terça-feira, 19 de novembro de 2013

Prefácio

- Você faz tudo errado!

Nosso primeiro contato, uma cisão completa de tudo. A Voz era qualquer coisa entre o vento e o sopro humano. Nunca soube de onde o vento vem – ele já nasce acontecendo e vai sem remorso. Ele toca sem o tato, cria movimento no invisível, embala todas as coisas na sua dança e parte sem lágrimas. Mas aquela dança cantava algo de definitivo. Eu bem sabia que a fonte estava logo atrás e acima de mim, embora eu não quisesse vê-la para não exaurir os olhos já cansados. Cerrei as pálpebras porque sentia que aquilo pertencia ao universo escuro e primordial, onde se fez com gritos o primeiro parto do silêncio. E então entrou em mim e retesou meus músculos, salpicando sobre minha pele algo bem parecido com um terror doce e comedido, como o medo que a fé instiga. Na audição, o som me atingiu por uma via alternativa às ondas comuns, que trafegam as estradas das orelhas, e foi direto ao cerne de tudo – não sei bem se no centro da cabeça ou no centro do peito. O timbre era semelhante ao meu, mas como que recitando uma maldição secular, carregado de matizes que decerto eu nunca vivi. Os moradores da casa pareciam acordados em ignorá-la, com uma tranquilidade tanta que poupava até os soslaios desconfiados nos quais meu olhar buscava alento, ricocheteando nos dois cantos do globo.

Outro vento veio e morreu em mim como um suspiro. Segui os outros e respondi a voz com minha ausência, carregando o estranho presságio de que, decerto, o futuro traria um diálogo abissal entre nós - como o vínculo eterno que une uma pessoa ao seu próprio pensamento.

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Ariadna adentrou o meu quarto e, mesmo eu de costas, soube que era ela e o seu usual supetão cuidadoso. O resfolegar esfarelado de suas sandálias pobres no firmamento era tão particular quanto os sons das espécies. Áspero como a tentativa de um atrito. E também a sua candura impetuosa, que lhe dava a liberdade de invadir o cômodo e violar qualquer regimento, era embalada por um cheiro doce de alecrim. Era a única mulher que eu conhecia com odor de chá quente. Seus passos deixaram uma meia lua de poeira no chão, e logo ela estava mais perto de mim que os próprios segundos. Ela sabia que, apesar de deitado, eu não estava dormindo. E nem perto disso. Sentou-se à margem, equilibrando-se entre o colchão e a madeira, afundando os dedos e unhas de harpia na minha cabeleira desgrenhada.

- Como você está hoje, Fernando? – aquele tom de voz era uma pena cinza que se equilibrava entre repreensão e a preocupação. Quando finalmente ergui o meu olhar para enfrentar o dela, seus olhos me lançaram uma opacidade incomum. Eu respondi com um sorriso de meio lábio, um esgar azedo e uma flutuação das sobrancelhas. Respondi com a resignação própria da derrota.

Ela sorriu de volta, levando uma das suas mãos a brincar com um colar que pendulava em seu pescoço, rodopiando um topázio com a letra M cravejada na sua superfície. De alguma forma aquela pedra parecia dançar na mesma frequência do meu cárcere. Tudo o que estava em volta transformou-se em um borrão lento, e então aquela esfera amarelada e eu estabelecemos um diálogo entre o silêncio. Eu deveria extrair algo dela, já que espontaneamente ela não me falaria nada. E isso não é óbvio.

- Todos nós estamos preocupados com você, Nando... Queria que você procurasse alguma ajuda profissional. Sei que você é cabeça dura demais e que provavelmente nada do que eu fale vai adiantar, mas eu estou tão aflita! Bernardo me contou que você anda virando o pescoço, assim do nada, como se estivesse ouvindo alguma coisa ou imaginando alguma coisa.

Ela usou a pior palavra existente: imaginar. A que me causa mais asco. As verdades que eles insistem em ignorar eu vejo com o pincel do real. Possui estabilidade, corporeidade, nitidez, completude. Se o que eu vivo fosse tão somente fruto de uma atividade excessiva da imaginação, eu poderia alterar as percepções e me embriagar das ilusões dos meus pecados. E eu não posso, definitivamente! Eu não preciso fechar os olhos para ver meus pesadelos. Eles estão em todo o lugar, e nessa pedra dourada que ressona. De alguma forma Ariadna esperava que eu não fosse lhe responder, porque há no diálogo entre o normal e o louco um mutismo esperado por parte do último. Mas a razão disso ela não seria capaz de entender, e isso já é a própria razão - a sua absurda e incalculável ignorância -, que lhe deu oportunidade de continuar o despejo.

