quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Mantras de Outono

Ode aos desejos dos homens, às volúpias dos homens. Comemoremos a selvageria das vozes, das declarações de barro e dos heróis de pó. Comemoremos com vinho e melancolia. Com a embriaguez surda do cotidiano. O amor passageiro, o choro noturno e notívago e sonâmbulo e sozinho, o suspiro da fé do andarilho sem chão – sem pernas. Daremos as mãos, mas não há unhas: garras, e nas garras: dor. Talvez nos encontremos peça de alguma história triste, tragédia imensurável; talvez nos encontremos tragédia de uma peça maior. Dos beijos que se descarnam quando as luzes da cidade morrem, escorrerão as salivas de outros, e passados outros, ansiando futuros muitos. O sangue que escorre do punho desferido no arame é uma gota desperdiçada nesse cosmos indiferente. Sentemos nos bancos de praça a observar crianças, e aprender os sorrisos fáceis da inocência que se esvai. E o ar que sopra nos ouvidos sempre traz uma mensagem derradeira, de uma música já finda no início, bulida em notas de aves e insetos. As flores permanecem vigilantes enquanto amassamos o chão com dilemas exauridos. Sobretudo, que venham as estações! E nas folhas de marrom-morte que acumulam os passeios do outono, vejamos o renascer de um ciclo em que a tristeza é também professora. Que façamos das nossas ações barca de altruísmo, e das nossas palavras o conforto do outro. O tempo do homem é medido em correntes de palavras e elos de ausência. O outro, o desafio maior. A maior necessidade dessa pessoa que lamenta, pois um abraço não se faz com um par de braços. Dois. Saibamos ser cinza, e ser fogo, e brasa, e lenha... Que haja força para os músculos correrem até os tesouros de nossas vidas, para os perdões que o orgulho encarcera, para os grilhões que a inapetência constrói nos covardes de alma. Que venha o avesso a cada pessoa machucada por nossos ataques, intencionais ou não. Reviremos o avesso quando no espelho a imagem parecer distorcida, e os desejos e vazios já não produzirem respostas. Quando no estômago perambular um restolhar gélido indecifrável. E que no afago haja compreensão, e não ânsia de engrandecimento, fome de completude. Que a amizade e o amor, estações distintas de uma mesma essência, sejam a flor colorida do mais tenro sentimento humano: a preocupação. A candura primordial. Flor, pra além do fruto. Um brinde a arte dos homens, sobretudo a arte escondida nas sombras de artistas tristes. E a grande árvore de raízes crepitadas abandona a seiva, e se despede da última folha corajosa...

E os Mantras de Outono se dissolvem no tempo, abraçando a morte.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Insônia


O meu luto são esses olhos bem abertos, que piscam vagarosos como a lua em sua derradeira insônia. Lentamente, os cílios se beijam e tão logo se odeiam. Não há convite para lágrimas trilharem o abismo do rosto, não querem passar pelas cicatrizes invisíveis cravejadas nesses ângulos. Porque todas as fontes que deságuam nesse interior, e no interior do interior, foram bulidas ao ínfimo espaço que preenche o vapor quente que sai da minha boca e embaça o vidro do relógio. O líquido para me lavar já não existe. E também cessaram os gritos, os punhos fechados desferidos na parede nua a me presentear com escaras e cascas, tão menos dolorosas. A violência, avesso do âmago, também é o avesso da ventura: está ali, derrotada, sem energia para o giro das engrenagens. Então vocifero os maiores insultos para os outros, e para os amigos dos outros e amores dos outros (meus personagens); no entanto, sou o único e solitário ouvinte. Apenas meus ouvidos restaram para o clamor cansado da minha voz. Imagino suas faces estupefatas diante da verborragia lapidada em ofensas pontuais e consigo lá no fundo de qualquer canto sentir o tênue gosto ácido da vingança tardia. Mas no fundo, sou o único ouvinte, e ponteiros me dizem para dormir. Não. Os medicamentos tantos repousam nas caixas vazias em gavetas escancaradas. É essa pupila dilatada na madrugada quente que se vê no espelho. Um grande círculo preto, minha porta para o mundo. Culpada, portanto. E no fim não se reconhece, entre tantos traços mutáveis do animal-semente que foi descascado até se descarnar a vaidade. O homem que se projeta diante de uma estrada com os pés descalços, fantasiando futuros altaneiros; e sente a terra, sente o vento de todas as estações, mas a natureza não lhe pertence e não o deseja. A natureza é a incógnita que me repele, é uma intrusa. A subtração de mim, o universo menos eu. O meu luto são sombras numa rosa que engolem as trevas, sombras independentes da luz. Mais escuras que as trevas. E quantas sombras uma rosa pode ter? Sobretudo uma rosa condenada a perder suas pétalas todos os dias, todas as noites, forrando o assoalho com uma serrapilheira de podridão na qual se alicerça. Assim vão se desfalecendo suas raízes e caule, mas os espinhos se tocam e se ferem continuamente numa espiral de dor. Meu luto, salvaguarda primordial! São figuras transitórias entre o pavor da solidão e a tenra piedade, piedade própria, que sobrevive até mais que a esperança. A companheira final, que constrói esse cárcere invisível. Lúgubre silêncio que se come, que se cospe, que se devora a cada dia num martírio penoso e voluntário que me faz caminhar sem rumo em ziguezagues na tábua corrida, estreita. Casa pequena, essa alma pequena. E eu aqui, maestro da sinfonia com os rangeres pra lá da meia-noite. Tudo goteja e não sei onde, a madeira dilata em estalares sem ritmo e contrai em rachaduras, o coração tépido bombeia a essência que não aceito de bom grado. O luto se eterniza louvando memórias de passados felizes, costurando-as a outras memórias de passados inventados num caleidoscópio que só pode ganhar vida através da arte. A arte me engana e me reinventa, acalenta – preciso, pois não há outros olhos para se apiedarem. A verdade imiscuída nas lembranças doentias, onde? Espero que muito, muito distante. O telefone dorme, mesmo que eu o fite durante todo o tempo. Das janelas não chovem palavras (mas eu trovejo), tampouco os joelhos dobrados em súplicas de perdão imensurável. E das portas não entram arrependimentos nem cartas nem beijos muito menos presentes de aniversário. Vou me dissolvendo no nada, como a poeira que viaja nos dedos de luz da manhã, sendo sugada pelo lençol amarrotado nessa cama quase túmulo até o fim do nó, coleira e sufoco. Então surge aquela pergunta abissal, que coça gânglios nervosos. Aquela pergunta...

