quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Erva Primitiva


Quando me olho num reflexo qualquer: sou um campo sem limites, mas há uma árvore-arranha-céu, de folhas exuberantes e discoides, ervas primitivas se erguendo em filetes caracóis parasitando toda a casca velha e viva que faz chuva no solo, solo que pouco importa. Importa é que, tamanha a árvore que sou, quando tolda sobre mim o sol do amor, não faz diferença se me bate um vento forte ou fraco, a sombra é sempre grande, a sombra é chão, a sombra é morte, assoalho, firmamento e forma etérea mais concreta que nós dois.

De forma que, quando o vejo com o abrasivo olhar do amor, sem delongas moverei dentro de mim aranhas abissais. Teias com os átomos de poeiras do passado: cicatrizes sensíveis, gritos reprimidos no silêncio onde o orgulho dorme, esse túmulo frio que é a boca que te beija. Cada segundo que você desprende decifrando meus rompantes e contradições será o suficiente para que eu remonte todo o vitral de sacra igreja. Não se engane, nada nessas engrenagens respeita meus intentos nem a lógica já pouca dos apaixonados. Vem tudo de uma natureza que é tão provinda do âmago quanto o comer e beber e transar. E eu sinto, ah! Como sinto! Mas mesmo que recaia sobre mim a eletricidade toda de uma tempestade, quando me tocas ou quando sua voz arrepia a base do meu ouvido cansado, ainda serei a árvore flutuando no oceano de sombra. A treva é mais estável que essas piscadelas de luz, é ela que me olha quando fecho os olhos para te ver.

Vou te empurrar, na medida e na frequência com a qual se aproximas. Enquanto quiser saber meus maiores infortúnios, traumas, paradoxos... Enquanto quiser entender ou até remodelar essas pontas falhas, irei te amar, regozijar-me pela preocupação e o mimo. Mas serei fera. Não posso permitir que você me compreenda, pois preciso da ideia estúpida da singularidade para manter raízes vivas, ainda que flutuantes. Estúpida, portanto execrável, porque sou pouco e esses lampejos altruístas em que lhe admito isso são lampejos e tão logo já dito, se foram. Serei capaz de atrocidades inimagináveis, serei a predadora fria que te expurga pelos menores dizeres mesmo sendo você o pavimento e obreiro da minha estrada. De tanto fingir de esquecer, esqueço sacrifícios e pormenores carinhosos. O amor arguto que sinto quando diz que me ama, sol, é também o ódio que me inunda quando o vejo assim tão perto da zona escura, sombra. Não é tão simples, não são opostos, esses dois. São a mesma coisa, ao mesmo tempo, vindos do mesmo substrato. Amar implica em odiar na equação em que nasci. Não posso deixar que se aprofunde demais no mar de mim, são verdadeiras trevas! Cravarei as já ditas raízes nas suas pernas e te tirarei dali, vangloriando-me de ser sua salvadora, mas também torcendo para que se afogue novamente, com um meio esgar azedo no meu lábio comprimido. Preciso mantê-lo numa posição que me conforte, mas também me desconforta se não houver certo tipo de movimento. Acho que isso é intrínseco a todos nós.

Desista de mim. E entenda isso não apenas no tocante ao relacionamento: eu preciso que você desista para que eu avance. Que você desista para que eu vença. Que desista para eu travar minha própria luta. Pois só poderei lhe devolver sorrisos se você permanecer boiando, contente apenas com a lâmina-superfície, meros reflexos de água, balaustrados respingos nos seus lábios secos. Despreocupado transeunte transitório. O desmazelo é o que me mantém perto. Quando eu vier até você espavorida, claudicando, vociferando entredentes firulas quaisquer que eu insisto em transformar em monstros - sorria, concorde sempre, mas não os enfrente. Seria o mesmo que enfrentar a mim, que sou monstros, de tão machucada. Mas com essas duas lentes finas que você usa, desejo puro e intenções tenras, sei que não é capaz de atender a esse pedido. Nunca será o viajante tranquilo na canoa despreocupada que meramente passa por mim.

Então apenas desista.

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Texto inspirado em Herb Primitive, por Raine Holtz.
Mais em: Through Waves