondidas, presas no soslaio por onde a mentira olha. Fui encará-las. Entre tantos eventos randômicos de felicidade duvidosa, um retrato das filhas.

A caçula era mais parecida comigo, havia herdado o mesmo sorriso forçado. O lábio superior pendia tosco e a boca toda era de um róseo tortuoso e esfarelado. Abraçava a primogênita para arrancar vísceras, mas a irmã era um raio quieto – semente da indiferença do pai. Aquele olhar com a pálpebra na altura média e as sobrancelhas pontiagudas era o algoz de tudo. E de tudo e entre tudo, desorganizava minha já bagunça interna com mais primor. O aviso da ira: mesmo estapeando-a, permanecia. De mim, a agora menina deflorada imitava a voz roufenha, mas com venal elegância. Era a lótus para o mundo, flutuante e serena onde os pés houvessem de pisar, imiscuindo e encantando e beijando e traindo e chorando e com vestidos floridos dançando, dançando, dançando. Por vezes via Bruno latejando olhares, desejando que eu fosse ela. Não ela envelhecida. Ela. Em toda a extensão que isso me cobre em noites como essa. A pequenina era o restolhar de uma confusão mal ordenada, e todos os dias seus dramas de criança eram explosões desconexas que só encontravam ouvidos em mim. Pelo menos a parte externa deles. É, é, é isso mesmo, jura?!, entendi filha, sim, sim... Inveja do pai, ourives pesaroso. Na madrugada, ao voltar do talvez trabalho, a menina cansada das algazarras do dia dormiria quieta. Única energia que tinha que desprender era num delicadíssimo beijo na testa, sem jamais acordá-la.

Como eu queria a sombra! Morar na sombra, vendo a luz de longe. Vendo a luz como quem vê a morte, e morar na sombra como quem está vivo. Para que não me vissem. Talvez só assim me vissem. Sentindo o aroma perfumado da erva almiscareira, do amaranto e do ademais da flora eterna que desconheço. Ou qualquer outra profusão de sensações. Rasgando a pele no gramado dos prados longínquos, rodando sobre as curvaturas das curvas e esquinas de mim e então vasculhar os abismos e as cascas do passado.

Naquela fortaleza de miséria, o único horizonte disponível era no espelho de outrora ele surgindo e me pressionando contra o seu corpo, evitando meu rosto e concentrando na nuca. Quase me dobrando a ponto de derrubar a velhacaria toda no móvel com as fotografias.

Era um belo homem, mas não sorria. Ele estaria mais feliz se minhas costas fossem minha frente. Eu também.

sábado, 5 de novembro de 2011

Caricatura

Eu porventura acordo com os olhos fervendo esperando a mudança de tudo. Pois os dias ainda deságuam na repetição imbricada de sempre – essa coisa de eu levantar e distribuir as partes de mim incompletas e quebradas para silhuetas igualmente desconhecidas, e então me afogar no etéreo gosto da pequenez disfarçada. A que ignora a fugacidade de tudo, a inconstância das pessoas, a inveja recoberta pelas cortinas da polidez, a violência que turbilhona o cosmos passando na frente dos olhos que insistem em piscar na hora exata. Qual a origem dessa carência abissal? E quando sento e fito a solidão – eis um encontro comigo mesmo, mais fugidio do que ansiado –, fico assustado por ter me desligado tanto de minhas bases. Já que me fizeram acreditar em bases, estou mais trôpego a cada manhã. E quando me pergunto quem eu sou, buscando-as, ouço a respiração arfada revolvendo a garganta e saindo pela boca, e nada mais. Ou talvez algum sentimento indecifrável no estômago, um tamborilo confuso e gelado. Não sou o que eu descrevo, nem o que sou descrito. Nem isso. Sou tudo como uma soma que diminui os montes empilhados ao vazio interno do pó, um ator exímio numa peça nômade, repartindo a atuação pelos cenários tantos. Começo a jornada um amontoado de matéria reciclada que vai descobrindo uma habilidade qualquer que retumba voz no crânio, que ensina: a morte é mais certa que o abraço amigo em noites de lágrima, sua importância para o mundo é equiparável a um grão de qualquer coisa, e que a certeza dos sentimentos de quem se ama de forma imprecisa é tão imprecisa quanto um dado lançado no chão liso. E tão logo essa certeza se enraíza, a fuga começa entre o que fora germinado. O espaço além, o vácuo preenchível somente por mentiras. E aqui é tão mais agradável, tão mais povoado! Penso que a racionalidade carrega consigo a maldição de não se saber lidar com o abstrato. O que há dentro da casca não é visto ou compreendido, a beleza do acaso genético ou sua ausência descrevem tudo o que um sujeito é. O destino então existe. Tudo mais são adereços, a roda da fortuna é um rosto belo que se desfaz no tempo. Porque precisamos dar forma a tudo para que a segurança frágil se complete. Dar forma a insegurança só poderia ser numa carcaça dos restos de nós. Frágil, pois essa forma só são os outros, uns mais ou menos afortunados, que trocam expectativas inalcançáveis porque as palavras não sobem. Ou sobem outras palavras, deformadas pela subjetividade inexprimível. Descompasso que sempre culmina num dia de tristeza, da qual todos correremos a passos largos. Esse fatídico fruto dos campos da veracidade. Não queremos aprender com ela, mas ela insistirá. Então, que compromisso eu haveria de ter com a coerência? Estou constantemente sentindo falta dessas palavras que não foram criadas, de órgãos sensoriais que não tenho, imaginando encontros improváveis e criando formatos de mim esculpidos pela vaidade. A mostrar ao outro algo que nunca fui, nunca serei, para então no universo em que mando eu, onde só eu moro, fingir que sou. Nisso o mundo roda, o verdadeiro. Essa briga com Deus pela unidade limitada em que me fez vai digerindo meus minutos. Queria ser vitral de todas as coisas, orgânicas ou não. Maldito é esse espaço pouco que eu ocupo, e portanto esse significado parco. Esse zodíaco previsível que gira com os planetas: os de pouco assoalho familiar se rodeiam de numerosos amigos de sorrisos fáceis e afagos fracos. Quem é traído quer vingança, quem se machuca um dia ataca, quem não tem fé se acha sábio. A identidade comum é inaceitável. Compremos fantasias! Mas quando a noite nasce, os esforços são em vão – no fim da jornada vamos dormir para experimentar um pouco da morte, em que as lembranças nada mais são do que retalhos disformes e sem significado em paisagens aleatórias. Quando acordamos, esquecemos a lição.