domingo, 11 de maio de 2014

Sobre mensurar o infinito


Você se deitou ao meu lado, esgueirando seu corpo pela grama. E ali ficamos. Sua mão encontrou a minha e cerramos os punhos num só. Os ombros se tocaram e se aqueceram. Eu podia ouvir o som da sua respiração e sentir seu cheiro. Olhei para você. Você sorriu de volta. Te toquei o nariz com o nariz. Nos selamos.

Era noite. Atrás de nós, nada. À frente, nada. O som de um piano antigo reverberava nas quinas do mundo e vinha. O horizonte era apenas um tapete negro. E brilhos de estrelas eram pontos e holofotes. Falávamos sobre a possibilidade de constelações e tentávamos apontar para centros luminosos específicos, em vão. Rimos sem motivo. Te puxei para cima de mim, te envolvendo com meus braços meio trêmulos. Te beijei. Por minutos? Lhe disse sobre como é perfeito te amar, e o universo e seus astros. Sobre o mundo e sua beleza, a sua. Adormecemos. Você dormiu primeiro.

Amanheceu. Quando abri os olhos, seu rosto estava parcialmente iluminado por um tímido raio de sol incapaz de aquecê-lo. Não contive o suspiro da completude. Toquei seus lábios e você não percebeu. No céu, as nuvens desenhavam queijos e aves. Caminhavam tranquilas, enquanto se fundiam e se despediam. Desapego que não possuo. Queria tocá-las, subir até elas com você. Sem que eu me desse conta, minha mão em vida própria estava acariciando seus cabelos. Acabei por te acordar. Você não reclamou. Abriu os olhos lentamente, trôpego. Bocejou. Me desejou bom dia. Eu não disse nada, apenas sorria. Não me cabia em nada, tampouco em palavras. 

O sol se retirava. Eu estava sentado, você falando sobre viagens, planos e o destino. Imensidões e incertezas. Sua cabeça deitava-se na minha perna enquanto eu olhava para baixo para te ver. O céu sangrava. Eu não fazia questão de viajar, nem reclamaria da pequenez que me embriagava. Ali me parecia muito bom. Limpei as tiras de grama que se escondiam nas suas vestes. Te beijei com a intensidade do fogo. A força da brasa. Deitamos pela curiosidade da volúpia, a terra era gelada. Estávamos quentes. No pé do seu ouvido, repeti o quanto te amo. Nos selamos de novo, e para sempre.  

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Anamnese

Bom dia,
Não beba
Não fume
Não cheire
Não durma em horários aleatórios
Não durma tarde demais
Não durma depois de comer
Não coma deitado
Não coma muita fritura
Não coma muita gordura
Não coma bala, refrigerante, doces
Não coma em intervalos longos de tempo
Não se esqueça da garrafinha de água
Não se esqueça do cartão de vacina
Não se esqueça das campanhas anuais
Não se esqueça das medicações
Não se esqueça dos horários
Não se esqueça das doses
Não se esqueça do jejum
Não pode ficar sem as frutas
Não deixe de fazer os exames
Não deixe de caminhar
Não vale menos de trinta minutos
Não fique deprimido
Não se mate
Não fique ansioso
Não tenha medo
Não tenha pânico
Não enlouqueça
Não tenha insônia
Não fique com raiva
Não transe sem camisinha
Não transe com desconhecidos
Não seja promíscuo
Não pode continuar assim
Não pode engravidar de novo
Não movimente demais esse braço
Não exagere com essa perna
Não fique muito tempo sentado
Não fique muito tempo parado
Não fique muito tempo em pé
Não tem esse remédio no SUS
Não atendo aqui nesse dia
Não passo meu telefone
Não lembro seu nome
Não sei sua queixa
Não te entendo

Sobre cutucar casquinhas


Eu cutuquei a casquinha e imediatamente a ferida se mostrou: latejante, circunscrita num poço mais ou menos delimitado por bordas de pele rasgada num fundo róseo. Ela olhou pra mim com aquele costumeiro ziguezaguear de lábios, uma mistura de preocupação retida e constrangimento profissional velado.

- Como foi que se machucou?

