sábado, 26 de junho de 2010

Samanta



É amanhã, o dia do ultimato. Ela virá amanhã. A dona de meus devaneios virtuais virá amanhã. Samanta...

O singelo deslocamento de algumas centenas de quilômetros que ela faria bastava para configurar aquela noite como palco do mais patético teatro de horrores. Sentado na cama, eu, com as mãos sobre os joelhos, penso em algo para pensar. As luzes já estavam apagadas, o pijama colocado. Recolocado. Mas deitar significaria um completo rompimento com a data presente para mergulhar na posterior. Quantos meses eu esperei? Quatro ou cinco... Quatro ou cinco meses de jejum sincero dos envolvimentos carnais. O banquete viria amanhã. E eu me imaginava degustando-o com uma voracidade lenta, como um esfomeado que tem pouco. Por ser pouco. Seria tudo tão mais simples se fosse questão apenas do corpo! No coração, a arritmia de um peregrino desconcertado. E mentiroso. Menti suficientemente bem para viver na mente momentos que eu sabia serem puramente ilusórios. Minhas fotos, minha profissão, meu peso, meu salário. E da sinceridade dessas tantas mentiras que eu me vi escravo. Queria aquele romance, idealizado nas várias juras de eternidade e proteção, e acreditava. Veemente. Deito, de olhos abertos. Há uma única fresta de luz que desenha um raio na parede.

Passo o cobertor por cima da cabeça. Sem de fato enxergar, vejo na escuridão daquele casulo manchas coloridas vagando pra lá e pra cá. De dentro dos meus olhos. Havia ali, e em mim, um clamor por ar puro – que latejava. E pisco, viro, estico os braços, dobro as pernas. O que eu faria com a doçura daquela mulher? Nas poucas vezes que nos falamos por telefone, sentia, em arrepios mornos, a suavidade de sua voz suspirada. Gargalhava sem maldade de sua inocência. Nem sabia como comprar as passagens... Ora, meu sentimento era sincero! Pensava nela, em presentes, em viagens. Na textura dos beijos. Eu distorcia os fatos para concretizar o nosso relacionamento que seria distorcido de qualquer maneira. Pela distância, por Deus ou pelo acaso. Reguei as terras do nosso amor com falsas verdades. E a paixão germinou. E tanto, que sinto medo. A pulsação me incomoda na orelha... Quero ar! Empurro a coberta para o lado. O risco de luz na parede...

E era sempre ela que ligava. Mandava mensagens aos montes. Acordava no meio da madrugada querendo ouvir minha voz. E aquele mel que escorria de sua meiguice me saciava. Era ela, sempre ela... Uma abelha sem ferrão. E foi ela que tocou na palavra amor pela primeira vez, com uma timidez preguiçosa. Amor? Mudo de posição. Ouço um gotejo tímido na cozinha. E me chamava de lindo, de príncipe, de tesão. E como ator principal vesti a indumentária de cavalheiro que eu não era, de uma maneira tão exímia que eu mesmo passava a duvidar – o que eu era, afinal? Mas há um espelho, cruel em sua realidade, logo em frente à cama. Eu o miro, e ele me vê: uma massa disforme de gordura. Uma quase esfera, amebóide. Patética. E goteja, e goteja. Se era amor, poderia ela entender essa fragilidade? Decerto, eu não aceitaria se ela fosse, na realidade, metade do que eu sou. Essa paixão egoísta, minha amargura. Era a esperança que sondava furtiva as minhas lancinantes conjecturas, a esperança que ela perpassasse minha aparência. E o que tinha depois? Uma mentira. Uma gorda e asquerosa mentira. Não queria chegar ali, na verdade despida, e só ali conseguia ficar. Está frio, e suo por todos os poros. Fome. E goteja. E goteja.

