domingo, 6 de janeiro de 2013

Virgem


Seu riso é escarnecedor e faz minha base ruir de uma forma engraçada. Seus dentes não se alinham perfeitamente, mas acompanham a tortuosidade que você é - meio desleixada e profunda. Sua voz é um pouco lúgubre, um pouco arfada, e quando se enraivece torna-se miúda, mas vem de um instrumento dentro de você que aqui fora ainda não inventaram e logo se tornou meu disco preferido, que coloco para girar de manhã onde ainda não existem vibrações suas além dessas ondas que ecoam na minha cabeça, aqui e ali. Seus olhos, ah... Eu diria que posso ver o mundo através deles, também: tão pequenos! Dois pontinhos modestos num rosto sem intenções muito claras. Duas órbitas de movimentos comedidos que piscam em delonga, como que altruistamente dando espaço para os outros sentidos provarem o que há no mundo. As ranhuras nas dobras dos seus dedos são de uma geografia que me parece familiar... Quando encontro uma folha e um papel, assim de reflexo, desenho os continentes cravejados na sua mão tão delicada, dorso e palma. Na palma: eu.  Por vezes me pego imaginando como as células foram parar ali, conectando-se umas nas outras com força para que seus limites se desenhassem assim tão imprecisos. Cada unidade pequena que te compõe eu quis ser. Talvez eu seja... Sobre sua boca: há muita carne e muito vermelho, graciosamente distribuídos numa simetria de vales e picos. Quando se movimenta, quase ritmicamente acaba por se contrair e precisar ser umidificada com a língua, que em prontidão provê líquido e se recolhe em timidez. Como eu. Um dia quero fazê-lo por você, e finjo que esse desejo seja despretensioso quando na verdade já adquiriu o peso de uma ambição e o colorido de um sonho. O nariz é uma lâmina imperiosa que se ergue para formar a fronteira vertical anterior, juntamente com o queixo abobadado - mas ainda assim com um ápice visível. Se visualizo seu rosto de cabeça para baixo é seu queixo quem fala comigo. Quando você respira há um sincronismo entre nós dois que só eu sinto. A forma como meus pulmões acompanham o seu peito que infla arqueia o peito já dolorido, na cova em que me adentro. Procuro sincronizar tudo que existe entre a barreira de ar que nos separa, respirando assim com força, afogando e afogando e feliz. Seus fios de cabelo se organizam numa desgrenha incomodada, à avaria de alguma coisa que eu ainda não sei, revoltos em pequenos cachos de fios grossos e às vezes secos, firmes, os quais eu tranquilamente poderia afundar os dedos para bagunçar, falando de qualquer estupidez da vida, tentando te fazer gargalhar. Ou contando sobre meus maiores pesadelos, e então te contaria do medo da sua inexistência, cada dia mais real. Numa das orelhas uma argola de prata pendulava calmamente. A outra orelha totalmente nua. Duas conchas sempre atentas, mas virgens de mim. O relevo do rosto era esguio, o solo pálido mas com promessas a geminar, e algumas veias se enveredando na base das orelhas e próximo às narinas. As expressões eram compassivas e sempre harmônicas, como se tivesse ensaiado previamente como se portar diante de cada pensamento meu. Ou talvez porque você é cada um deles, separadamente e em conjunto. Não sei se descrevo você ou se descrevo expectativas, mas a exteriorização se faz necessária.

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