Não gostava daquela neutralidade. As pernas cruzadas na grande poltrona vermelha. Apenas um tapete a afastava de mim numa distância menor que dois passos. Ela parecia flutuar. Como se estivesse meditando e algum poderoso monge a ordenasse para responder o que eu precisasse. O cabelo louro escorrido num caracol que terminava abaixo do pescoço era tão organizado que coçava o pedaço mole de pele entre o polegar e o indicador. Viajando em ondas perfeitas, fios paralelamente alinhados, perfeitos, perfeitos demais, ah! Por um momento imaginei algo muito pesado colidindo contra o firmamento daquele cômodo (um vaso de plantas, talvez) e ela se assustando, emitindo um grunhido esbaforido qualquer, como uma pequena galinha assustada, levando as mãos à cabeça e levando a desgrenha àquele penteado plástico e tosco. Ela se recomporia em segundos e não teria vergonha em me alinhar aos seus olhos de neblina, lançando mais uma de suas inúmeras interrogações.

- Eu me cortei com a gilete, me barbeando.

- Ah, sim... E como estão as coisas com a Olga?

- Nós terminamos.

Um esgar vermelho pintou sua pupila ao final da minha sentença. O silêncio se fez, e o silêncio dentro dele, e eu. Abaixei a cabeça para contemplar meus dedos que brincavam entre si, quase violentamente. Eu não responderia a nada que ela não verbalizasse, por mais tangível que a pergunta fosse. Ela pareceu entender isso.

- Onde comprou essa aliança?

- Ah, num lugar qualquer perto do centro. É uma aliança barata, tentei me desfazer dela ontem mas de alguma forma está travada no meu dedo.

- Entendo. E como se sente usando-a sem estar com a Olga.

- Normal...

- Como foi o término?

- Ela queria passar o Natal em Fortaleza. Eu agradeci o convite, mas disse que não poderia sair da cidade. Foi assim.

- Ela não o questionou?

- Sim, milhões de vezes...

- E o que você disse?

- Nada.

- E o que você gostaria de dizer?

- Você sabe.

- Não, não sei.

- Não, não, não! De novo, doutora? Você sabe! Que insistência em me fazer repetir esse assunto toda bendita vez que eu venho aqui... O que eu gostaria de dizer!? Gostaria de dizer que tenho uma irmã esquizofrênica que está perdida pelas ruas e que ainda tenho esperanças de revê-la. Gostaria de dizer que eu tenho medo de gastar dinheiro e um dia minha irmã precisar. Gostaria de dizer que não posso contar com os meus pais para me dar nenhum tipo de auxílio e, muito menos, para amparar minha irmã. Gostaria de dizer que eu também tenho medo de delirar e toda porra de voz que eu escuto eu fico pensando que pode ser alucinação. Gostaria de dizer tudo isso, assim bem gritado, entende? Está feliz, agora?

- Você está?

- Falar ou não falar isso, pra mim, tanto faz.

- Então por que você me disse?

- Porque é seu trabalho me ouvir. É pra isso que eu te pago.

Não surtira efeito. Ela apenas transportou o par de mãos cruzadas para o outro braço do aposento. Curvou o tronco, inclinou-se até mim, ajustou os óculos de armação retangular na origem do nariz e crispou os lábios. Eu nem sequer tinha tempo para sentir remorso, mas ela podia me ler como a um livro escancarado. Parecia aceitar meu pedido de desculpas inerte nas partículas da minha mente cuspidas pelos meus olhos.

- Você não pretende se relacionar com nenhuma mulher?

- Tenho me relacionado. Com várias. Eu vou levando dessa forma, é como eu vejo que é possível lidar.

- E, pelo visto, está lidando muito bem...

Meus punhos cerraram como se tivessem vida própria. Levantei-me, num supetão desordenado que quase me presenteou ao assoalho, mas ainda capaz de dirigi-la meu olhar mais odioso.

- Qual é, doutora. Ironia? Que artimanha mesquinha, mesmo pra você! Eu achei que seu objetivo aqui era me ajudar. É assim que vai ser? Eu sento nessa merda de cadeira, abro o meu coração, despejo meus problemas e tudo que eu recebo em troca é sarcasmo e indiferença?

Ela era capaz de falar sem mover qualquer célula, suspeito.

- Eu não estou aqui para te dar o que você quer, Tarcísio. Eu estou aqui para fazer com que você veja o que você precisa. E o tempo está acabando para você.

- Eu preciso que você cale a sua boca, só isso!

Quando deixei o aposento, dediquei meu último adeus, fitando-a por trás do ombro sem saber se eu sorria ou mantinha a raiva. Acho que fiz qualquer coisa do espectro do ridículo. Em algum lugar ela parecia triste, afinal...