- E seu comportamento também mudou! Antes você era extrovertido, alegre, brincalhão! Hoje você parece que vive numa depressão gigante, sem querer conversar com ninguém. Lembra que a gente costumava rir de todo mundo e falar um monte de bobagem? Eu sinto falta daqueles tempos, sinto falta de ver você bem!

Sim... Isso faz três meses, antes mesmo que A Voz se dirigisse a mim pela primeira vez. Toda a Terra mudou de uma forma inclusa, interna. Hoje eu me sinto o núcleo, o centro, e isso não é meramente uma atividade egoísta da minha personalidade em frangalhos, porque não é algo com a qualidade pueril das flores. É tenebroso, maligno. Eu sou o destino de muitas pessoas e todo o meu afeto de paciente terminal reflete no planeta em circunstâncias terríveis. Em catástrofes, em hecatombes que implodem em mim e explodem em tudo que está por fora. Os olhos do mundo me fitam através do tempo, me escolheram por algum motivo triste.

- Eu não diria que estou com depressão, Ariadna...

Ela pareceu gostar de me ouvir, mas o lampejo da realidade do que eu me tornara não a permitiu que me encarasse por muito tempo. Girou o pescoço, com falso interesse no resto do quarto. Não há água no copo da cabeceira. É isso. A estrutura de vidro e suas pequenas ranhuras permanecem intactas, mas a água não está suja, não está maculada. Ela apenas não há. Os rios por onde fluíam os sentimentos secaram no agreste desses fenômenos, aniquilando todo o meu interesse por paisagens. Até mesmo as paisagens em trevas.

Uma gota suicidou pela pálpebra inferior da mulher, debatendo-se nos lábios crispados. Senti o teor salgado daquele sacrifício como se fosse em meu próprio corpo, de forma que precisei molhar a minha boca com a língua para dissolver essa lamúria. Ela suspirou num embalo de incredulidade, e por um momento pensei que se desfaria em gargalhadas e em contraturas musculares desordenadas. Ariadna tinha muitas máscaras e muitas delas eram tão rachadas quanto eu.

O M que ela carregada no pescoço talvez fosse de máscara... Ou de maldição, mentira, medo. A pedra ainda reluzia, ainda vibrava e revirava fora dela e dentro de mim. Os borrões ficaram mais intensos e eu podia sentir ondas viajando pelo ar e se fazendo engolir no meu peito arqueado. Tremulou como se não suportasse ser o canalículo de tanta energia, e enfim se transformou num objeto transmissor da própria Voz.

- Mate o impostor! Mate o impostor! Mate! Mate!

M. Morte. Quando a verdade se elucidou como a cidade que se livra da névoa, pude ver na jovem mulher um sorriso aberto que precedeu um afago ligeiro na minha mão, que deixou uma descarga elétrica tênue, mas suficiente para manter o chiado vivo. M, missão, mensagem, martírio. Entregue a mensagem, ela iria embora sem dizer nada. Ela não era autorizada, nem os outros. Ninguém. Era como se o chá que ela viera degustar na minha companhia chegasse ao fim, e não há interesse por xícaras. Mas não se despediria sem me desferir, já próxima a porta, uma singela e lânguida piscadela.

Era o regozijo de quem observa como um pesadelo pode ser longo, muito longo, deliciosamente longo. 

sábado, 26 de janeiro de 2013

Hoje não escreverei sobre você.




Hoje não escreverei sobre você.