A torneira estava devidamente fechada. Como já estava na cozinha, aproveito para comer mais dois pedaços de pizza. E durmo.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Bianca


E entre desventuras e dissabores, aqui estou. Afogada em amarguras. Entre essas cartas, de tantas cores, de tantos tamanhos. De tantas palavras. Formatos e formatações e épocas distintas. Mas a mesma grafia miúda. Em meio a essas folhas de letras já mortas espalhadas como um vitral sobre a cama. Fico de pé, eu: a tecelã desesperada. Diante de uma ruína que exerce um tipo magnético de fascinação. Meus olhos se estatelam de estupor. Mesmo já morto, o acervo. Mesmo tendo seu conteúdo extirpado pela mentira. Era isso o que eram: mentiras, e só! Extensão de uma alma que imprime sua fugacidade na escrita. E eu de pé, na tentativa de remendar aquelas migalhas do tempo de minha vida. Os cacos de vidro. Como, se eu nem sequer conseguia tocá-las? Então me dobro sobre a nuca e pendulo os olhos da cama para o teto. Para que as lágrimas resvalem pelas bordas, sem tocar os lábios. E no cárcere do silêncio eu me calo de boca aberta, mas me ocorrem lembranças...


Era um poeta em sua essência de ser, o Roberto. E se não houvesse um veículo para escrever seu turbilhão de ideias, recorrente em demasia, ele recitava ao mundo, ainda que meio a esmo. Numa faceirice... No modo de falar era trovador, vozeirão grave. Espécime raro de prógnato. Imponente em sua aparência esguia e por pouco mais baixa que a minha. Debates e debates e debates, até esgotar a fonte etérea de seus argumentos. E empurrava os óculos de aro pobre encimando o nariz. Irritado com a futilidade de nossa juventude e seus ídolos de barro. Lastimado pela supervalorização das aparências nos diversos julgamentos das pessoas, e se empertigava até com os mais silenciosos. Até nos olhares furtivos. Decerto sabia bem de sua pequenez como mero homem, mas elevava-se mesmo sem intenção. E queria mudanças. Também poeta pelo amor, que surgia em erupção em cada singelo afeto. Nos mimos diários, no telefonema preocupado quando eu me atrasava de propósito. Quando assentia compreensivo a cada tropeço meu, nos ciúmes e carências de mulher. Poeta pela vida: ao sorrir pro céu, pras crianças na rua. Ao chorar o desamparo da mendicância. Como eu queria esquecer essa benevolência toda! Seria injusto, mas que Deus me desse espaço para a injustiça! Ele me dizia ser “a” musa – e se negava a dizer “minha”, por maior que fosse meu esforço -, e eu não conseguia conter o rubor das têmporas. É bem verdade que em sua presença o que mais dava em mim era ficar vermelha! É o vermelho a cor do amor? Ou a dor dele que é? Pois permaneço.


A modéstia me impede de ir muito além, mas sou musicista. O que talvez me faz melódica até a raiz da palavra. E da forma como minha desenvoltura diminuta permitia, eis meu sorvedouro: amava-o em cada sibilar de nota, muito embora me incomodava dividir esse calor com o amigo violino. Queria algo que fosse inteiramente meu, nos enleios de minha falsa candura. Que existisse em minha função. Minha. Se devaneei, agora retorno a mirar a cama. Com a incisão de quem quer respostas.


Pra isso preciso recolocar os fatos.


A cidade entrou numa grande balburdia quando uma missão artística estrangeira viera selecionar alguns jovens para o aprendizado na Europa. Adolescentes ensaiavam apresentações perfeitas e sonhavam os ares de fora. E lá fomos nós, um alicerçando a auto-estima do outro. Sem fazer planos. Sem exigir nada. Ele com sua literatura e eu com minha música. Passei no teste e recusei a proposta, resoluta. Aleguei um motivo não de todo uma mentira: a superproteção de minha mãe. Não por isso.


E sobre o teste dele. Vejo-o diante de mim, quase brilhando, numa cópia de brochurão que me fizera da poesia que apresentaria a julgamento. Inspirado na musa... E minha inspiração, a de ar mesmo, é longa, para que eu possa abrir a folha mais uma vez:


Da temperança de meu torpor me faço súdito


Tresloucado na aquiescência de seus lábios tão perjuros


E na cadência de cara respiração prometo auroras


Com meu suspiro rente a pele – singelo profuso!