domingo, 8 de janeiro de 2012

Outros Fragmentos

V

Deambulava como uma serpente entre arbustos, entre suspiros entrecortados por fumaça. Uma folha morta que acaricia o vento de outono. Onde o outono existe, ali dentro, eternizado. Seu corpo ressequido exibia um formoso vestido de qualquer material brilhante, escarlate e de marca pobre. O conjunto todo era um quadro estranhamente deplorável: algumas ondas de pele flácida suicidando no precipício da roupa justa, sem êxito, porque a angústia de morar naquela carcaça não permitia a mais singela e apraz tentativa de fuga. E os olhos, exageradamente sombreados, realçavam os aspectos mais escuros de seus traços, a pelugem que forrava o pescoço despido de colar, e manchas violáceas. Ele, submerso em algum tipo de êxtase silencioso diante da figura incomum, sentiu o toque gélido dos dedos tortuosos da moça na sua mão esquerda e, naquela fração infinita de gesto, percebeu-a acariciando sua aliança dourada como tentáculos. Lentamente, circular... Abandonou o cigarro no firmamento e se sentou, curvada para frente, obtusa, ignorando a mesa que os separava.

- Ah, hoje lá fora está tão quente! – sua voz roufenha eram tons envelhecidos e atropelados, e a gesticulação que a acompanhava levava suas mãos aos cabelos para uma desgrenha de fúria contorcida e retorcida – Nesses dias meu ânimo fica completamente alterado... Fico suando e a pele fica grudenta, as pessoas passam de mau humor, te olhando feio, falando sobre você pelas costas. Trombam de propósito, tentam te assaltar quando você está toda distraída limpando a testa molhada e vendo ao longe se o ônibus passa – Abriu um sorriso débil e amarelado, e a respiração que saia pela boca cantava a arritmia histérica – Tudo em vão, esses idiotas, o que eles poderiam conseguir roubar de mim? Ultimamente tenho levado poucas coisas na bolsa: a carteira quase vazia, um pente de cabelo, uma escova de dentes, sabonete e papel picado. Sabe, às vezes acho que eu deveria me defender, mas fico com medo de guardar também um canivete e acabar fazendo bobagem...

O semblante do homem permanecia inalterado, ainda que os músculos tamborilassem em frêmitos imperceptíveis na pele. Enraizou os cotovelos na madeira do móvel entre eles, demarcando o território que posicionava os atores da peça. Para camuflar a investida talvez imperiosa em demasia, abriu as palmas das mãos na direção de Vera, mostrando que estava aberto à escuta e predisposto a ajudá-la. Conscientemente, ela não parecia ter compreendido o significado daqueles sinais.

- Qual a razão de guardar papel picado?

