quinta-feira, 20 de maio de 2010

André - Parte IV


- Senhor padre, por acaso sabe onde o dono desses materiais de pintura mora?

- Do lado da quitanda ali na esquina, meu filho...

- Muitíssimo obrigado! Informação realmente valiosa!

De súbito, como as lembranças que espreitam na mente até o momento oportuno de fazer valer sua existência, lembrei-me de uma música do Teatro Mágico que ouvira na casa da Thaís nos momentos áureos que me pareciam bem mais áureos naquelas divagações do que realmente foram. Basta as penas que eu mesmo sinto de mim, junto todas, crio asas, viro querubim. O verso regia a triste melodia que me conduzira até a basílica naquele momento. Um anjo que remodelava o seu caráter para fazer valer sua justiça. Mas as asas eram vermelhas. Asas de um querubim caído.

E de fato eu fui à busca de meu algoz, na enfadonha tarefa de vencer minha letargia. Uma tela estava lá, erguida numa haste da madeira. Em branco. Seu artista, como previsto, ausente. Se ele roubara o que há de mais precioso para mim, que mal há em tirar algumas partes dele também? Se de fato Deus existe, Ele haveria de entender a minha lógica. De entender a minha dor. Mas Deus não interpela por seus filhos... Carreguei os utensílios até a igreja e recebi, com o usual sorriso de bom samaritano, as úteis palavras do clérigo.

Toda aquela munição de informações e energia me amedrontou. Os passos, agora tímidos, conduziam-me a reflexões de impulso. Onde haveria de estar a felicidade se, mesmo aquela que preenchia o ar com juras e confissões de amor poderia provar o veneno da traição? Humanos podres! Fadados aos sentimentos efêmeros, a amores inconstantes e alicerçados em interesses fugazes! A eternidade de um amor seria uma triste utopia ou um mero egoísmo? Se eu pudesse me livrar daquela dor de alguma maneira... Ou melhor, se eu pudesse transferir para ela cada fagulha de desespero!

Vi-me já na quitanda. Uma casinha simples de alvenaria antiga, duas janelas e um jardim mal aparado. Retesei. A sensação do fim iminente me inundava num alívio extremamente doloroso. O fim... Lutava na busca de um preço que eu não seria capaz de suportar. A submissão, embora inaceitável, parecia tão menos cruciante!

- Você pode se elevar até o céu. Basta você querer...

E pela primeira vez aquele timbre ácido penetrava em meu ouvido. Era ele! Podia reconstruir na mente cada detalhe de sua silhueta. Queria agredi-lo, matá-lo! A ideia de derramar o sangue de um artista que não entendia o valor do amor me parecia assustadoramente convidativa.

- Já está feito. Prontinho!

- Que maravilha! Lindo, lindo, lindo! Obrigada, mesmo!

Antes que eu pudesse reagir, a porta de entrada se abriu num ranger metálico. Thaís! O primeiro sentimento que me afugentara fora o de uma saudade lancinante, voraz, que eriçava cada pêlo em minha extensão de pele. O ódio parecia se dissolver nas águas límpidas de sua beleza. Beleza essa reproduzida – e me fere admitir – com maestria num quadro que ela abraçava rente ao peito. Ela e o céu. E eu estava entre os dois, impedindo sua ascensão. Minha musa das tristezas infindas limitou-se a uma surpresa fingida.

- O que está fazendo aqui, André?

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Pedro e Liz - Parte II


É bem verdade que aquela cabeleira curta em chanel, rente aos ombros finos, não denunciava sua idade já superior aos trinta anos. Os lábios manchados de carmesim levitavam calmamente quando a mulher falava, ainda que as ondas sonoras expelidas por aquela boca de polpa carnosa pareciam retumbar durante longos segundos nas paredes do recinto. A vaidade nitente na figura de sua mãe soava ao garoto como uma ironia que aos poucos amargava a garganta, colando-a. Vanda investiu, aproveitando a feição pétrea de Pedro.

- Meu filho! – os saltos pontiagudos estatelavam no firmamento enquanto avançava. – Como senti saudades! Meu Deus, você está tão bonito! Exatamente como eu imaginava...