E pra sorver a sua essência interpelo lágrimas


Ao repisar e destoar os bálsamos de dor


E alquebrado me exorcizo dos fáceis júbilos


Me recolhendo ao cerne de meu labor:



Tu és a boêmia musa de meus sonhos resolutos,


Meu amor!


Aos soluços agora crescendo aos vômitos, de eco em eco, retomo quase titubeando: Roberto se apresentou aos juízes e foi reprovado. Foi o que me dissera, com uma postura de complacência que me fez ruir inteira em dó. Mas no fundo não importava tanto: aqueles versos eram para mim. Passando ou não no teste que fosse, nasceram pra homenagear a minha existência. E se eu o acariciava com afagos de piedade, por dentro eu era só gargalhada. Aos frêmitos em minha crisálida de ignorância. E me sinto idiota só de lembrar.


Idiota, sim. Ele foi. Primeiramente ele me dissera sobre a mentira, redimindo-se. Disse que era o sonho dele aspirar os ares de outras culturas e que preferia dizer a verdade a simplesmente desaparecer. Irada, contraí em ódio, em frenesi pela infidelidade. Pior: por ser desleal a mim. E mesmo que ele dissesse a verdade: ele não poderia ir, ele não poderia nem sequer pensar nisso. Pediu para que eu compreendesse, que me amava muito, mas era o mais lógico a se fazer, naquele momento. Lógico? Quem ousa falar de lógica aos apaixonados? Então gritei, completamente histérica (o que despertou um olhar de piedade que jamais esquecerei) para que fosse logo, o mais cedo possível. E que nunca voltasse!


No fim, virei as costas para ele e para mim. Suas últimas palavras, ditas com uma doçura cruel “É uma pena, Bianca, queria muito que viesse comigo...”, pareceram ricochetear pela eternidade, de quina em quina, parede em parede. Do passado ao futuro. O intervalo exato para que todas as imagens de momentos perfeitos me viessem à mente. Fiquei paralisada por minutos do tamanho de séculos, como estou agora, estupefata, desejando no abismo do meu âmago rasgar essas cartas. Queimar.


Mas elas eram minha única fonte de vitalidade. Ali estava minha bonança mesmo que atrelada ao passado. Não importa. Não vejo muita diferença entre minhas elaboradas ilusões e esses amores de chamas curtas. No fim, somos apenas eu, minha cama e minhas amadas cartas.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Marina

E quando das volúpias abrasadoras restaram apenas as brasas, fez-se silêncio. Não que fôssemos de muita conversa. Bastava ela abrir a porta e partíamos logo para as vias de fato. Porém, naquele momento em que cada um se vira para um lado da cama para contemplar a fugacidade do sexo, a atmosfera ganhava um ar lúgubre quase palpável. Clamava pelo decoro da verbalização. Embora talvez um pouco hermético, sou um bom samaritano... Abriria, embora não sem desprazer, as cortinas para o diálogo. E só isso bastava: ela o manteria sem exigir interlocução.

- Acha que isso está certo? Nós...

Fácil. Já era capaz de senti-la se munindo de argumentos. Pigarreou, erguendo o lençol numa austeridade de fêmea ressentida. A simples interrogativa que eu dissera ocultava um acervo de julgamentos silenciosos que, se outrora tecia um palco pecaminoso propício para a consumação daquele erro, agora era apenas sujeira a enfiar por baixo dos tapetes já imundos. Fingi um bocejo despreocupado. Marina sustentava de pé a nudeza desavergonhada. Fitou-me de soslaio por cima dos ombros e, a passos barulhentos, dirigiu-se ao banheiro no aposento ao lado. Podia imaginá-la defronte ao espelho, buscando o amor próprio tão ausente nos traidores. Depois reunindo conchas de água fria para reavivar a face. E para enfim galgar em si mesma e dizer:

- Nem comece com esse papinho, Gustavo. Esse moralismo todo não funciona comigo, você sabe disso. – como eu haveria de saber? Dela eu só conhecia os gemidos entrecortados, a respiração falha e essa falta de pudor bem mascarada. Até nas palavras! – Não estou te segurando aqui...

