domingo, 28 de março de 2010

André - Parte III


Querido Diário,

Nos encontramos. Eu não consigo sequer ordenar os acontecimentos na minha mente, pois até a minha visão está trêmula, embaçada... Sinto frio. Suo. Depois arrepio. Vou até a janela e até a geladeira sem objetivo nenhum. Não há pensamentos formulados, já que não há fórmula para o amor. Sinto-me observada pelas paredes, invejada pelos ursos de pelúcia. Eles me fitam com certa tristeza, como se não desejassem o desabrochar de minha feminilidade. Nem sequer lembro quem me deu essa almofada em forma de borboleta. Tão patética! Atirei-os pelo chão e aqui estou, deitada, rolando sobre mim mesma em risinhos de ansiedade. Não sinto mais cheiro, senão o cheiro dele... Tudo que possui cor parece ter sido criado pelas suas mãos mágicas. Mãos tão lindas! Suas unhas róseas estranhamente nunca se sujavam. Aparadas perfeitamente. As veias abriam caminhos salientes por debaixo da pele. Quis apalpá-las. Ele deixou. Felizmente, havia largado a aliança na bolsa minutos antes. Falamos sobre arte, sobre política, sobre religião. Os assuntos cotidianos, saindo de sua boca, configuravam-se num completo espetáculo teatral. Falava tão baixinho! Num requinte de educação que me fez sentir uma princesa. Não pude controlar o trepidar de minha respiração. Como fui estabanada! Tudo em mim denunciava meu interesse: o batom carmesim - que dava mais carne aos meus lábios secos, a maquiagem feita minuciosamente, os cabelos hidratados num penteado incomum e, sobretudo, minha gesticulação ilógica e a inconstância da minha voz. E não sei descrever bem o momento do beij.............................................................................................................................


As ondas lambiam meu pé, quando amassei essa página e deixei que o líquido maculado da traição pingasse na areia molhada. Onde estavam as lágrimas para se juntar àquele caldo? Sentia a amargura cáustica espremendo meu peito. Mas não chorava. Meu nome não havia sequer sido citado em suas confissões de vadia recalcada! Que desprezo belamente disfarçado... E eu estava ali, sujo de areia e embebido em ódio. E fiquei. Afundei minha mão na lama que se formava e erguia o punhado marrom e pastoso para depois lançá-lo, até que retumbasse no mar. Nuvens e nuvens e nuvens... Chuva.

Depois do quadro das violetas, muitos vieram. Thaís, que já sucumbia toda a sua suavidade para dar lugar a um temperamento instável, vivia numa realidade intocável a qualquer humano senão ela mesma. Quando ele pintava maçãs, fingia descobrir uma por acaso em seus pertences. Pintou um avião e ela, eufórica, desprendeu horas tagarelando sobre como ele previra a chegada de sua prima que morava em Barcelona. Eu não a beijava mais. Não abraçava. A rigidez da minha face diante de seus devaneios era evidente, o que se somava ao meu silêncio inquebrantável. Ela não notou, ou não se importou. Houve, então, uma tela onde um casal se enamorava no diáfano pôr-do-sol. Tranquei-me no quarto.

Relembrava cada um desses episódios, sem sentir as gotas já fortes salpicarem meu corpo. O celular tocou, e quando o retirei do bolso da bermuda vi seu número brilhar. Brilho que fez nascer um ponto de esperança nas trevas daquela quase depressão. Ela não notava minha existência há semanas... Atendi ali mesmo.

- Alô?
- André? –
logo senti algo estranho em sua voz, imaginando que fosse a tempestade que se formava causando algum tipo de interferência.
- Eu mesmo. Aconteceu alguma coisa, Thaís?
- Não é a Thaís, é a mãe dela.
- Ah, pois não dona Sônia...
- Hoje cedo ela disse que sairia para visitar um amigo que morava em frente a basílica e está demorando muito pra voltar. Não atende o celular e, como está chovendo, fico preocupada. Pensei que ela estivesse com você...

- Não não. Mas vou procurá-la e levá-la pra casa, fique tranquila
- Então ótimo, estou esperando. Tchau Dedé!
- Até...