Sem se mover um centímetro sequer, o garoto sentiu os seios maternos tocarem sua testa enquanto era revolvido num abraço pouco caloroso. Fechou os olhos e percebeu as próprias mãos, que se negavam à reciprocidade daquele gesto, pendularem melancolicamente. Por mais desmesurada que parecesse a verossimilhança daquelas palavras, cada letra que sua mãe balbuciava lhe soava extremamente patética, desprovida de qualquer significado. Em suas divagações costumeiras sobre um possível reencontro com aquela que lhe abandonara, imaginava-a imersa em lágrimas, implorando desculpas aos quatro ventos e incitando histórias dramáticas que justificassem sua atitude. E o principal: diria que se arrependia muito, muitas vezes. Aquela silhueta, firme e de austeridade assustadoramente familiar, não era capaz de despertar nenhuma sensação naquele instante - nem sequer uma migalha de complacência.

- Você não está feliz em ver sua mãe depois de tanto tempo? – a chantagem tingida parecia ocultar uma vaidade interior.

- Sim, estou...

- Que ótimo! Tenho tantas coisas pra conversar com você...

- Onde está meu pai? – disse, desafiando as reações da mulher.

- Saiu, para que possamos conversar melhor. – murmurou baixo, ao pé do ouvido de Pedro, desenhando um sorriso de indiferença na face.

- Sei. Vou deixar minhas coisas no meu quarto e já desço para conversarmos.

- Tudo bem, meu querido. Quer ajuda?

- Não precisa.

Desvencilhou-se sem contato visual e subiu a passos rápidos a escadaria de uma madeira em podridão iminente. Entrou no quarto, no fim de um pequeno corredor, e fechou a porta num estampido mais forte do que desejava. Ali, naquela atmosfera que era só dele, liberou a respiração controlada que agora precisava da ajuda da boca para expelir aquelas bolhas de ar que outrora aprisionara, embora não sem dor. Grudou as costas na parede e tentou organizar os pensamentos. Não havia nenhum, além da própria ideia de não ter o que pensar. Uma nebulosa vazia confundia-o com uma tempestade de informações que em nada lhe afetavam. Sentou-se na cama, afundando os dedos delgados na cabeleira desgrenhada, num gesto de custosa impaciência, quando sentiu o celular em seu bolso brandir. Era uma mensagem de Diego.

Pedrinho, minha irmã gostou muito de você! Se não tiver nada pra fazer esse fim de semana pula aqui em casa, aí você dorme aqui e vamos ao clube sábado! Responda-me assim que puder. Abraços!

Procurou afastar Liz de sua mente. Em síncope, permitiu-se uma gargalhada histérica por constatar que sua profusão de emoções precipitava em cascata pela moça, mas não pela própria mãe. Não conhecia verdadeiramente nenhuma das duas há mais de um dia, afinal... Agora, com os rios fluindo perenes em seu âmago, uma vergonha mais acolhedora do que ofensiva, bem no abismo daquelas águas geladas, aquecia-o. Pensou nos homens que tocaram sua mãe, nas relações que estabelecera nesses anos. A liberdade da figura materna, que parecia dispensar qualquer nesga de satisfação, negando amortizar a sua ausência, confortava em detrimento de intrigar. Seria, em seus planos de megalomaníacos de evasão, deveras objetivo, e não fingiria a existência de um elo entre os dois. Mas também não exibiria rancor.

- Voltei, mãe. Pode falar o que queria. – ao fitar o olhar enevoado de Vanda, que se apoiava numa cadeira e encarava o assoalho liso, perguntou-se a cerca de quais assuntos ela conjeturara até então. Seria o flagelo do arrependimento?

- Serei direta, Pedro... – entrelaçou os dedos e curvou a cabeça, ocultando parte da face com os cabelos revoltosos que dançavam timidamente. – Nesse fim de semana quero que faça uma pequena viagem comigo.

- Viagem? – lampejou, perdendo o controle do tom. Sentiu a têmpora flamejar. – Você aparece sem dar nenhuma explicação e quer que eu viaje com você? Por acaso sabe se eu tenho algum compromisso?

- Estou doente! – golpeou-o no momento de sua exaltação, deixando que o silêncio anestésico perdurasse por segundos, para então prosseguir. – Tenho algumas semanas de vida e gostaria de passar um tempo com meu filho.

