terça-feira, 19 de novembro de 2013

Prefácio

- Você faz tudo errado!

Nosso primeiro contato, uma cisão completa de tudo. A Voz era qualquer coisa entre o vento e o sopro humano. Nunca soube de onde o vento vem – ele já nasce acontecendo e vai sem remorso. Ele toca sem o tato, cria movimento no invisível, embala todas as coisas na sua dança e parte sem lágrimas. Mas aquela dança cantava algo de definitivo. Eu bem sabia que a fonte estava logo atrás e acima de mim, embora eu não quisesse vê-la para não exaurir os olhos já cansados. Cerrei as pálpebras porque sentia que aquilo pertencia ao universo escuro e primordial, onde se fez com gritos o primeiro parto do silêncio. E então entrou em mim e retesou meus músculos, salpicando sobre minha pele algo bem parecido com um terror doce e comedido, como o medo que a fé instiga. Na audição, o som me atingiu por uma via alternativa às ondas comuns, que trafegam as estradas das orelhas, e foi direto ao cerne de tudo – não sei bem se no centro da cabeça ou no centro do peito. O timbre era semelhante ao meu, mas como que recitando uma maldição secular, carregado de matizes que decerto eu nunca vivi. Os moradores da casa pareciam acordados em ignorá-la, com uma tranquilidade tanta que poupava até os soslaios desconfiados nos quais meu olhar buscava alento, ricocheteando nos dois cantos do globo.

Outro vento veio e morreu em mim como um suspiro. Segui os outros e respondi a voz com minha ausência, carregando o estranho presságio de que, decerto, o futuro traria um diálogo abissal entre nós - como o vínculo eterno que une uma pessoa ao seu próprio pensamento.

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Ariadna adentrou o meu quarto e, mesmo eu de costas, soube que era ela e o seu usual supetão cuidadoso. O resfolegar esfarelado de suas sandálias pobres no firmamento era tão particular quanto os sons das espécies. Áspero como a tentativa de um atrito. E também a sua candura impetuosa, que lhe dava a liberdade de invadir o cômodo e violar qualquer regimento, era embalada por um cheiro doce de alecrim. Era a única mulher que eu conhecia com odor de chá quente. Seus passos deixaram uma meia lua de poeira no chão, e logo ela estava mais perto de mim que os próprios segundos. Ela sabia que, apesar de deitado, eu não estava dormindo. E nem perto disso. Sentou-se à margem, equilibrando-se entre o colchão e a madeira, afundando os dedos e unhas de harpia na minha cabeleira desgrenhada.

- Como você está hoje, Fernando? – aquele tom de voz era uma pena cinza que se equilibrava entre repreensão e a preocupação. Quando finalmente ergui o meu olhar para enfrentar o dela, seus olhos me lançaram uma opacidade incomum. Eu respondi com um sorriso de meio lábio, um esgar azedo e uma flutuação das sobrancelhas. Respondi com a resignação própria da derrota.

Ela sorriu de volta, levando uma das suas mãos a brincar com um colar que pendulava em seu pescoço, rodopiando um topázio com a letra M cravejada na sua superfície. De alguma forma aquela pedra parecia dançar na mesma frequência do meu cárcere. Tudo o que estava em volta transformou-se em um borrão lento, e então aquela esfera amarelada e eu estabelecemos um diálogo entre o silêncio. Eu deveria extrair algo dela, já que espontaneamente ela não me falaria nada. E isso não é óbvio.

- Todos nós estamos preocupados com você, Nando... Queria que você procurasse alguma ajuda profissional. Sei que você é cabeça dura demais e que provavelmente nada do que eu fale vai adiantar, mas eu estou tão aflita! Bernardo me contou que você anda virando o pescoço, assim do nada, como se estivesse ouvindo alguma coisa ou imaginando alguma coisa.