Ao invés disso, escreverei sobre as famílias. As famílias e suas estruturas tão distintas. Há quem ouse dizer alguma coisa sobre “família estruturada”. Quem pode? Há quem diga que a família é a base de tudo, o porto seguro, a mão cálida que te segura quando ninguém mais está por perto. Outra corrente aposta no oposto: a família está sempre estragando nossa personalidade com seus julgamentos deturpados e relações mal estabelecidas. Escreverei sobre os traumas de mães ausentes, pais violentos e irmãos prodígios. Escreverei sobre as várias brigas que presenciei em casa, tampando os ouvidos com o travesseiro e implorando para que os sons dos gritos acabassem. Escreverei sobre a fúria de uma mão que me marcou a face, que me levou ao chão. Escreverei sobre sangue e sobre gritos. E sobre como fui até você ao telefone, aos prantos, procurando remédio na sua voz firme e protetora. Você me pediu para te esperar na rua, e em menos de cinco minutos te vi tentando disfarçar a felicidade de me encontrar depois de tanto tempo – rir naquele momento seria zombar da minha tragédia. E rimos juntos.

Não, hoje não posso escrever sobre você.

Então escreverei sobre viagens. Sobre meu espírito aventureiro, alma inquieta, arredia e furiosa. As paisagens de praia, cachoeira e floresta. Como o cheiro do mar me evocava lembranças de infância que eu nunca tive, imagens silenciosas na minha mente de situações não vividas, que logo são esquecidas quando me bate o vento gelado da noite. Escreverei sobre os solitários passeios na rua. As pessoas estranhas perambulando na calçada, elas e suas vidas completamente desconhecidas. São tantas pessoas, tantos destinos. Tantas linhas que se cruzam e se divergem todos os dias, as mãos atadas, as mãos em tapas. Escreverei sobre como o cheiro da dama da noite me faz pensar em morte, mas sem desespero. Como se o aroma me abraçasse e eu me permitisse. E tão logo me viessem esses pensamentos, me lembrava de você, que ficaria com a face retesada e diria que eu não poderia ir embora e te deixar só. Toda beleza do mundo que eu não compartilhasse com você era a mais crua solidão. Dessa forma eu tirava foto de todas as coisas, tentando registrar todos os segundos, e quando esse tempo presente virasse tempo passado eu o mostraria e então seria também o seu passado. Você estaria mais ali que todos esses homens e mulheres e seus diálogos randômicos. Eles caminham na areia mas é você quem deixa marcas.

Não! Hoje me recuso a escrever sobre você.

Vou pegar um papel e desenhar pessoas e hospitais. Escreverei através dessas linhas sobre como as pessoas são diferentes em hospitais. E como eu gosto desses ambientes de uma forma estranha. Eles revelam com facilidade os avessos dos indivíduos, as qualidades que muitos insistem em reprimir. As paredes de cores frias, um cheiro sempre gelado que nos toca lá no estômago. Os parentes reunidos, os olhares cúmplices e a preocupação que por muito foi renegada agora estampada em faces carrancudas e lágrimas não economizadas. Sobre como tudo é tão branco, tão esterilizado que me faz pensar no paraíso. O coração na iminência de parar, membros perdidos e os poucos meses de vida. O peito que infla no susto da nossa maior certeza, mas nosso assunto menos tocado. E então escreverei sobre a morte. E assim não poderei escrever sobre você já que me representa totalmente o oposto, tudo que tem cor, tudo que é quente e acolhedor. E por vezes você me representa o inferno, o culminar dos pecados, meus pensamentos voluptuosos. Você me faz ir da lápide ao sacro, do preto ao branco. Conheci o meu avesso do seu lado e você sorriu pra mim, segurou minha mão com força. E quando nossos dedos se cruzavam numa empunhadura só, por alguns segundos eu ficava em dúvida de quais deles eram realmente meus. Acho que isso é reflexo da pura aceitação que nos colocou de frente.

Já disse: hoje não é sobre você que escreverei.

Decidido, então, escreverei sobre deitar na grama e olhar para as estrelas. Interessante como eu faço isso algumas vezes na minha própria casa, onde as luzes da cidade ofuscam o brilho do céu noturno, mas ainda assim, quando fito com força, consigo ver o universo engolindo a Terra. Quantas coisas ao nosso redor seríamos capazes de perceber se nos concentrássemos um pouco mais? Posso escrever sobre como todos nós estamos interligados por uma força misteriosa, de um diálogo entre a astronomia, a astrologia e toda a fé da humanidade, que nos molda no mesmo destino. Somos todos poeira da mesma poeira, matéria da mesma matéria. Difícil não acreditar numa resolução divina ou esotérica. E então aquela estrela pode então ser eu, eu numa constelação qualquer cumprindo um papel qualquer. Emitindo um brilho tímido que por vezes é ofuscado por outro brilho ou por outro astro. E me vem uma estrela cadente. Espero que não seja você. E quando uma daquelas estrelas se apagar, nenhuma se lembrará, e ela terá se apagado na mesma esteira do tempo que me acorda todos os dias, o esquecimento inegável. Você, não, não. Jamais te esquecerei... Sobretudo do dia em que foi no repouso da minha barriga que você viu esse mesmo quadro. Um sorriso tímido no rosto, o silêncio sepulcral mais adequado que qualquer barulho. A cumplicidade verdadeira não é palavra, é não-som. Quando os corações se sincronizam e os pensamentos se tornam um só. A expectativa de uma fusão corpórea e etérea. Não sei onde eu começo e você termina. Quando a frase é minha ou se veio de algum lugar da sua mente.