Rompi com a letárgica covardia que me envenenava e disparei pelas ruas.

quarta-feira, 24 de março de 2010

André - Parte II

O amor... A desconexão completa do humano ao seu lado animal. O elo em correntes de seda, que entrelaça o espírito ao divino. Em sua fragilidade, corrompia-se.

Seus olhos estavam diferentes naquela manhã: vítreos. Bolhas de sabão muito opacas. Pálpebras alertas. Algo havia desestabilizado a suavidade de seus estratagemas, coisa que nem os mais sérios conflitos familiares conseguiam efetuar. Não usava o costumeiro batom carmesim, nem os penachos em brincos de índias. Tremia as costas das mãos. Observei, ressabiado. As nuvens em nódoas cinzentas ameaçavam um temporal. Aproximei-a num meio abraço, enquanto caminhávamos para o ponto de ônibus.

- André... – e muito raramente me chamava assim – ontem, no centro da cidade, descobri um pintor que faz quadros muito bonitos!
- Ah é? Mas isso não é bastante comum por ali?
- Pode ser, mas esse rapaz é diferente. Seus quadros são incríveis!
- Você viu mais de um?
- Não, só um... Não seja chato! E você não vai acreditar: ontem ele pintou justamente um céu muito nublado! –
ergui as sobrancelhas numa evidente feição de deboche que foi ignorada – Ele meio que se desconecta do mundo, como se estivesse... – muita gesticulação - Sei lá, em transe!
- É... Acho que quem está levemente desconectada do mundo hoje é você.
- Chato! Você vai entender se ver de perto. Vamos lá agora?
- Eu tenho um trabalho de física pra fazer... –
murchou, e seus olhos se transformaram em pequeninas gotas de decepção. Cedi. – Mas eu vou, só não posso demorar muito, tudo bem?

Já a caminho, vislumbrei sua silhueta inclinada no vidro da janela. Respirava tão lentamente! Num vestido de um singelo amarelo, um mosaico de flores em tricô se emaranhava pela rede de linhas. Violetas experimentavam outras cores e se livravam do corpo vegetal que as entranhavam no firmamento. Adormeciam e se precipitavam de acordo com as lufadas de vento. No fim, desfaleciam nos joelhos justapostos. Tão graciosa em sua liberdade... Eu? Prisioneiro dessa mesma liberdade!

Lá estava o suposto artista-vidente - e não contenho a ironia - nos pés de uma escadaria de igreja. Uma boina à francesa, um sobretudo preto e a grande aquarela com borrões de tinta. Não era difícil ver a excitação no olhar de Thaís. Finalmente ganharam cor e vida. E a cor também manchava a tela retangular. Sentados, senti-me um intruso naquele espetáculo sem sentido. Fitava sua reação, incisivo, ansiando que ela me notasse e questionasse meu comportamento. Esmiucei as possibilidades de discussão e nas formas de justificar meus ciúmes. Cheguei a saborear os argumentos, as frases de efeito. O gosto ácido de uma vitória verbal merecida. Inútil. Ela não se movia. Os ponteiros do relógio no cume da igreja me zombavam. Rezei pelo rugido da tempestade.

Seus músculos, em conjunto, se contraíram num espasmo:

- Veja, André! São violetas!

segunda-feira, 22 de março de 2010

André - Parte I


Quando a depravação da minha alma sobrepujou meus valores morais, roubei seu diário. Tal qual sua face de traços simples, mas de perfeita simetria, as letras ocupavam todo o espaço, como se dependessem dele para o completo vômito daqueles segredos que fervilhavam em seu interior.