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Áries

Fechar seus olhos com fogo em boca 
Crispar seus lábios com meu grito rouco
Abraçar seu corpo com as mãos em soco
Levantar meu zíper e lá dentro: oco
Cantar o gozo com minha loucura pouca
Crispar seu beijo com minha voz rouca
Dar seu abraço a minha carne solta
Aguardar a noite pela manhã insossa
Estapear-lhe a face, chamar de moça
Marejar suas lágrimas
Quebrar a louça
Plantar o infinito
Alcançar o infinitivo

Amar

sábado, 19 de abril de 2014

Peixes

Não te quero pelo que tens de pleno
Quero o caldo do efêmero
Da qualidade de quem se vai no supetão
Pra que eu possa fantasiar memórias
Sobre sua despedida amistosa e triste

Não te quero pelo que tens de verdadeiro
Mas pelas mentiras que são arte eterna
Pela fuga que me permite voar pra longe
Pra que eu possa roubar de ti
Tudo que você nunca teve
E preencher esse vácuo na alma

Não te quero em hipótese alguma
Mas me quero em antítese contigo
Entre essas quinas e curvas oblíquas
Onde nasceu nosso amor já findo

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Ela


Ela se debruçou na janela do seu quarto, que foi esculpida a frente da janela do meu quarto, como a esperança do beijo impossível. Ela se debruçou, enquanto eu fitava o seu olhar e pude ver que não havia nenhum lugar onde eu pudesse me refletir. Ela vagava com a cabeça de um lado para o outro, cantarolando minúcias sobre as aventuras vividas com um rapaz que acabara de conhecer. Ela, Simone. Simone sofre da contenção de afeto.

Ela dizia sobre o cheiro dele, almiscarado cheiro do paraíso, e como ele conseguia mandar mensagens nos menores intervalos que o tempo tem. Como ele era gentil e diferente de todos os homens porque a chamava de princesa desde o primeiro dia que a conheceu. Como ele lhe dera as mais belas flores, lindas orquídeas, quase imortais. Como ele era bonito, casto, justo... Quase um santo! Ela tão logo disse, trouxe o celular ao punho, acariciando-o com o dedo – acariciando-o. Ela exibia algo de uma inocência treva, ao tecer elogios aleatórios para a figura que conhecera outrora. Ah, como eu odiava essa inocência! Não apenas pelo desejo pulsante que me corre, mas porque havia algo de tão fugaz em seus amores de piscares que me mostrava que a experiência de viver não é nada além de um eterno facear com inícios, que trás o facear com os fins. Não gosto de facear com os fins. Então me agarro a ela, mesmo que apenas nos meus mais solitários devaneios, mas ainda assim contrapondo-a. Encontrei no meu amor a solução para o meu ódio. Que se diluiu em detalhes, no meu sorriso evidentemente enojado, nos suspiros que viajavam nas paredes do prédio. Eu estendi minha mão, o indicador apontando para qualquer coisa que se punha entre nós. Ela sequer notou.
.
Convidei-a para que descêssemos.

Há algo de triste nos ventos de quarta-feira... Afinal, onde é que o vento nasce? Uma melancolia crepitava no quadro que a tinta cinza das nuvens pintava nas ruas e nos becos que fomos caminhando, um passo por segundo, um segundo em cada passo. Com o pescoço inclinado ao chão, me perdi entre as assimetrias das arquiteturas porcas, entre os farelos de alimentos lançados aos pombos e seus dejetos, entre os sapatos dos outros compondo músicas efêmeras, entremeadas pelo som das buzinas, das vozes, da alegria de Simone que trovejava sobre quão exímio ator o seu homem era. Ela também, se equilibrando sobre os cacos de si, do vitral que era e se esfarelava ao longo de sua existência. Seus pés sangravam, ela já comprou todo o desdém do mundo. Ela nunca gostou de atores. Essa frase, ansiosa para se fazer voz, foi impedida pelos meus dentes e o lábio mordido. Qualquer mínima ofensa, mesmo uma onda sonora levemente impetuosa, e ela se esfarelaria por completo. E eu quem deveria segurá-la em minhas mãos, entre os meus dedos, a apertar até a mais doce agonia. Ela enfim se dirigiu a mim, ela não sabia onde estávamos indo.