Deve ser por isso que não dá: sempre estou escrevendo sobre você.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Beijo


A grande verdade é que quando te olhei não quis beijá-lo. Enquanto você falava, e eu sinceramente prestava atenção, meus olhos mapeavam cada um dos seus traços com a curiosidade de uma criança que vê algo completamente novo. E o que todas aquelas linhas que confluem no que você é me mostraram eu ainda não tinha visto. No costume de sensações que me aparecem pelos olhos e se manifestam no corpo, eu ainda desconhecia o que presenciei ali, quando fitei você e reverberou foi no fundo de alguma coisa, onde o corpo não responde, onde o corpo não se excita. Apenas o peito que gela, a voz sai arfada e o pensamento: sempre em ti. Algum abismo dentro de mim que você alcançou apenas sendo.

De forma que fui pra casa respirando pela boca. A estrada passou como possibilidades... Percebi que eu queria te levar. Onde? Não importa. Mas eu queria te levar do seu mundo para um que fosse nosso. Para isso qualquer tipo de abstração era válida, de viagens inimagináveis a crueldades sem motivo. De símbolos que poderiam nos ligar pela eternidade - talvez eu buscasse a completude contigo.

Não nego que posso estar te amando, ainda que eu não saiba a duração nem a maquinaria disso. Nunca soube. As pessoas nomeiam sensações distintas pela mesma alcunha, mas o que sinto é esse desespero de chegar no quarto à noite e ver paredes, e ver cama, e ter que deitar na iminência dos pensamentos de solidão, acumulados na superfície do travesseiro apenas esperando o repouso dos meus ouvidos. Talvez eu quisesse sim, beijá-lo, mas não porque o meu corpo pediu através de uma volúpia efêmera, mas na tenra necessidade de te fazer meu por alguns segundos, que agora imagino no pensamento, o tempo passando lento enquanto os lábios se conhecem. Mas eu não poderia dizer “seja meu”, da mesma forma que não queria possuí-lo sem que as intenções tivessem claras. Resultado: nada fiz, e toda a energia que ficou na idealização agora retumba dentro de mim em forma de dor. Fecho os olhos com força e peço que me venha um sono longo, anestésico e revigorante. E então me vejo acordado cinco horas depois, a palpar o celular. Nada.

Fecho os olhos para escrever essa carta. Desde que te conheci meus olhos parecem mais pesados. Me voltei para mim. Talvez no escuro que as pálpebras me fornecessem eu posso tentar localizar onde foi que me atingiu, esse ponto fraco execrável que me deixa mais curvado, mais sensível aos sentidos todos. Sempre surge seu rosto, o sorriso acompanhado de um meio esgar, a voz de um timbre tão único. A vontade de tomar todas as suas dores para que esses sorrisos sejam tão eternos quanto a probabilidade que me trouxe até você.

Quantos caminhos se cruzam mas não fazem nó? Quantas possibilidades e histórias não são vividas enquanto aguardamos, na inércia, o passar dos dias? Dói... dói saber que nós temos tudo pra nos ter e nada teremos. E recobre sobre nós um silêncio-incógnita que nos deixa a própria revelia. Ou talvez eu esteja falando apenas de mim. Da solidão que me é destino. O lábio seco, a mão sem a sua.

Preciso desaparecer.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Sala de Espera


- Não se incomode tanto com o avental, com o tempo você se acostuma...

- Foi esse constrangimento para você também, no início?

- Ah, para mulheres é um pouco mais simples... Não tenho tanto pudor com essas coisas.