Querido Diário,

Escrevo com o peito estufado, em chamas. A grafia sairá tropeçando em si mesma. O fato é que talvez eu tenha encontrado a fonte de toda a felicidade, a maneira certa de conduzir a vida magicamente. Insisto em escrever dessa forma talvez muito ornamentada para que eu me lembre no futuro da excitação que, agora, ao mesmo tempo em que me inunda de suspiros quentes e profundamente confortáveis, aprisiona meu ser na iminência de um vício intangível. Sem mais rodeios: mamãe, em seu ensejo indomável de consumo, precisou dos meus braços para carregar as inúmeras sacolas que adquiria nas lojas de roupa do centro da cidade. Num momento em que andávamos e ela regurgitava suas futilidades, consegui me desvencilhar de seu pulso de gancho forte e pedi para que me encontrasse no centro da praça, quando terminasse as compras. Sentei-me num banco de madeira e vislumbrei a arquitetura de um gótico moderno que me rodeava. Uma igreja suntuosa, há pouco reestruturada, erguia majestosa circundada de árvores de copas largas, provavelmente até mais antigas. Um cenário muito bonito bem no miolo do complexo comercial. Mas aquilo não era novidade para mim, então logo deixei meu pensamento vagar em outros assuntos quaisquer. Adentrei num destes momentos em que o olhar se cansa de fixar pessoas e objetos e você se permite brincar de focar e esmiuçar as coisas, se esquecer delas e transformá-las em meros borrões coloridos. Permaneci naquele torpor por longos minutos. De súbito me retesei, atônita, precisando pressionar o encosto do assento pra suportar a perplexidade que me abatia. Havia uma silhueta que parecia ter se materializado a partir do ar, bem em frente à escadaria da basílica. Brotou ali, do vazio, como que anunciando a aurora do anoitecer. Naquele instante um elo se formava entre nós, ainda que só eu estivesse verdadeiramente acorrentada...

Sei que não sou a vítima (embora eu me enxergue assim nas minhas reflexões de autopiedade), mas há um conjunto de fatores que alicerçam meu furto. Para total compreensão, devo relatar – ainda que com uma linearidade duvidosa – os fatos desde o ponto de partida.

Thaís, objeto de meu amor puro e fatalmente corrosivo, era uma garota suave. Em tudo era completamente suave. Insisto nesse adjetivo porque Deus o criou com a única intenção de designá-la. Seus fios de cabelo, que atingiam a altura da bacia, flutuavam em perfeitos caracóis, nem sempre acompanhando a direção dos ventos. Olhos pequenos, de um castanho comum. A pele era levemente morena, oriunda da miscelânea de raças efetuada pela genética de seus pais, e salpicada de pequenas pintas aqui e ali. Dentes brancos, grandes. Mas raramente se abriam num sorriso. Preferia fazê-lo apenas com o lábio, suavemente...

Só se destacava pelo excelente desempenho no colégio, mas não gostava de todo o alarde que os professores faziam a seu respeito. Falava baixo, num requinte de educação que, naquele primeiro dia que nos falamos, logo me chamou a atenção. Estávamos num ônibus, e eu nem sequer reparei na sua silhueta quando a vi sentada ao meu lado.

- Com licença... – não era necessariamente tímida, mas não olhava na linha de meus olhos.
- Claro! Senta aí. Você que é a Thaís, certo?
- Eu mesma. Aposto que algum mela saco de professor andou falando de mim na sua classe, né? –
e nem falando daquela maneira ela conseguia soar agressiva.
- Algo do tipo... – sorri com sinceridade.

Sua naturalidade me encantava. Era como se uma jóia raríssima estivesse ali o tempo todo e eu não notara. A partir daquele momento, procurei me aproximar cada vez mais de sua pessoa. Finalmente me olhava nos olhos. Foi fácil, já que era de convivência harmoniosa. Sempre preocupada, parecia que urgia dentro de seu âmago uma necessidade crucial de entender as pessoas. Quando eu aparecia com um mísero corte feito por uma folha de papel, ela já se eletrizava em sua preocupação e logo queria saber todos os detalhes do incidente. Eu gargalhava, feliz e apaixonado, de sua euforia em momentos assim. Aquela atenção especial me cativou, e também me tornou um completo mal acostumado.

Criamos um laço de amizade forte. Muito forte. Os sentimentos passaram a se confundir. Existe uma linha tênue entre amizade e o amor puro de intenções conjugais. Até que - e lendo a folha de diário novamente parece que uma faca me dilacera a carne ao reviver aqueles fatos na memória -, ela conheceu um pintor no centro da cidade...

segunda-feira, 8 de março de 2010

Arthur

A estação de trem estava quieta. Meus passos ressonavam e ecoavam naquela paisagem plástica: árvores margeando o firmamento, pássaros dançando no ar e aquele cheiro de jasmim característico. Era um lugar vazio. Um lugar vazio dentro de mim.

