sábado, 22 de janeiro de 2011

O que cortar?


Abro os olhos como quem sai do coma. As pálpebras hesitam, mas se afastam devagar. As cores surgem meio agressivas num caleidoscópio desordenado. Muito, tudo muito vermelho. Eu adoro vermelho... No fim, há só um teto. Daqueles de tijolos dispostos em pares, formando fileiras de quadrados entremeadas por grossas faixas brancas. Não parece bem uma residência típica do centro urbano. Mas eu estou aqui. Somos eu e o teto. E nenhuma parede - meus olhos não são capazes de viajar nas órbitas. Estão estáticos, vidrados. Não sei do resto do meu corpo. Não o sinto...

Mas há uma música! Uma mulher e um piano. E ela não entoava palavras. Apenas um suspiro de morte enquanto o pianista brincava com as notas de uma dança macabra. Um suspiro longo. Que viajava de um temor sôfrego a uma excitação frenética. E depois se debulhava numa somente respiração cansada. Passam-se alguns minutos enquanto aquela música parece me anestesiar. Por dentro, já que por fora eu não sinto nada. Nada, o vazio completo da consciência. E fico. Coisas como vida ou morte não fazem sentido debaixo daquele teto de tijolos. Pois aqui é o nada.

Há quanto tempo vejo essa mulher? Ela não surgiu gradativamente no campo de visão. Apenas apareceu, como uma foto costurada à minha retina. Os cabelos vermelhos precipitando em ondas de sangue. A primeira fonte de luz daquele cômodo. E o rosto forrado de uma pele desbotada, algo próximo do cinza, num relevo acidentado de manchas roxas discretas, como se a mais forte maquiagem ousasse construir uma máscara de normalidade. Inútil, era a face da tristeza se abrindo para um sorriso de maldade. Um sorriso que me mostra uma garrafa de vidro e um punhado de criaturas. Insetos: abelhas, formigas, escaravelhos e outros. E de tudo o que eu mais odeio e entre tudo o que eu mais odeio e mais que tudo, ela acertara. Insetos. Despejou-os sem delongas na altura do meu abdome. Mas eu não os sinto. Apenas fito sua face diabólica contorcendo-se numa satisfação doentia.

Dor? Não a física, mas pior. Imagino os insetos comendo e carcomendo minha pele com suas garras e presas. Dilacerando a extensão do que eu era e infectando-me com sua podridão. Sugando sangue, depositando em mim os ovos de sua prole. Dói! Mas não há grito não há movimento não há contração dos músculos. Dói dentro. Onde tudo o que penso se converte em desespero sólido. Em pesadelo vívido. E não consigo mais fechar os olhos. O que eu era apodrecia diante de mim e eu não podia ver. Primeiro, meu corpo. Agora, minha alma. Só restaria a mente para que pudesse ainda degustar daquela dor. E toda a força que eu desprenderia num clamor de fúria se volta contra mim e rebate no meu âmago ao me revelar que o que eu via bem ali, a mulher ruiva que se tornara meu algoz, eu já conhecia. Sim, como as memórias podem ser cruéis! Escondidas nas gavetas mais sujas da consciência. Ao som da melodia fúnebre que orquestrava o meu inferno particular, abrem-se, uma a uma.

Uma rua uma mulher um beco. Um homem uma faca. Aproximei-me dela cambaleante como usualmente fazem os bêbados. Tão sozinha e tão linda! Ah, como amava aqueles fios vermelhos que dançavam alegres ao sabor do vento! Seu rosto, ainda imaculado, era fino e frágil como uma flor de primavera que desabrocha para a noite. E desabrocharia agora para mim... Toquei-a com meus dedos oleosos e sujos e senti que já não havia como voltar atrás. Ela também estaria corrompida. Mas debatia-se como uma fera! Quando a levei ao beco tentando calá-la com meus beijos de álcool, ela gritou muito. Ora, que afronte me pareceu! Um tapa de força mal calculada a lançou no assoalho áspero. E o grito se reduziu a um gemido. Estava muito tarde, ninguém viria salvá-la... Firmei os joelhos posicionando-a entre minhas pernas. Ela se desesperava olhando aos arredores. E para si, pois eu rasgava sua blusa de rendinha com um único puxão e deixava marcas vermelhas em sua barriguinha branca como uma estrela da noite. Minha estrela! Como ela chorava! Calei-a com uma das mãos. Brinquei com a outra. E a mulher ainda se debatia! Tentava a todo custo me chutar nas costas ou me jogar de lado. Mas era uma flor, fraca como uma. Não me impediu de me despir e limpar o meu suor fétido naqueles cabelos ruivos tão lindos! Esfregava-os na minha face torpe e sentia um aroma calmo, gostoso. De rosas. Minha língua viajava na sua pureza semeando a maldade por onde passava. Não me importava de fazer de sua dor o meu prazer, talvez por realmente nunca me importar ou por não estar lúcido o suficiente para isso. E fiz, então, o contato. Unifiquei os corpos e ela era como um ímã que me rejeitava. Mas quando foi que eu comecei a aceitar rejeição? Uni, fundi, colei-nos contra a sua vontade. E contra a vontade divina. E descolava a meu bel prazer, e colava de novo. Pois ali, no meu mundo, eu era o Deus e ela uma serva resignada. E parou de se debater, então, e aceitou como uma dama deve fazer a dança que eu majestosamente propunha.

Um intruso. Um besouro pousou no corpo dela no meio da dança. Encostou suas patas sujas de estrume no terreno que era meu. Fui tomado por uma fúria descomunal e espanquei-a como bem merecia. Como ela permitiu? Reuni todo o meu ódio em punhos cerrados, em socos e tapas frenéticos que deixariam as marcas daquele pecado encravadas em sua alma. No fim, mergulhado nas águas salobras do nojo, cuspi. Cuspi e cuspi de novo. Nojo! Deixei-a com o seu inseto e me retirei. Ainda haveria a ressaca para eu lidar.

E, por rasgar sua feminilidade e pôr do avesso sua intimidade, agora eu me coloco aqui. Vendo-a torta entre insetos e sorrisos diabólicos me corroendo, ambos. O ritmo da música se findou numa hecatombe de sons agudos. Agora sinto o pavor do silêncio. Parecendo extasiada de satisfação, largou os insetos. Suspirou...

E trouxe uma faca.