- E também nada pendurado entre as pernas que você precisa ficar escondendo.

- Bem, isso eu já não garanto.

- Não sabia que restava espaço para o humor, aqui...

- Ele sempre dá as caras quando as lágrimas já se secaram todas.

- Entendo. Eu sou Gabriel, terapeuta. Você?

- Juliana, professora infantil.

- E o que você tem?

- Num outro momento... O enfermeiro já me chama. Até mais, Gabriel!

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- Boa tarde!

- Boa.

- Hoje você parece mais triste...

- É, coisas de família. Minhas irmãs estão cedendo ao fardo.

- Se precisar de companhia...

- Obrigada. Mas depois de ficar tanto tempo nessa sala, acho que aprendi a lidar.

- A gente sempre acha que aprendeu a lidar...

- Ora, está com problemas de aceitação, terapeuta?

- Somos os que mais têm. Hoje você está mais linda que ontem.

- E o senhor mais confortável no avental.

- A gente aprende a lidar...

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- Olá Juliana!

- Oi, oi! Hoje eu estava pensando em jantarmos depois daqui, o que acha?

- Não sei...

- Achei que gostaria da ideia, você comentou antes sobre ser minha companhia.

- Eu pensei melhor e acho que nossa relação deve ficar somente aqui, nessa sala. Muito complicado levarmos isso para fora porque sabemos o quanto somos efêmeros. Não sei se estou forte o suficiente para sustentar um vínculo que certamente logo se acabará. Acho isso manifestação da fragilidade em que a gente se encontra. Nos agarramos nas meras possibilidades, nas mais óbvias ilusões.

- Entendo...

- Não fique chateada comigo.

- Sabe, Gabriel, existe um momento em minha profissão que considero muito bonito. Quando a criança consegue, pela primeira vez, ordenar as palavras de uma frase na leitura e repeti-la com boa entonação. O olhar arregalado e o sorriso de vitória após dias e dias de fracasso lhes causa uma felicidade tão grande que eu sentia aquilo tudo reverberar em mim.

- Sim, sim...

- E pensando agora eu vejo que não terei mais nenhum tipo de experiência transcendental na minha vida, que logo acabará. Eu não consegui alinhar as coisas de forma a ler a minha própria frase. Não sei que frase é essa que me rege e, dessa forma tão cruel, me mata. Sei lá, acho que fantasiei coisas com você muito em busca desse sentimento de que somos especiais, de fenômenos fora da racionalidade e da lógica que nos abraça quando mais precisamos. Mas você tem razão. Sou uma idiota...

- Vida que logo acabará?

- É. Você deve ser de próstata e sobreviverá. Eu sou terminal, Gabriel.

- Lamento...

- Enfermeiro chamando, preciso ir.

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- Juliana?

- Oi?

- Achei que não a veria aqui hoje. Vim com o coração acelerado num daqueles pressentimentos ruins inexplicáveis. Ufa...

- Estou aqui, sim.

- O que houve? Está mais seca comigo.

- Não vamos partir para o lado pessoal, Gabriel. Tudo morre aqui, lembra?

- É que eu pensei melhor e eu quero te dar essa experiência transcendental que você disse. Na verdade, eu também busco por isso! Eu sempre neguei toda essa história de câncer e talvez eu estivesse mais frágil que o normal quando, sem querer, eu fui grosso com você e estou arrependido. De qualquer forma, deixe-me fazer parte da sua vida, mesmo que ela esteja no fim. Você é tão linda, e merece tanto!

(um beijo urgente)

- Obrigada, podemos sair na próxima semana. É minha vez de ir lá, enfermeiro me chama! Obrigada, obrigada!

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- Juliana? Juliana!? Enfermeiro, onde ela está?