Parecia abandonada, como se não tivesse sido usada há anos. As paredes carcomidas e mofadas denunciavam, ao menos, que limpeza não existia. Carregando uma pequena mochila numa sensação utópica de que ali poderia levar coisas para uma viagem, sentei-me num banco parcialmente deteriorado e fitei o horizonte além da trilha. Sentia um frio voraz; o vento gélido cortante paralisava minha face. Levei as mãos à boca e expirei lentamente.

Depois de passar por problemas que tangenciam a vida afetiva, transformei-me numa pessoa rígida e sem muitos vínculos. Não queria carregar o peso de ter alguém, estava cansado das responsabilidades, das cobranças e das chantagens. Queria viver ao menos uma fase de liberdade plena em minha vida. Desconfio que fiquei louco, mas até quanto a essa hipótese eu reagia com indiferença. Saí andando sem propósito numa noite e, ao raiar do dia, me interessei por aquele lugar desértico e por lá fiquei.

Não sei exatamente quanto tempo passou, mas perdi grande parte desse procurando por pistas se aquele lugar era ou não utilizado verdadeiramente. Como era domingo, ficava difícil ter provas, mas reparei que o estado do trilho não parecia dos melhores - não existiam placas informativas e nem sequer uma bilheteria. O chão estava imundo, tudo estava imundo. Eu também.

No horizonte muito distante eu via penas. Verdadeiras plumas rodopiavam levadas pelo vento. O pôr-do-sol as tingia em cores que variavam em tons do vermelho ao laranja. Não procurei saber a razão daquele fenômeno; afinal, de que adianta saber que as engrenagens giram se elas continuarão girando, de qualquer maneira? Apenas me rendi à beleza e, estupefato, levantei-me. A miscelânea de cores se escondia por trás das nuvens e verdadeiros raios rubros iluminavam cubículos da mata virgem. Os animais não pareciam assustados.

- Dizem que quando o dia acaba, podemos ver as asas dos anjos... – Uma voz feminina e incisiva irrompeu, despedaçando o silêncio. Tremi. Meu coração acelerou como o de uma pessoa em morte iminente. Inicialmente tive medo de olhar pra trás.

- É uma cena fantasmagórica, porém de uma beleza imensurável. Dizem que não são todos que podem vê-la. – Mais calmo, pude reparar na beleza daquele timbre. Parecia uma sinfonia forte e calma, serena e profunda. Não sabia como reagir, mas não virei para visualizar sua silhueta. Caí no banco novamente. As pernas estavam trêmulas.

- Como será que é ver aquilo de perto? Será que podemos tocar em suas asas? – Não conseguia imaginar a que distância essa mulher estava. As ondas sonoras pareciam titubear diretamente na minha mente. Mas, agindo como quem já tinha notado sua presença, fiz de sua curiosidade a minha: eu, que sempre fui tão cético, não duvidava de cada excentricidade que aquela situação exibia.

As informações não surgiam na minha mente com muita clareza. Eu apenas fitava o cume da serra, perplexo diante do redemoinho angelical que culminara em seu ápice. De súbito, senti a mão absurdamente álgida daquela moça entrelaçar meus dedos. Sem questionar e sem fitá-la, percebi que ela queria me conduzir. Ergui-me e segui com ela, caminhando em linha reta. Ao fundo o som de um trem finalizava a orquestra daquele fim de tarde.

terça-feira, 2 de março de 2010

Marcelo

Os pezinhos bateram na tábua corrida, timidamente. A criança entrou, com o papel enrolado entre os dedos sebosos. Eles estavam lá, ocupando divãs distintos. O pequeno menino entendia. Ninguém falava. Ele sabia que escolher uma das poltronas significaria optar por um lado no campo de batalha. Embora a vontade de fazê-lo existisse, não queria se envolver. Sentou no chão e os olhos, desejosos de escapar das pálpebras, fitaram a mulher diante de si. Por um momento a mãe enquadrou-o, incisiva, e Marcelo sentiu que ela lia os seus planos.