Sem fechar a porta, ligou o chuveiro. O som de chuva fraca me desfez do dever de pensar em algo pra falar. E em pensamentos sobre não ter o que pensar, acabei por me perder na pequena trégua que o tempo dava. A falsa chuva então se reduziu a um gotejo e outro. Pensei nela como uma cadela e ri. Algumas cadelas feridas latem, furiosas; outras choram. Mas sempre voltam para o dono. Ela latira e voltava para vestir-se. O cenho todo contraído e as sobrancelhas em finos arcos de ironia cravados na testa. Espreguicei-me em sua cama, ao som de outro bocejo - agora longo e sincero. Eu não poderia me levantar e ir embora, assim de supetão. Era fácil de prever os vômitos de chantagens torpes e as pragas, as maldições. Ela se contorcendo em prantos fingidos como se representasse a vítima de um engodo maligno do qual eu seria o articulador. O único. Não... Preferia suportá-la mais uns minutos (já que poucos minutos se passariam até que ela se convencesse de sua pureza) a sentir o gosto enjoativo da exacerbada emotividade feminina. Ou talvez eu não partiria pois sei que, sem muita cerimônia, desejaria voltar a possuí-la em breve. Naquele instante me parecia uma proposição insólita, mas há muito compreendi as engrenagens da carne.

- Eu não nego que sou pecadora: aceito. – continuou, com azedume, esfarelando um pó meio róseo sobre as maçãs do rosto para amenizar a aparência de notívaga. – Não vou ficar me crucificando por ser, antes de qualquer coisa, humana. O pecado é humano. E se na criação de Deus há espaço para o pecado, irei viver com ele e suportarei as consequências.

Quanta erudição! Mas não cabia me deixar seduzir pelo arranjo dessa desenvoltura na oratória. É bem verdade que essa ornamentação toda, ao sabor do meu julgamento, expunha com clareza uma fragilidade latente. Que pulsava. E só encontrava em discursos fantasiosos a anestesia para a dor viscerosa. E muito embora isto não comumente se sucede entre amantes: tive uma réstia de piedade.

- Mas você realmente ama o Gabriel?

- Claro que amo! – vociferou, num rompante teatral – Até no ato de trair eu estou manifestando meu amor por ele, você não consegue ver?

Ora, é evidente que amava! Não amá-lo significaria rever uma série de escolhas feitas ao longo da vida. E se admitir fracassado exige muita força. Exige dissecar cada proposta recusada e projetá-la num futuro que nunca virá. E se for belo: frustra. Exige lembrar das promessas poéticas de amor eterno e as juras tão bem ensaiadas. E se tudo se mostra muito efêmero: frustra. E os frustrados não se importam com o próprio caráter. Ou melhor, se acomodam pela incapacidade de libertação. Eis o ciclo: a traição era apenas um trecho sinuoso.

- Manifestando com mentiras? – pontifiquei, estranhamente protegendo meu irmão.

- Vê se tira essas viseiras, Gustavo! – e se ela estivesse tentando ser intelectual com essas metáforas, só conseguia me soar mais patética – Nessas mentiras que eu revelo o desejo de protegê-lo, não percebe? As histórias de amor da vida real são diferentes dos contos de fadas. Se não o amasse caía fora do casamento há muito tempo, nem precisaria mentir!

Contraditório, eu. Como poderia julgá-la? Se ela, altaneira, não se utilizava dessa incoerência como argumento, certamente almejava o cessar fogo. E o pescoço se virava para os ponteiros, em desalento, mais rapidamente do que os próprios ponteiros seriam capazes de girar.

- Logo o seu irmão chegará com as crianças. – sei que ele demoraria, ainda. Mas era um convite que ela sabiamente elaborara para uma retirada sem vencedores. Deveras convidativo.