- Ela não veio hoje, Gabriel.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Virgem


Seu riso é escarnecedor e faz minha base ruir de uma forma engraçada. Seus dentes não se alinham perfeitamente, mas acompanham a tortuosidade que você é - meio desleixada e profunda. Sua voz é um pouco lúgubre, um pouco arfada, e quando se enraivece torna-se miúda, mas vem de um instrumento dentro de você que aqui fora ainda não inventaram e logo se tornou meu disco preferido, que coloco para girar de manhã onde ainda não existem vibrações suas além dessas ondas que ecoam na minha cabeça, aqui e ali. Seus olhos, ah... Eu diria que posso ver o mundo através deles, também: tão pequenos! Dois pontinhos modestos num rosto sem intenções muito claras. Duas órbitas de movimentos comedidos que piscam em delonga, como que altruistamente dando espaço para os outros sentidos provarem o que há no mundo. As ranhuras nas dobras dos seus dedos são de uma geografia que me parece familiar... Quando encontro uma folha e um papel, assim de reflexo, desenho os continentes cravejados na sua mão tão delicada, dorso e palma. Na palma: eu.  Por vezes me pego imaginando como as células foram parar ali, conectando-se umas nas outras com força para que seus limites se desenhassem assim tão imprecisos. Cada unidade pequena que te compõe eu quis ser. Talvez eu seja... Sobre sua boca: há muita carne e muito vermelho, graciosamente distribuídos numa simetria de vales e picos. Quando se movimenta, quase ritmicamente acaba por se contrair e precisar ser umidificada com a língua, que em prontidão provê líquido e se recolhe em timidez. Como eu. Um dia quero fazê-lo por você, e finjo que esse desejo seja despretensioso quando na verdade já adquiriu o peso de uma ambição e o colorido de um sonho. O nariz é uma lâmina imperiosa que se ergue para formar a fronteira vertical anterior, juntamente com o queixo abobadado - mas ainda assim com um ápice visível. Se visualizo seu rosto de cabeça para baixo é seu queixo quem fala comigo. Quando você respira há um sincronismo entre nós dois que só eu sinto. A forma como meus pulmões acompanham o seu peito que infla arqueia o peito já dolorido, na cova em que me adentro. Procuro sincronizar tudo que existe entre a barreira de ar que nos separa, respirando assim com força, afogando e afogando e feliz. Seus fios de cabelo se organizam numa desgrenha incomodada, à avaria de alguma coisa que eu ainda não sei, revoltos em pequenos cachos de fios grossos e às vezes secos, firmes, os quais eu tranquilamente poderia afundar os dedos para bagunçar, falando de qualquer estupidez da vida, tentando te fazer gargalhar. Ou contando sobre meus maiores pesadelos, e então te contaria do medo da sua inexistência, cada dia mais real. Numa das orelhas uma argola de prata pendulava calmamente. A outra orelha totalmente nua. Duas conchas sempre atentas, mas virgens de mim. O relevo do rosto era esguio, o solo pálido mas com promessas a geminar, e algumas veias se enveredando na base das orelhas e próximo às narinas. As expressões eram compassivas e sempre harmônicas, como se tivesse ensaiado previamente como se portar diante de cada pensamento meu. Ou talvez porque você é cada um deles, separadamente e em conjunto. Não sei se descrevo você ou se descrevo expectativas, mas a exteriorização se faz necessária.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Singular



TERCEIRA PESSOA

João e Maria entraram na casa de supetão. As mãos do homem envolviam a nuca da mulher enquanto a língua percorria cada ranhura do pescoço ávido. Os dedos contraídos numa empunhadura maculada. Calafrios imobilizavam todo o corpo da fêmea, os poros abertos, a respiração arfante, a volúpia escorrendo pelo lábio como um líquido fresco que o predador encontra de surpresa.

Colocou-a na parede, força desmedida. Ela não sentiu dor: gemeu. No momento em que sua cabeleira caiu defronte à face e ocultou seus olhos, Maria tomou uma postura mais agressiva. Fera. Agora eram as suas mãos que vasculhavam o terreno do outro corpo. Unhas se tornaram garras. Os botões foram despregados com força e dois foram lançados pelo aposento, libertos da costura. O peito exibido entre as janelas da camisa azul era o convite à nudez. Arranhou o tórax do parceiro e as fronteiras da dor e do prazer foram imiscuídas num caldo ácido em que ambos se mergulhavam. Ela mais.

Virou-se, revelando o dorso do tórax, moreno e brilhante. Os próprios seios outrora quentes agora em contato com a parede gélida. Ainda quentes. Insinuou a pelve para trás para que ele a pressionasse, mas naquele momento João cravejou toda a sua força na nuca da parceira, que gritou em angústia. Investiu a cabeça de Maria para o lado esquerdo, jogando-a ferozmente no assoalho. Atabalhoada, a jovem mulher lançou-o um olhar de reprovação e desespero, as pupilas tremendo na órbita. Ele riu, malicioso, e uma gargalhada suspirosa ecoou nas paredes e no firmamento. Um segundo depois a sua feição tornou-se de pavor, algo que ela interpretou como arrependimento. Sustentar o olhar de Maria, naquele instante, parecia pesado demais para o agressor.