Atônito em suas pálpebras violentamente contraídas, Pedro se odiava por, mesmo diante da possível morte de sua mãe, não possuir sequer uma fagulha de desejo em acompanhá-la. O que mais o assustava era o motivo de tanta negação...

domingo, 9 de maio de 2010

Sueli


Era difícil se concentrar na televisão com aquele berro. Podia-se ouvir, no quarto há alguns metros depois do corredor principal, o berço tremendo de medo na iminência da solidão. A face austera da mãe era incapaz de ignorar o fato. As sobrancelhas arqueadas e a respiração forte denunciavam uma piedade difícil de compreender. O mais velho, após algumas fracassadas tentativas de livrar o irmão, rendia-se.

- Mãe, você não fica com dó?

A mulher por um segundo ignorou-o. Atentou-se ao fim do barulho, quando finalmente o sono sobrepujou o medo e o bebê mergulhou no universo escuro de seu quartinho. Então, repousou o olhar cálido na outra cria e respondeu:

- É claro que fico, meu filho! Mas é necessário. Você custou para dormir sozinho justamente por isso. Todos te bajulavam demais. Parte o coração mesmo, mas logo ele se acostuma.

Deu-lhe um meio abraço e puxou-o para perto, desgrenhando sua cabeleira negra e lisa de criança. Antes do fim da novela, ordenou-o que dormisse e, algumas horas depois, ela fez o mesmo, cobrindo a casa com o manto de silêncio.

O neném de traços rechonchudos, careca brilhante e cheiro de sabonete barato, calmamente, ao sabor do tempo, cresceu. Dormia sozinho e sorria muito. Num dia quente, quando brincava no jardim mínimo da área de lazer do prédio, a mulher – já com traços mais severos – observava-o enquanto sua mente vagava em problemas aos montes.

- Vinícius! Não mate as plantinhas, meu filho...

Não conseguia deixar de rir daquela silhueta serelepe, que se emaranhava entre as folhas e, imitando inocência, levava as mãos às costas e as retirava dos galhos uma a uma. Logo ficava entediado e disparava a correr aleatoriamente. Lá ia Sueli atrás de seu pequeno filhote. Ao fim do dia, ele dormia abraçado ao seu ventre, enquanto ela se perdia naqueles problemas agora em montes maiores.

- O Topo Gigio foi à praia, com o calção que ele ganhou... Chegando lá ele gritou: o meu calção rasgou!

Entre adversidades e alguns momentos de paz, a sólida educação se embasou, e aquela atenção precisa não era muito necessária. Já adolescente, o filho mais novo resolvia-se bem no colégio e, de temperamento geralmente calmo, não trazia grandes problemas. No entanto, guardava as coisas para si. Ah, o olhar de mãe...

- O que você tem, Vini?

- Nada.

- Sei que tem algo, fale logo!

- Nada não, mãe.

- Se você não falar eu vou descobrir!

- Não se preocupe, não é nada.

Ao fim das palavras, uma compreensão mútua que excedia os laços de sangue. Aquela face de adolescente, que de maneira clara tivera seus primeiros contatos com a podridão da vida, dilatava-se em suas novas cicatrizes. Queria abraçá-lo e pô-lo pra dormir ao som das mesmas musiquinhas de outrora. Mas, como dizem, os filhos são para o mundo...

- Olha, Vini, você precisa entender que sua família é a única que está aqui por você. Amigos vão e vêm, e geralmente não se preocupam com você reciprocamente. Tudo tem limite, até a bondade.

Sempre emitia feições de que não entendia bem o que a mulher dizia, mas ela sabia que a mensagem estava entranhada no inconsciente. Era boa com o caçula, sem limites. E tinha tantas coisas pra pensar! Precisava trabalhar, cuidar da casa e evitar que a indiferença afundasse sua família. Às vezes se sentia carente, jogando ao ar palavras incisivas para o rapazinho.

- Cada um só sabe pensar em si mesmo, ninguém olha o meu lado!

Embora o gosto ácido da injustiça jorrava em sua boca, mantinha-a fechada. Abraçava, beijava, cantava, corria... Uma criança, apesar de tudo. Quase adulto, quando as engrenagens da rotina paravam por algum motivo, seu olhar decaía sobre aquela mulher de uma forma diferente. Que grande teor de admiração! Era sua mãe, afinal, na totalidade do significado dessas três letras. E entre pensamentos sobre a não imortalidade daquela mulher, suspirava, abraçava, beijava, cantava, corria...