Eu não sei quem me habita, quem gera o automatismo da minha violência apaixonada. Mas eu lhe agradeço. Pois ali, embalado pelo ruflar gelado de uma chuva grossa, vendo o corpo de Simone todo pétreo, atirada ao chão molhado, a face estupefata, lagrimas... Ali eu pude nascer pela primeira vez. Amarrei seus membros contra os próprios membros e tapei sua boca com minhas duas mãos calejadas. Temporariamente - gosto daqueles lábios de damasco crispados pelo pavor. Pude vê-la se debatendo até a exaustão, como um casulo incompleto e assustado. Eu disse que era o seu facilitador, o advogado de sua metamorfose, o embagador da sua ira, e que ela não precisaria se preocupar. Não fez efeito. Movido por pulsos desconhecidos, derramei o meu escarro mais sujo sob sua face e observei-a se contorcer, meu gozo infinito ao ver o nosso desgosto agora equalizado. Ela era linda... E seu tronco se revirava, incapaz de conter todos os gritos que reverberavam ao lado do coração. Havia amor naquela região, eu bem sabia. No fim, o curso dos meus pensamentos, mesmo girando em trilhas tortuosas, me levava sempre ao mesmo destino execrável: Simone era uma mulher patética. Como era patética! Se a vida dela fosse objeto de arte, seria exatamente aquela montagem que exibi ali. Eu lhe dei o presente divino da revelação. Porque eu a conheci muito além dela mesmo ou de seu homem. Eu a possuí. Eu era o maestro final de sua performance. Bati sinceras palmas pra Simone. E até lhe arremessaria uma flor. Uma orquídea morta.

Quando eu me virei a encarar as ruas mais uma vez, vi borboletas de asas azuis contornando um poste desligado e senti um peso nas maçãs do rosto. Constrição no peito, respiração arfada. Continuar caminhando... É preciso continuar caminhando. Nada me resta. E pude entender que esse era o destino do primeiro aborto do destino. 

terça-feira, 11 de março de 2014

O parto da fé


A catedral era como a extensão do meu corpo mergulhado na imensidão líquida e intangível do universo. O mármore o vidro a madeira o calcário as pedras e todos os santos vibravam em alguma frequência que eu também estava que eu também vibrava. Lá fora minha vibração era apenas a nota triste fatigada e lânguida do silêncio. E o silêncio que pairava agora era o de palavras doces e suspiros cálidos nas minhas orelhas tão cansadas. As luzes que atravessavam os vitrais e rechaçavam a parede formaram um caleidoscópio que viajava entre todas as cores que viajava entre o tempo o espaço e todas as dimensões da carne enquanto eu me punha ali com os joelhos quase flexionados quase se debatendo ao chão para a cura dos pecados.

Quando ajoelhei e minha pele tocou a madeira senti o meu corpo se curvar mais do que a gravidade era capaz de fazê-lo. Naquele instante todos os fantasmas saíram pela minha boca esboçando qualquer murmúrio de pavor e me contornaram com suas fácies estupefatas incrédulas esdrúxulas maculadas pelo passado que escrevia minha história com o muco do que é podre e expurgável. E entre todos os meus erros as fornicações da carne teciam os mais longos pesadelos que me revelavam os apegos que me acorrentavam à patética condição humana e à patética restrição humana. Eu sentia o firmamento tremular com a energia que se desprendia daquele martírio do algoz que me fui embora eu quisesse no âmago um flagelo ainda mais doloroso e que fosse penoso o suficiente para arrancar de mim quase que meu todo eu que é menor do que sou. Eu confessei ali gritando aos prantos gritando aos santos e gritando aos homens berrando para as paredes que pareciam se mover numa dança de um julgamento crucial que eu queria que aquela mesma luz fizesse estrada por dentro da minha boca para purificar minha alma ou o que é que sofre ali atrás do peito. Eu abri minha boca e deixei que as palavras mais nocivas irrompessem em ondas para que sua liberdade fosse a minha liberdade e então eu pudesse exibir meus dentes outrora sujos de sangue e sujos da tinta vermelha com que se escreve a dor. Eu sofria da míngua máxima que um homem pode sofrer que é a contenção do afeto que coloca em pedestais divinos homens parcos de histórias torpes e índoles ainda mais e se o fiz me vi movido pela carência abissal sexual animal fatal que move todos os passos de todas as pessoas guiando os pés descalços para o inferno particular em que vivemos por sermos cegos à fagulha de luz ao brilho-estrela que se precipita no beijo e no amor.