- Bem, eu vou indo, então...

Recolhi as peças de roupa espalhadas aqui e ali, vestindo-as sem delongas. E vi, pelas janelas, os anúncios da noite no céu purpúreo. O pôr do sol, que fazia os pontos luminosos acenderem pouco a pouco pelo horizonte de concreto da cidade, mergulhava o apartamento já escurecido em mais penumbra. Num átimo de segundo, contemplei Marina com sua silhueta espavorida curvada no leito de nossa desventura. De olhos fechados e compressos. Estava ao resvalar da própria podridão. Trocamos olhares abissais: nos entendíamos.

- Quando posso voltar?

- Na terça-feira. Ou na quarta.

- Virei nos dois dias.

E nos despedimos. Rápidos sorrisos de meio lábio.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Anita


Era do tipo de homem que cataloga, analisa, discerne. Desse tipo raro. Ourives do próprio caráter. Bom em palavras cruzadas, jogos de tabuleiro, desafios de raciocínio. Bom em qualquer tipo de diversão solitária. Também dotado de muita minúcia, devorava detalhes por mais detalhes e mais e mais. Sempre implacável com os erros ortográficos. Ao revisar os textos dos colegas, comprimia a visão e corrigia consigo. Em silêncio. Repudiava o papel de piegas. Apesar de, na maioria dos casos, a crítica que não vinha em palavras mas vinha em olhares debatia áspera nas feições de escárnio dos outros funcionários. Era fácil ler aqueles olhos de pupilas gordas e também as íris. E lá ia Diogo ascender glorioso no palanque dos chatos! E acendia um cigarro e outro. Como bom observador, acabava atuando para evitar atritos – e eis um ponto crucial de sua personalidade, essa coisa de evitar atritos. Então, desenhava um sorriso de complacência. De forte metido a fraco que treme de medo da própria força. E fumava...

Não era dos mais modernos. Tinha um carrinho simples. Gostava mesmo é de andar. Ia caminhando para a empresa, nem tão próxima nem tão distante de onde morava. Mesmo nos dias chuvosos. Mesmo nos dias de tempestade. Até mesmo nos dias de folga. Aos passos largos de quem constrói altar para a pontualidade, lia as placas de carro em busca de algum sentido. Lia ao contrário o nome das lojas, os títulos das músicas. Quando encontrava alguma informação escondida, deleitava-se numa diversão infantil e triste. Aquela tristeza amarga de quem não tem a quem compartilhar. E da solidão brota o materialismo funesto dos pobres. Suas gavetas de madeira cara obedeciam a uma lógica fácil e inalienável. Livros pelo tamanho e discos pela ordem alfabética. Remédios – os intocados e intocáveis remédios – dum lado, as fotos de parentes longínquos noutro. Sempre limpas: aquelas gavetas escondidas nos poucos móveis que guarneciam o quarto ao fundo do modesto apartamento. No fundo de si ardia lasciva a saudade. Saudade de algo que nunca viveu – sua amiga, a frustração. A única.

Mas pra reconstruir aquele encontro, aquela obra megalomaníaca do acaso que unira as duas almas díspares, cabe entender alguns retalhos na cortina vermelha que esconde a peça.