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Igor



Murmúrios inteligíveis. Ergue a mão ao ar e um círculo alquímico projeta-se. Dele, materializa-se um imenso machado que aos poucos toma forma definida. A lâmina adunca, na ponta da colossal haste de ferro que repousa no ombro da mulher, fulgura à luz da lua minguante. A extensão da arma ultrapassa em duas vezes a altura de sua manipuladora. Parece leve. O firmamento racha-se em pedregulhos marmóreos. Eleva-se uma tímida poeira. O coração sente misericórdia: fita as silhuetas que se aproximam com lufadas de tédio. Retesa.
- Ande logo com isso, Olga... Preciso de mais tempo aqui!
Por cima do ombro, vê um jovem de corpo esguio, de cócoras entre os estilhaços do assoalho. Conhecido há muito! Ramon, por trás dos óculos de telescópio, revira líquidos em frascos disformes. Uma caixa com vidrarias ao lado. As cores bruxuleiam. Concorda com o homem e se volta as suas vítimas. Os corpos sem vida, cerca de trinta deles, arrastavam-se no ritmo da falsa respiração.
- Pff... Não fique falando como se eu realmente precisasse de você!
Os fios negros, longos, escondem um meio sorriso. Sarcástico. Os cabelos, depois, flutuam. Gira o calcanhar e impulsiona o punho direito, desferindo a rotação para a extremidade inferior do machado. A placa de ferro rasga o ar, emitindo zunidos de corte. Um bocado de carne morta padece ao chão. Os pescoços tombados, em minutos, erguiam-se novamente. Mesmo sem membros. Ao fim da circunferência, Olga equilibra o peso com a outra mão. Brada alto. Exibe a fúria salivante e desfere um golpe vertical. Uns desalmados partem ao meio, e a lâmina, meteórica, afunda-se no mármore. A fissura impede a recuperação completa da postura de batalha.
- Já falei pra não sair lutando que nem uma idiota!
À direita da mulher, um zumbi aproveita-se de sua vulnerabilidade. Já na iminência de ser mordida, surge Ramon. Inclina o corpo para trás e desfere um chute certeiro no maxilar já entreaberto. A silhueta mole rola alguns centímetros. Seus irmãos se aproximam mais rapidamente.
- Intrometido... Eu também sei lutar sem meu machado!
- Que seja, que seja. O fogo grego está pronto.
Olhares de compreensão. Colocam-se de costas unidas. Olga retoma a defensiva com sua arma colossal. O amontoado de mortos vivos os circundam numa massa cinzenta de raio cada vez menor. Massa ondulante. Cinza. Fétida. As expressões se contraem em seriedade. Na aproximação certa, o grito:
- Ora, lege, lege, relege, labora et invenier!
Ore, leia, leia, releia, trabalhe e encontrarás. Depois de expelidas pelos lábios finos do homem, surge em suas mãos o símbolo da borboleta. A transmutação. A metamorfose almejada pela alquimia. Com o frasco de líquido carmesim em mãos, lança-o.
- Hora da limpeza! É melhor você sair de perto, hein?
Aderiu, após recolher a vidraria. Os zumbis pareceram ganhar expressão. O sangue da moça queimava em resposta ao estupor. A face: rubra. Um ataque certeiro fez o machado romper o cristal do tubo de ensaio, livrando o fogo vermelho-amarelado. Cria-se luz! A lâmina, num incêndio vigoroso, troveja na noite silenciosa, lacerando o tecido daquelas criaturas maculadas. Gritos de vitória! A bela mulher urra desferindo poucas investidas. Mas de alcance assustador! Ora pulava descrevendo meios círculos no ar, ora espalhava a flama em pequenos tornados. Agilidade sobre-humana. Completo frenesi. Vencê-la, naquele instante, parecia impossível. Aos poucos, as dezenas tombam em cinzas sagradas. O suor da vitória goteja. Fresco.
- Muito bom, Olga, muito bom!
Dos escombros, o sorriso sincero traz a imagem da bonança. Ramon atira um pote com um líquido borbulhante, esverdeado. Um convite à revitalização.
- É, eu sei. Temos que seguir por aquele corredor até o pátio principal. Os outros devem estar com problemas.
- Sim, vamos! Se os enfeitiçados chegarem a machucar o Igor, capaz que a cidade seja destruída...
Bebe em goles rápidos. Não havia tempo: o risco era real.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Mihir


Nymphaea lotus. A flor de Lótus: ícone das doutrinas religiosas orientais cuja simbologia evoca as raízes culturais de diversos povos. Flor aquática, dispensa regas e pode ser cultivadas em ambientes diversos, justificando sua abundância em quase toda a Ásia. Ao emergir imperiosa do lodo, personifica a superação de obstáculos preconizada pelo budismo. O desabroche, que se configura em pétalas de brancura inalienável, trazem consigo a mensagem da pureza mesmo diante das inúmeras máculas do mundo, através de canais e práticas espirituais construídas com amor e compaixão - a espada e o escudo de Buda.