Diante disso, deu as costas e deixou a casa.

PRIMEIRA PESSOA

Eu com certeza amava Maria. Quando irrompemos em sua casa de campo como um casal redescobrindo a intimidade, nada mais eu poderia dizer a não ser sobre a felicidade e o embasbacado sabor da paixão, que me envolvia em completude. Seu corpo era como uma extensão do meu próprio, o antegosto de todas as imperfeições que eu detinha. Eu o segurava, meu cálice de vinho, com a delicadeza que acariciamos as mais belas aves, no desamparo que o tempo pouco nos traz. Ela me dirigiu um sorriso entredentes, e eu percebi que éramos cúmplices de um silêncio peremptório, que não permitiria que firulas engolissem os segundos, apenas esses longos grasnidos de tesão.

Enquanto os tatos ralhavam o atrito da combustão de nós, eu provava com o paladar o seu gosto tão somente agridoce. O paradoxo de mulher que era - um receptáculo de diversos personagens. Como me encantava a forma como ela se desvencilhava entre todas as possibilidades de sua alma artística para ser uma surpresa a cada encontro! Frágil e instável, portanto facilmente minha.

Poucos pensamentos perpassam a mente nesses momentos em que somos animais, na busca pela completude anatômica e espiritual com outra pessoa. Mas quando ela se colocou de costas para mim, a cabeça colada em perfil na parede, risível e de olhos semicerrados, toda a automaticidade daquele instante foi tomada por uma lembrança, a única que eu deveria confinar no arcabouço mais obscuro.

Ela, deitada sobre o sofá, com o dorso exposto, cantando qualquer cantiga infantil enquanto me convidava para a avaria, com a língua saltando por entre os lábios a respingar. Lábios adultos e pálidos. Também se chamava Maria, outra... O antônimo em essência. Ou talvez nós sempre busquemos por alguém que carregue consigo um pouco de nossa perdição. Outra Maria: o cabelo emplastrado do desmazelo de quem peca em afabilidade. O sorriso amarelado e rançoso. Ela deveria apenas zelar por mim, era minha cuidadora! Jogava algumas ameaças e chantagens nos meus ouvidos, os ouvidos sem defesa de uma criança. Eu atendia, sem entender, passos trêmulos e escorregadios. Se ela porventura gritasse comigo eu perderia o único porto seguro, a única âncora possível, e eu não entendia nada sobre malícias, sobre o ser humano. Ela apenas pedia para que eu deitasse sobre ela, e me posicionava mais ou menos na altura das partes mais úmidas de suas costas. Ela continuava cantando “o bom menino o bom menino o bom menino obedece, obedece, obedece...” enquanto se movia como uma centopeia com sua ninharia, me fazendo deslizar na extensão de sua anca. Estalava a língua emitindo sons que eu não compreendia. Eu não compreendia nada. Apenas permanecia ali. Minha primeira lembrança de vida. Meu primeiro pesadelo.

De alguma forma eu me senti dotado de força, essa estupidez adulta de pensar que se pode trilhar o próprio caminho, força que poderia me fazer mudar a experiência do passado borrado. Ambas, Marias. Do belo cenário fez-se a névoa, aerando-se no terreno fácil da raiva. Se elas tivessem algo em comum, ainda que o mísero desejo de possuir algo de mim, agora eu poderia impedir porque eu já me livrara do maior fardo: da inocência. Maria, sua desgraçada! Irrompi sobre ela com a força de um homem completamente bestificado, e pude sentir o verdadeiro prazer quando sua pupila se dilatou em pavor. Suas costas agora não ficariam viradas para mim, mas para o assoalho, para o inferno, para a dor!

Agredi a Maria errada. E então, sustentar o seu olhar esmaecido e puntiforme, que no passado foi o meu olhar infantil, era suportar o seu fardo de inocência ainda intacta. E eu sabia que não seria capaz. 

Enveredei pelo cômodo, a tristeza transubstanciada num estranho sentimento de superação.