Sobre seus ódios e medos. Entre tudo o que odiava e mais que tudo, estavam os erros. Os de qualquer espécie. De qualquer dimensão. E mais ainda dos conformados: de gente que se faz de orgulhosa por errar e revelar o podre. Como se pudesse servir de álibi. Os ourives não aceitam falhas. Eles lapidam, incansavelmente. E eis que um dia, desses bem típicos a princípio, bem rotineiros, Diogo se torna algoz da condição humana a qual procurava evasão. E erra, grotesco. Na sala de estar, a lisura rósea das paredes exibia apenas uma mácula - um prego que sustentava um calendário de padaria. E mesmo assim esquecera do aniversário da mãe. Data assiduamente santificada na família. Lembrou-se na tarde agora atípica, num supetão enraivecido que o fez sacudir violentamente a xícara de chá. Bem que eu achei estranho ela não ligar nos últimos dias! pensou, imaginando formas de se redimir. Fantasiou mentiras. Ensaiou a mansidão da fala e os votos de boa fé, os exauridos. Inútil: alguns erros são simplesmente imperdoáveis. Melhor seria não tentar. Juntou as pálpebras com os dedos, levando a outra mão ao bolso e desligando o celular. E naquele silêncio nasceu o temor. O prurido na consciência. E na garganta uma nódoa viscosa. Não seria capaz de enfrentar aquelas chantagens. A velha aludiria a uma emotividade típica de quem está pra morrer. Não estava munido de paciência. Uma mistura de tédio e medo o invadia. Talvez a mãe também o xingasse. Em marteladas ferozes na casca rija do caráter que ele polia no suor. Não suportava rachaduras. Era essa sua coisa de evitar atritos.

Brilhou a lâmpada das ideias: precisava de férias! Talvez não. A verdade é que não. Mas se convenceu disso. Embora não sentisse fadiga, tinha motivos para senti-la. Ora, já se passara quanto tempo desde o último descanso prolongado? Dois anos? Três? Não sabia. E como bom funcionário, direito tinha. Tiraria uma semana. Excitação e euforia se introjetaram naquelas artérias e veias sobressalentes. De um lado para o outro, entre cigarros e fumaça e brasa e cinzeiros e cigarros, esquecera da velha. E dos velhos recentes tempos: do Diogo com postura de velho, jeito de velho, rosto de velho. Mas enfim encontrou a palavra. Almejava no âmago, talvez sem saber, uma metamorfose - e que fosse completa. Que o completasse. Que o transformasse. Uma verdadeira combustão na alma. Pronto. Traduziu o rebuliço e se acalmou.

Dois dias depois comunicou ao chefe e tirou licença. Voltou caminhando. No ensejo da reforma íntima, começou uma luta voraz contra os próprios símbolos. Os símbolos criados por uma personalidade que ele queria abandonar. O perfil certinho, perfeito, polido, prolixo, mas sempre mal interpretado de outrora: nunca mais! Brindou o egoísmo, o politicamente incorreto. Começou então por ignorar as placas e os letreiros. Mudou o passo, agora numa lentidão de quem não tem compromissos. E não tinha, e se regozijava gargalhando alto. Fez promessas de libertinagem com pecados e futilidades. Coerente, afinal, enterrava ali o fardo de joalheiro de si mesmo.

Mas o mundo... O mundo não parecia diferente. Aquele cinza que manchava a paisagem urbana persistia. Tudo era cinza e de concreto, e permanecia. E os folhetos espiralando no vento que alertava o nascer da noite, naquele zumbido fúnebre. Junto com o zumbido dos carros. E as buzinas com sua impaciência retinindo no mármore de qualquer lugar pra qualquer lugar, em qualquer lugar. Ninguém notava aquela metamorfose, como costumam notar nas borboletas. O mundo não parou de girar. Meu fado é não ser notado? perguntou-se em represália.

O mundo resolveu dar uma trégua.

E enfim, configurando o que seria então o cenário principal de sua trama de existência, eclodiu de súbito um estampido metálico ensurdecedor. Num arco reflexo, protegeu a face nas palmas das mãos e curvou a cabeça. Quando do silêncio borbulharam os murmurinhos excitados, voltou-se para a rua. Um corpo esticado, num banho de sangue. Acidente de moto. Com vísceras à mostra e muita gente olhando. Ninguém agindo. Mergulhou num suspiro demorado, que lhe escapava tímido pela boca e pelo nariz. A verdade era que não se importava. E que se danasse as regras de boa conduta! Ainda não se importava, nunca se importou. Deu de ombros e deu as costas. Mas não completamente, pois aqueles olhos de tâmara o impediram de completar o giro de calcanhar. Aqueles olhos de tâmara...