Eu senti a força de mil homens propelindo meu tronco em direção ao assoalho enquanto outras mil vozes vociferavam em línguas ancestrais mas que o instinto conhecia o coral que regia o meu adeus a minha lástima e meu infortúnio. Instrumentos musicais de todas as eras irromperam dos andares daquele templo compondo a orquestra da minha vida agora morte enquanto borboletas do mundo inteiro beijavam o meu rosto embalando o meu corpo embalsamando minha pele para a metamorfose que eu buscava o nirvana porto final do meu destino. E quando meus olhos se fecharam para a oração finda para a última oração de misericórdia eu pude ver o pranto de todas as mães o pranto de todos os amores perdidos o pranto e desgraça de todas as civilizações e dos dias que se delongam na esteira da penúria que rasga a sola dos pés e faz da nossa estrada um ladrilho escarlate que cheira carne. E então quando toda as imagens se emaranharam num só filme que se repetiu todas as possíveis vezes a história da humanidade apareceu diante da minha consciência como um crepitar insignificante produzido pelas infinitas engrenagens que dão movimento aos retalhos da fé.

O tempo movimentou diversos de seus filhos até permitir que meus novos olhos nascessem e contemplassem por detrás dos meus ombros não mais cansados duas sacramentadas asas brancas que ruflavam alvas penas e produziam um vento de diamante um vento que era corrente de paz esquecimento e perdão. A catedral se esfarelou em inúmeros fragmentos de pó enquanto eu me despedia com a estranha postura qual a de um bebê que deixa o útero sem temer chorar. 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

O purgatório é o corpo

por André Amaral

Voltando do escritório, depois de transar com o chefe, Valéria pôs-se a contemplar os pingos de chuva que dançavam no vidro escuro da janela do táxi. Pensava nas últimas palavras ditas pelo homem, quando cavalgava sobre seus gritinhos e umidades. Veja-se no espelho, Valéria. Veja-se no espelho...

Viu-se.

Nasceu o último filho do silêncio. Ele era como uma criança estupefata da primeira tristeza. Como uma velha que mareja os olhos antes de ver os filhos pela última vez. Todas as barras de ferro que um dia pensou ser a sua estrutura não eram nada além de constantes remodelações de uma massa disforme, incolor, insossa. Valéria se viu diante do espelho como uma mulher transfigurada, mas de um jeito quase cadavérico. Ela percebeu, num instante tão fugaz quanto a morte, que a personagem a qual remodelara a casca durante anos tinha menos dela do que ela própria poderia inventar de antônimos. Valéria e o espelho. Ela, de pé, o cabelo em cascata suja contornando o pescoço, os joelhos contraídos como se protegessem a genitália. Valéria e o espelho. Valéria se via, se revia, e nada era. Nada era do que queria.

Valéria dirigiu ao espelho o olhar com a feição retesada, as sobrancelhas envergadas, o lábio crispado só de um lado, os punhos serrados e a coluna ereta. Seu olhar patenteado. De mulher sóbria, forte, imponente e independente. Mas os verdadeiros desejos que Valéria tinha no âmago encontravam os olhos como portas solícitas para escorrerem pelos cantinhos. Os olhos eram tão opacos da mentira quanto o significado do que é naturalmente fosco. Sua verdadeira feição era cansada - das humilhações externas, sobretudo das próprias. Dos dias em que se viu mentindo pros outros e pra si sobre aventuras confabuladas porque só assim encontrava uma forma de existir. E Valéria queria existir, acima de tudo. Suas sobrancelhas, minuciosamente finas, não conseguiam proteger o peso que lhe sofria a fronte, a pressão que o passado inscrevia nas linhas da testa e as tantas lágrimas que suicidavam no travesseiro da madrugada. O lábio que outrora sorvia intimidades masculinas nem sequer gostava dos sabores dos fluidos que porventura lhe instigavam sorrisos. Esses mesmos lábios nunca beijaram o beijo essencial, de fogo e de fúria e de fome que os apaixonados prometem. Sem o batom vermelho, eram lábios áridos e tão rachados quanto deveriam. Mordidos, nunca mordiscados. Ela os umedeceu com a língua, e sentiu que aquelas fendas viajavam tão profundamente, tão profundamente...