Ela usou a pior palavra existente: imaginar. A que me causa mais asco. As verdades que eles insistem em ignorar eu vejo com o pincel do real. Possui estabilidade, corporeidade, nitidez, completude. Se o que eu vivo fosse tão somente fruto de uma atividade excessiva da imaginação, eu poderia alterar as percepções e me embriagar das ilusões dos meus pecados. E eu não posso, definitivamente! Eu não preciso fechar os olhos para ver meus pesadelos. Eles estão em todo o lugar, e nessa pedra dourada que ressona. De alguma forma Ariadna esperava que eu não fosse lhe responder, porque há no diálogo entre o normal e o louco um mutismo esperado por parte do último. Mas a razão disso ela não seria capaz de entender, e isso já é a própria razão - a sua absurda e incalculável ignorância -, que lhe deu oportunidade de continuar o despejo.

- E seu comportamento também mudou! Antes você era extrovertido, alegre, brincalhão! Hoje você parece que vive numa depressão gigante, sem querer conversar com ninguém. Lembra que a gente costumava rir de todo mundo e falar um monte de bobagem? Eu sinto falta daqueles tempos, sinto falta de ver você bem!

Sim... Isso faz três meses, antes mesmo que A Voz se dirigisse a mim pela primeira vez. Toda a Terra mudou de uma forma inclusa, interna. Hoje eu me sinto o núcleo, o centro, e isso não é meramente uma atividade egoísta da minha personalidade em frangalhos, porque não é algo com a qualidade pueril das flores. É tenebroso, maligno. Eu sou o destino de muitas pessoas e todo o meu afeto de paciente terminal reflete no planeta em circunstâncias terríveis. Em catástrofes, em hecatombes que implodem em mim e explodem em tudo que está por fora. Os olhos do mundo me fitam através do tempo, me escolheram por algum motivo triste.

- Eu não diria que estou com depressão, Ariadna...

Ela pareceu gostar de me ouvir, mas o lampejo da realidade do que eu me tornara não a permitiu que me encarasse por muito tempo. Girou o pescoço, com falso interesse no resto do quarto. Não há água no copo da cabeceira. É isso. A estrutura de vidro e suas pequenas ranhuras permanecem intactas, mas a água não está suja, não está maculada. Ela apenas não há. Os rios por onde fluíam os sentimentos secaram no agreste desses fenômenos, aniquilando todo o meu interesse por paisagens. Até mesmo as paisagens em trevas.

Uma gota suicidou pela pálpebra inferior da mulher, debatendo-se nos lábios crispados. Senti o teor salgado daquele sacrifício como se fosse em meu próprio corpo, de forma que precisei molhar a minha boca com a língua para dissolver essa lamúria. Ela suspirou num embalo de incredulidade, e por um momento pensei que se desfaria em gargalhadas e em contraturas musculares desordenadas. Ariadna tinha muitas máscaras e muitas delas eram tão rachadas quanto eu.

O M que ela carregada no pescoço talvez fosse de máscara... Ou de maldição, mentira, medo. A pedra ainda reluzia, ainda vibrava e revirava fora dela e dentro de mim. Os borrões ficaram mais intensos e eu podia sentir ondas viajando pelo ar e se fazendo engolir no meu peito arqueado. Tremulou como se não suportasse ser o canalículo de tanta energia, e enfim se transformou num objeto transmissor da própria Voz.

- Mate o impostor! Mate o impostor! Mate! Mate!

M. Morte. Quando a verdade se elucidou como a cidade que se livra da névoa, pude ver na jovem mulher um sorriso aberto que precedeu um afago ligeiro na minha mão, que deixou uma descarga elétrica tênue, mas suficiente para manter o chiado vivo. M, missão, mensagem, martírio. Entregue a mensagem, ela iria embora sem dizer nada. Ela não era autorizada, nem os outros. Ninguém. Era como se o chá que ela viera degustar na minha companhia chegasse ao fim, e não há interesse por xícaras. Mas não se despediria sem me desferir, já próxima a porta, uma singela e lânguida piscadela.

Era o regozijo de quem observa como um pesadelo pode ser longo, muito longo, deliciosamente longo.