Aqueles olhinhos comprimidos em pílulas. Compactos, atentos e estáticos. E seus cabelos, os longos, muito longos, eram os únicos da multidão que se debatiam loucamente contra o vento. Desesperados, alucinados. E lhe beijavam a boca, vibravam no ar, giravam vigiando a nuca e depois precipitavam em cascata sobre os ombros delgados. Segurou-os, agora cativos. Mas ainda na sacudidela. Pulso firme. Diogo, dez passos distante, fulminou-a. Seu corpo se eriçava em uníssono. Ele todo. Não que a silhueta fosse das mais belas. Não era. Viu sardas, pintinhas, cravos, saliências. Também a gordura envergonhada em pontos localizados. Notou a forma como tampava os lábios com a mão... Como se tivesse medo do animal humano. Que mulher diferente! Tinha algo de pura, calma, tímida. Ou somente calma. A verdade é que ela pareceu perceber o fuzilamento visual e retribuiu. Com seus olhos de tâmara. Libertou os cabelos estonteados, em molas. Afrouxou o pulso. Sorriu.

Naquele instante, naquele exato instante, se existe alguém sentado num trono manipulando essas gracinhas do acaso, esse alguém se empertigou. Olhou altivo. Resolveu se divertir. Bancar o ventríloquo. Senão, o mundo resolveu dar uma trégua ao infeliz Diogo, impulsionando-o na quebra dos próprios símbolos. Outra hipótese é que tudo não passa de coincidências, efêmeras e casuais. Como a vida. O fato é que eles se atraíram, como os pólos opostos de um imã. Ela, com as mãos mergulhadas nos bolsos de uma bermuda branca, não se moveu. Ele o fez pelos dois. Foi, sem delongas. Ele, outrora desprovido de qualquer impulsividade.

Começou com o pretexto da preocupação, o falso pretexto. Perguntou o motivo de tanta palidez, se precisava de água, de carona, de qualquer coisa. Ela negou tudo, de menos a conversa fática. Era o seu tom de pele natural! Exibia os dentes grandes. Meio alienada, flutuando no diálogo. Tentou ir mais fundo, perguntou o nome da moça, que lhe parecia poucos anos mais nova. Quatro, no máximo. Me chamo Anita, respondeu, adocicando a voz. Prazer, o meu é Diogo. Prazer. Não houve contato físico.

E os carros com suas buzinas. A cidade e o seu cinza. Os folhetos e suas mensagens aleatórias rodopiando aqui e ali. O aglutinado se dissolvia. A ambulância chegou e foi. Acabou a festa. E só restaram os dois, no meio da calçada. Envoltos numa esfera de silêncio. Ele fingia esperar algo, ou alguém, enquanto pensava no que dizer. Ela ainda parecia flutuar, como se visse cores e alegria naquele centro urbano. Foi então que um punhado de gelo se derramou no estômago de Diogo. Essa é uma oportunidade única, não posso deixar escapar! Preciso pensar em algo pra falar. Rápido Diogo. Rápido, rápido! Anita se curvou ao relógio. O silêncio então se ceifou quando o homem, numa postura de quem já não tem mais nada a perder, abriu a tampa dos receios e limites e ferveu as ideias antes submersas no âmago. Embora sempre vivas. Amanhã estou indo viajar, vou pra Búzios. Quer vir? as palavras atropelaram umas as outras. Quis fechar os olhos.

Tá doido? Não tenho dinheiro! Nadinha nadinha, em risinhos, mostrando o avesso dos bolsos. Realmente vazios. Uma brecha... Encontrou a fresta e foi, sem olhar pra trás. Eu pago tudo, não se preocupe! Vamos de carro e vai ser tudo tranquilo, assegurou, sem pensar muito. Búzios tinha sido o primeiro lugar que viera na mente. Teria que pesquisar o caminho. Impulsos. Impulsos encarcerados ao longo de toda uma vida. Ajustou os óculos na base do nariz. E viu, pelas lentes de vidro grosso, os olhos de tâmara se esvaziarem. E germinaram olhos de damasco, faiscantes. De fogo, brasa vermelha. E crepitava. Queimando na órbita. Digeriu as informações em poucos segundo. Enfim, escapuliu um gritinho de excitação, meio débil: então eu aceito! Despediram-se com meros arqueares de sobrancelhas e ela pediu para que a esperasse ali, no dia seguinte. Ele concordou. E partiu. Sem toques. Lembrou-se de sorrir, ao vê-la diminuindo no horizonte vertical.