Ouvir a indagação nessas palavras pareceu doer profundamente. Ela agora se via estupefata em suor frio, com o olhar paralisado num globo de pouca pálpebra, buscando abrigo em algum ponto do universo próximo ao chão, tão longe dele. O silêncio que viera tinha muitos cúmplices – todo o cômodo e a cidade margeante que espiava pela única janela de madeira antiga, lustrosa e lapidada. A mulher varreu a sala mirando os móveis e as paredes guarnecidas de quadros randômicos e deu olhos para tudo. E todos os quadros passaram a observá-la e todo o tapete esperava para ser pisado e todas as gavetas abririam a qualquer momento cuspindo papéis e segredos, os seus. Abraçou-se com os braços que tinha, dois, não muito, jamais o suficiente. E por um momento aquele avesso de som foi sendo sucumbido pelo arfar da dilatação e retração do peito doloroso e dolorido. Quando tudo foi bulido à erupção, ela ainda mantinha a cabeça curvada para o assoalho, misericordiosa em si mesma.

- É minha forma de deixá-lo aos pedaços... Todos os dias acordo, bebo duas xícaras de café e um pão duro, puro. Uma metade da metade de um pedaço eu transformo em mais duas metades. Acabou que virou um hábito, sabe? Veja bem, não diria que eu sou uma pecadora por fazer metaforicamente o que ele fez em ato. Eu o rasgo simbolicamente através dessas migalhas que um dia formaram uma carta em que ele me rasgou prontamente, sem direito a gritos. Eu, mesma. O papel me rasgou toda, em milhões ou bilhões ou trilhões, não sei, de pequenos fragmentos que jamais se colarão, tal como esses picadinhos. Assim que é bom, porque nem no meu maior delírio eu poderei remontar novamente a carta. Ela está aqui, na distância de um dedo, mas são palavras mortas, e eu as mato de novo todos os dias depois do café. E o que sinto? Deleite...

- Mas para as palavras morrerem realmente elas precisam ser esquecidas. Ou até lembradas, mas superadas. Foi o que você fez?

- Eu me peguei pensando que essa luta em preencher o vazio essencial, que empurra as pessoas na busca pelas outras, é uma estrada que termina em dois precipícios, um na ida e outro na volta. Você deve concordar! – vociferou em alto tom, fazendo ecos reverberarem nas quinas com impacto, ao mesmo tempo em que raspava a nuca com as unhas, deixando rastros avermelhados e divergentes no terreno já erodido – Há egoísmo maior do que esperar que uma pessoa seja sincera e protetora e fofa e carinhosa e preocupada todo o tempo? Há, na verdade há! Esperar que a pessoa seja confiável! E que partilhe tudo, eis a maior ingenuidade dessas relações de barro que a gente vai construindo. A confiança é a tentação do egoísmo, água onde nascemos mergulhados. Você deve concordar!

- A confiança não pode ser filha do altruísmo, mas desconstruída por uma sombra, o sentimento de posse?

Vera cruzou as pernas e a cabeça pendeu para trás, a fitar o teto. Seus lábios pareciam incomodados, crispados num nó de pouca carne. A garganta se irritava com algo, como se um comprimido grande fosse e voltasse em gangorra, difícil de engolir. Então pensou em comprimidos, remédios, drogas, fugas e alívios imediatos. Mas queria o sono eterno dos mortos, natural como o destino dos vivos, mas com direito a arrependimento. Ou com direito a ver as lágrimas das pessoas rodeando o túmulo num tumulto alvoroçado. Que viessem em tempestades! E ela ali, fantasma, atrás de qualquer pedra, no regozijo da vingança silenciosa, dos pudores cuspidos, da verdade tão descascada até a semente invisível. E entre os devaneios tantos que alguns segundos podem comportar, ela sentiu o aroma de jaspes. Sem nunca ter visto um. Provavelmente não possuem aroma. Mas sentiu, e era seu, em significado e significância. O aroma que o mundo deveria ter.

- Sérgio era um homem na linha, pelo menos na linha dos mansos... Mas você nunca realmente conhece a pessoa que está ao seu lado, não é mesmo? Não até ela te mandar uma carta dizendo que fugirá e levará as filhas porque simplesmente não a suporta mais. Ah, Sérgio! Quanta força, quanta bravura, quanta maturidade! Não, não, não, essa linha que ele andava fez curva pra lá depois pra cá e ele foi longe, nem sei pra onde. Agora é que o conheço como deveria: patético, rastejante, corrupto e, entre todas as coisas e mais que todas as coisas, a repugnante característica dos fugitivos, a mesquinhez! Que me esperasse acordar para que enfim despejasse as ofensas todas mirando meus olhos! Tudo bem se eu tivesse que ouvir tudo em silêncio, mas deveria ter o direito de desferir-lhe um olhar de ódio, de frieza, de indiferença, ou de pesar. Um olhar, último, e isso me foi negado.

- E o olhar que gostaria de dá-lo é esse que você me mostra?