Mihir, na posição meditativa que homenageia o talvez maior símbolo da religiosidade oriental, sustentava levemente seu corpo infantil numa postura onde suas pernas, cruzadas e entrelaçadas, alicerçavam nos joelhos as mãozinhas de dedos delgados. O assoalho de madeira, que revelava aos fundos do templo um imenso jardim a sua frente, não era sentido pelo garoto. Focava-se na respiração ritmada, buscando o completo vazio da mente. O ar, que de maneira calma percorria suas vias respiratórias e retornava, era como um fluxo de energia pura revitalizando seu interior.

- Mihir, já é o suficiente... – uma silhueta extensa, de proporções colossais quando comparadas ao menino, trazia em sua pele de chocolate moldada pelo escaldo solar uma expressão de serenidade acolhedora.

- Sim, Balamohan. – assentiu num meio sorriso, ao perceber as mãos pesadas de seu mentor desgrenhando sua cabeleira negra. – Mas quero ficar aqui mais um pouquinho, se me permite.

- Farei companhia.

O pequeno indiano, ao abrir os olhos, contemplou a botânica exuberante que o margeava. De pequenos arbustos retorcidos a árvores de copas largas e compridas, o vergel exibia uma miscelânea de espécies vegetais que refletia na abundância de insetos e outros polinizadores. Desprendendo-se da elevação de madeira, Mihir pôs-se a caminhar entre os caules diversos, sentindo aromas ludibriantes que se confundiam nos receptores olfativos do garoto. Um fruto de casca escura, que se dependurava glorioso no pedúnculo esverdeado, chamou-lhe a atenção. Ele já bem sabia que se tratava de um mangostão, fruta exótica comumente às regiões do sudeste asiático, nas zonas tropicais. Mesmo sem fome, colheu-o e retornou ao tablado.

- Entre todas, trouxe logo a rainha das frutas.

- Rainha das frutas?

- Isso mesmo, ela é chamada assim! O mangostão possui diversas propriedades... – murmurou, acariciando a barba branca como se o ato aumentasse a fluidez de seu conhecimento. – Impede que o corpo acumule muito peso e evita o aumento da pressão sanguínea. Também dizem que previne o cansaço.

Arqueou as sobrancelhas num sinal de sincero interesse. Dado o silêncio, abocanhou a rainha sem hesitar. Os dentes afundaram na polpa que era reconhecida por ter o melhor dos sabores. Mentira. A mucosa bucal logo se enrugou em contato com o gosto áspero e sujo. Mihir cuspiu antes mesmo de engolir. Dentro, o mangostão exibia um estofado verde escuro no lugar da textura escarlate comum.

- Está podre! – exclamou, para depois suspirar pelo canto da boca – Como pode! Tão linda, macia e cheirosa...

- E continua linda, macia e cheirosa. – lampejou, incisivo.

- Mas de que adianta, Balamohan?

- Não seja ignorante! Esses atributos são úteis à fruta justamente para que se aproximem, exatamente como você fez! – virou-se de costas e abaixou o tom da voz – Caso não aprenda a deixar de ser seduzido pelo envoltório externo, pelo charme e pela vaidade, acabará se decepcionando com âmagos podres com cada vez maior frequência.

- A raiva parece me dominar, quando me deparo com essa podridão que existe em todas as coisas do mundo... – sibilou, com as pálpebras caídas e os braços moles. Sentiu que a determinação no controle espiritual através da meditação tinha sido totalmente em vão. O velho percebeu a angústia, voltando a ostentar a aparência receptiva.

- Não se sinta culpado por isso, meu caro jovem. Você não é culpado pelo que sente, mas sim pela forma com que age. Se quer evoluir, redirecione esse sentimento para as saborosas frutas que você certamente encontrará e fique grato pelas que já encontrou no seu caminho.

O pescoço se deslocou numa afirmação. Compreendia. Limpou a terra dos joelhos e voltou a se aventurar na mata densa. Sentia fome.