Destrancou as portas do singelo apartamento com certo receio. Sem saber de que. Com firulas em meu próprio lar? murmurou para si. Uma pequena abertura na janela revelou a lua. A lua e sua benção de prata. Por segundos, pôs-se a admirar as nuvens convergindo para a iluminação. E os segundos convergiram em minutos. E as nuvens convergiram até se fundirem em trevas. E depois eram apenas nuvens. Uma lufada gélida adormeceu-lhe a face, com o sopro inebriante da noite. Assustou-se, num calafrio exagerado. As mãos em concha em frente à boca. Baforadas quentes... Foi à cozinha. O coração zumbindo, a pulsação rente ao pé da orelha. Havia algo naquele silêncio que o irritava. Como se fosse espiado, condenado, julgado pelas paredes anormalmente quietas. Aquele silêncio anormalmente doloroso. Esqueceu-se da fome e se jogou no divã da sala de estar. Conferiu o celular: nada. Procurou afastar resquícios de saudade da mãe, de altruísmo e culpa. Um toque de dor no peito. Encolheu-se. Se a dor fosse a consequência daquele caminho, estava disposto a enfrentá-la. Disposto a vencê-la, fazer dela cicatriz. E entre os pululantes pensamentos que circundavam o vazio daquele cataclismo interior, dormiu. E depois acordou. E enfim dormiu.

Antes permanecesse dormindo, e dormindo pra sempre. Pois aquela realidade tão bizarra precisava ser mantida; cada minuto de hora, prolongado; a ilusão, alimentada. Diogo se mergulhava, pela primeira vez, na vibração de um calor interno que nunca degustara. Nada fazia muito sentido, e mesmo assim fremia a cada sensação nova. Movido por esse desespero fulminante de quem se despe de uma personalidade que passara a sufocar, rompeu os grilhões da lógica e da boa fé. Pelo menos em sonhos. Bastou um toque num botão para gerar um titilar nunca tão áspero. Que o acordou, que o colocou de pé no resvalar da manhã. E mais que isso: que o fez emergir daquele poço de fantasias. E revestir-se e enraizar-se definitivamente nas vestimentas de outrora. A campainha.

Meu filho! Que saudades! Desculpa te acordar, mas vim de tão longe pra te ver... Só faltou você lá no sítio no dia do meu aniversário. Mas não vou te xingar, tá? Sei que você não gosta... Meu Deus! Que aparência é essa, meu querido? Parece tão pálido. Vem, me dá um abraço. Hum... Como senti sua falta! Vamos, sente-se aqui: me conta como vão as coisas na firma, nos seus namoricos...

E correspondeu a cada palavra com sorrisos sinceros e afagos verdadeiros. E isso o corroia. Vergonha inata aos covardes. Procurava não imaginar aquela moça esperando-o. Curvando-se ao relógio: os cabelos debatendo-se freneticamente. Levaria muitas coisas para a viagem? Muitas malas? Fingiu duvidar que ela apareceria, e convenceu-se. E entre os atritos tantos que já evitara, eis o maior. E se tentasse relembrar sua aparência, só lhe viria uma neblina disforme, e aqueles olhos... Ora de tâmara, ora de damasco. Anita! Num suspiro de derrota consentida, olhou para aquelas memórias como um adulto vê, resignado, as peripécias de uma criança. O espírito revoltoso de um jovem. Arrastando-se, assim viveu, entre encontros e tarefas e correções e críticas e futilidades e formalidades e cigarros e lágrimas, lágrimas, lágrimas.

A mesma abertura na janela. O sol a pino, a benção de ouro. Havia luz para todos. E as nuvens, ainda assim, eram somente nuvens. Nada mais.