Ela gargalhou, enquanto erguia-se da cadeira. Ondas tônicas que cuspiram sua língua ao ar, latejante, tal qual cadela. Titubeou meio arqueada, orientando-se nas próprias dimensões mais uma vez, que por alguns minutos permaneceram adormecidas. Quando a situação risível teve seu fim, restou o uníssono germinar de uma sílaba morta, indecifrável, emaranhando raízes infinitas. Que comporia uma poesia em hecatombe, feita por um poeta de pés descalços na paisagem mais bela entre todas. E tão bela a poesia também! Mas sem leitores, nem mesmo o próprio poeta. Ele teria perecido à sensação dos pés, o contato execrável com o destino de tudo.

- Querido... Eu por acaso mostro um olhar de prostituta?


VI

Quando vi aquela parede de onde cascateava uma fúnebre luz vermelha eu ainda não sabia que toda a felicidade da vida de amante iria em breve se esvair. Fiquei à espreita como realmente um animal qualquer fica num ambiente novo. Ele correu para o banheiro num trejeito tosco para despejar a cerveja da bexiga. Vi de soslaio. A cama era só um colchão grande e duvidosamente branco com almofadas pretas onde deveria estar uma bela e grande e espelhada cabeceira. Se eu fosse a sua mulher. Deitei-me e me virei para a TV pequena bem próxima ao teto. Esperei alguns segundos. Embalada pelo som irritante do chiado da dissintonia. Adequado. O homem engatinhou até mim para dar início a ventura que era o objetivo de tudo. A língua de fora meio que respirando. E deixou o chiado como a melodia daquilo. Todas as palavras e mensagens e flertes e surpresas e promessas de outrora eram as arestas do monumento que ele queria erguer ali. E destruir depois. E já estava todo erguido. Encostou a mão na minha e me pediu que o beijasse. Posição desconfortável aquela entre o sentar e o deitar. Aproximei-me e ele negou com a cabeça sem olhar para os meus olhos. Ali dentro nem sequer por um segundo conseguiu me fitar nas mais diversas alturas que eu propositalmente me colocava. Levou minha mão com chaga num pequeno montículo dórico e torto entre suas pernas e eu enfim entendi que ele queria que o beijo dormisse ali embaixo. Fiquei estupefata e todos os meus princípios poucos porém longevos queriam emergir para vociferar insultos e gritos. Não. Deixemos as reclamações para depois! E as lamúrias recalcadas para a madrugada... Então fiz. Bem. Com a nuca voltada para ele eu não poderia saber que tipo de feição ele fazia. Prazer ou angústia. Ou os dois. Não era importante. Ele deveria estar assistindo ao chiado que salpicava branco no fundo preto. Quando voltei para beijos propriamente ditos e clamorosos as roupas deslizaram pelos corpos de pálpebras embalsamadas. Não houve encaixe nem comunicação e quase nem contato. Já que o arrepio era elétrico e lembrava o prelúdio da descoberta de um segredo atroz. Tortuoso e obscuro como o que não deveria existir senão nas imaginações depravadas que coçam as quinas da mente. Eu ali... Convicta da história mais silenciosa e solitária que meus atos deturpados já escreveram em letra feia. À deriva das sensações que um dia me foram dadas apenas para provocar o apetite de mulher primitiva e encarcerada que sou. E então essas vontades são sanadas e perdidas num abismo de avessos. Não. Não havia uma história minha. Era a dele. Intrusa no cotidiano de um homem repleto de responsabilidades e convicções. Desejos e família. E a atração se deu já que eram itens que eu não detinha e talvez nunca. E quando o travesseiro amigo se dispunha a ouvir segredos ele sabia que o que eu desejava era ser a primeira. Nunca houve maior tolice para se pensar. Tampouco em devaneios essa seria a minha conclusão. Amor? A flâmula na virilha lassa se esfriou. A pira de marfim desfalecida. Cândida e quase virgem nesses ritos ardentes. O tesão fugaz amoleceu-se num triste não-jorro e gozo de líquido nenhum. Mas de angústia pela vergonhosa pequenez de tudo. Vestir a roupa! Vestir a roupa! Sem olhares. Fez mosaicos de argumentos pífios para acalentar mais os próprios ouvidos do que os meus. Meros objetos. Altaneiros nos disfarces das conveniências adultas selamos enfim um último abraço na maior distância possível em que cabem dois seres que se tocam. Já no carro me inclinei para pensar nas fanfarras dos meus próprios infernos. A paisagem dançando lá fora de felicidade diante da comédia que somos. Transeuntes rindo de quê? Fui semeada com cinzas dos restos! E raiada nesses mesmos restos! Sou compassiva do meu ser salobro e bizarro e nada mais reservo para os homens (e mulheres) senão o complacente sorriso de quem se deixa dominar.