Valéria se aproximou da própria imagem, medrosa, mas foi capaz de se tocar e colar seu rosto no seu rosto. Pode ver, pela primeira vez, que algumas das cicatrizes que tanto tentava esconder eram pequenas assinaturas do passado, cravejadas artisticamente numa pele arenosa - culpa de tantos produtos coloridos com os quais se pintava todos os dias em tons de carmesim a vermelho, ou do cinza ao próprio cinza. Eram cicatrizes depois de serem memórias de uma dor escondida. Acumulada em pequenos pacotes de pele, para que dormissem eternamente ali. A maior misericórdia para consigo ela fez nos dedos que se tocavam através do gelado do vidro, contornando seus traços, repaginando suas paisagens. Ela era gigante. Com um pouco de tremor nos dedos esguios, abandonou o reflexo e sorveu o calor que vinha de si, de suas fontes mais íntimas. Apalpou-se em regiões que há muito ela não estudava. Percebeu os pequenos detalhes da assimetria de seus seios, que se encerravam em trêmulas ondas elétricas que bailavam no mamilo. As ondas trazem a vida das praias para a secura das almas dos tristes. E assim seu toque ganhou flama, suas mãos agora avidamente reviviam a percepção do prazer corporal, imiscuída na percepção do prazer do outro. Apertou suas coxas levemente suadas como se tivesse medo, penetrou suas profundidades violadas como se tivesse paixão. E tinha paixões, que se vulcanizavam através da fala. Na voz pura, sem palavras, entremeada em gemidos e suspiros de linguagens ancestrais, abissais. Ela se penetrou até que a energia cedesse e a descarga a colocasse ajoelhada no chão.

Chorou-se.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Toma o meu silêncio


Ela pousou cuidadosamente a xícara na mesa - como se aquele gesto, se atabalhoado, fosse quebrantar qualquer coisa sagrada que nos protegeria -, incapaz de me dirigir o costumeiro olhar sumarento. Eu sorri, ainda assim. Permaneceu alguns segundos observando as ondas do café na lagoa de porcelana, velejando na calmaria dos líquidos, tão diferente da balburdia ao redor.

- Eu sei que não posso pedir isso, mas eu não queria que você chorasse.

Seus fios de cabelo pareciam pequenas asas de inseto. Se estapeavam à revelia do vento para depois se acomodarem em grandes grumos de cor escura, trabalhando tranças que faziam estradas entre suas camadas de flores e frutos. Cruzei os braços sobre a mesa e afundei a cabeça entre eles, lateralmente, a observar a movimentação das outras pessoas naquele caos de palavras e lágrimas.

- Não chorarei.

Ela deitou sobre minha cabeça fazendo as nossas orelhas opostas se beijarem num vácuo de concha. Uma posição habitual de nós duas, das tardes em que deitávamos no chão para ver o mundo de baixo. Mas havia um suor gelado vindo dela, componente novo. Sua pele sempre fora tão seca para afagos e beijos... Ficamos assim, ao dissabor do burburinho dos relógios. Eu gostaria de esgotar todas as palavras do mundo, e cerrei as pálpebras na tentativa de encontrá-las. Suicidaram nos precipícios tantos da consciência. Meu presente de despedida seria o meu mais particular e execrável silêncio. Eu lhe daria meu silêncio. O meu silêncio é muito mais trágico que as torrentes de lágrimas que ela tanto temia. O meu silêncio é uma praia antiga aonde o mar nunca chegou. É uma ilha submersa em sangue. É o suicídio feliz.

- Bem, eu preciso ir ao banheiro... Estou apertada!

Tão delicada em seus movimentos que eu precisei retesar até sentir o grito da panturrilha nas pernas, para não ceder ao contrato e me ajoelhar e vociferar chantagens proibidas e gritar e morrer. Para que ela então ficasse. Desejei ter asas, mas o que ela me deu foi o aroma simples de uma rosa branca, efêmera e plácida diante da morte. Dissolveu-se no ar. E assim tão simples, havia uma cumplicidade solene entre as intenções para construir as pétalas e as intenções por trás de tudo, onde todas elas nasciam. Pude vê-la diminuir ao horizonte como um verdadeiro ponto sem cor, e então ela desapareceu entre vultos e destinos, entre correntes. O tempo havia cravejado a sua foice implacável em nós, e ela então voaria para outros braços e outros sorrisos.

Não sei quanto tempo se passou que fiquei ali, deitada, tentando entender o que acontecia dentro do corpo. O tremor, as palpitações, as visões de futuro. Com os olhos fechados dos que precisam urgentemente costurar memórias para consolar a alma, murmurei o ódio e praguejei Deuses como nunca antes na história da humanidade. Acho que foram horas, várias horas. Sei que fiquei ali. Fiquei ali como prova da qualidade de raiz que eu a oferecia. Fiquei ali até que o orgulho me beijou na testa e me fez dormir.