- O que você trouxe aí? – sua voz arfava, no comumente trepido dos que fingem interesse.
- É uma prova de matemática... – entregou-lhe sem rodeios, movido pelo receio de ser ignorado.
- Muito bom, meu filho! Você foi brilhante! – no fundo repudiava-o por aquele golpe. As nódoas que secavam sua garganta não poderiam ser expelidas naquele instante. Garoto esperto! Ela teria que esperar o filho se retirar para prosseguir. Respirava profundamente e seu sorriso se alongava para depois contrair - gestos de perfeito ritmo que denunciavam sua plasticidade.

O pai não era de muitas cerimônias, e por isso o exímio resultado do filho não o teve como vítima. A face austera, com as saliências herdadas de uma adolescência repleta de acne, contornava-se com as características delineações de quem aprisiona uma honra lacerada. Faixas horizontais acima dos olhos e o suor em ebulição por toda a pele. A mudança periódica de postura no sofá quebrava o silêncio da falsa bonança. Absorto na seleção das palavras mais poderosas, mastigava as unhas como quem busca o cerne de um alimento com muita polpa. Cuspia os fragmentos à longa distância. Abraçando os joelhos, a criança observava como cada pedaço de unha dilacerada era lançado cada vez mais próximo de sua mãe. Mesmo em sua inocência, estava muito claro: provocara-a para a guerra.

- Marcelo, vá para a cama, já está tarde e você precisa acordar cedo.
- Mas pai, amanhã é sábado e são somente oito horas! –
trovejou, sem entender de onde viera o impulso para tais palavras. Não era costumeiro questionar as ordens de seus pais.
- O que está acontecendo nessa casa, afinal? Tudo o que eu falo precisa ser questionado? Eu exijo mais respeito, moleque! Vá logo para a sua cama se não quiser me ver mais nervoso!

Quando sentia raiva, os olhos imediatamente se umedeciam com as lágrimas de quem oprime a própria fúria. Já era sem êxito seu esforço de apaziguamento. Manteve a visão no firmamento e, quase como quem foge da iminência de morrer, entrou em seu miúdo quarto e fechou a porta. Vagava de um lado para o outro, em movimentos repentinos de raiva que lhe custaram alguns punhados de cabelo. Seu peito doía, no compasso facilmente audível da bomba que pretendia estourar sua caixa torácica. Não ouvia vozes, mas sabia que a atmosfera entraria em combustão em poucos segundos. Ele precisava dormir o quão rápido conseguisse. Desfaleceu na cama, cobrindo-se por inteiro e pressionando os ouvidos com as palmas das mãos. Mas é impossível calar a mente. Pôs-se a imaginar quais palavras rugiam nos cômodos de sua casa. Um enorme sentimento de pena de sua mãe invadiu-o por completo. Amava o pai, mas nos momentos mais frágeis era a figura materna que lhe surgia como ícone. Construiu em sua criatividade infantil agressões físicas, morais, apelos de um casamento em migalhas. Narrava para si o epitáfio de sua própria família. Ergueu-se, já em prantos, e deixou uma fresta da luz da copa adentrar em seu aposento. Vivia a cruel dualidade de quem não tem forças para enfrentar as adversidades, mas tem curiosidade para entendê-las e esmiuçá-las para então se martirizar com a verdade. Covardia vaidosa! Mais calmo, tentou confortar-se. Talvez nada estaria acontecendo. Sempre fora um menino sentimental em demasia. A indulgência para consigo veio a se fragmentar, quando as vozes no saguão esbravejavam a destruição quase palpável.

- Você não tem escrúpulos, não tem honra, não tem dignidade! Há quanto tempo está me traindo? Vamos, fale a verdade de uma vez por todas!
- Rodrigo, pare! As coisas não precisam ser conversadas dessa maneira!
- De que maneira você quer, então? –
sons de estampido – Quer que eu fique calmo em desperdiçar quinze anos da minha vida?
- Me perdoe, por favor...

Marcelo perdeu a sustentação das pernas, caindo de joelhos. Chorava alto, em berros plenos como de quem sente a dor física de um corte profundo. Clamores que, entretanto, ninguém parecia notar...