quinta-feira, 21 de abril de 2011

Comatoso


Como ela poderia estar tão inebriante em beleza? Os cabelos de seda negra cascateando defronte aos miúdos olhos falsamente marejados. Os traços finos suicidando no precipício do queixo, todos juntos na perfeição do retilíneo inviolável. A pele talhada num moreno lascivo que ousava brilhar. E maquiagem, não era ocasião pra maquiagem! E no útero do ódio de onde eu nascia a cada instante, nasci e odiei Marília mais uma vez.

Queria nela o caos! Os fios negros reverberando ao estapear desordenado do vento. A palidez, também dos lábios. Os punhos cerrados em revolta. Gritos, que viessem! Que tudo viesse e fosse fruto do descontrole de quem teme e de quem ama. Mas não da compostura gélida em máscara de etiqueta.

Mas só há compostura. E meu ódio-amor na dicotomia mais tenra e insaciável eram linhas que ela tecia sobre mim para o controle. Costurando na minha feição uma moldura pétrea de resignação. Costurando a boca com agulhas finas. Eu olhava. Embebido pela beleza da beleza e pela beleza de sua podridão. Pois até seu podre era belo. Erguendo-se sobre mim como uma aranha de patas em veludo. Eu na maca, prostrado em velório a mim mesmo, nada tinha senão as cartas vazias que se joga no silêncio. Os olhares cúmplices.

- Ah, meu amor, fiquei tão preocupada com você!

E cada sílaba carregava consigo toda a estiagem do mundo. Com secura de trincar minha pele já em fase de esfarelar. Seis meses que perdi. Seis meses em coma. E o soro gotejava calmo num sussurro de morte suave e longínquo, familiar. Eu olhava. Como ela estava bonita! Aproximou-se de mim como quem se interessa por um animal exótico, mas ainda com nojo. Aquela atração execrável pelo sujo. A sobrancelha tremulava alguns milímetros, ziguezagueando. Eu conhecia bem aquela postura: a de quem não suporta o fardo do segredo. E nem o fardo da verdade. Por segundos me pus a imaginar. Os outros romances. Outros presentes. O desejo ácido de que eu partisse (até eu o tenho!). Mas não sou mais receptáculo para emoções. Não sinto gosto da lamúria. As emoções não me salvaram. Então, eu apenas olhava, quieto.

Senti sua aproximação e a teia se formando. Tocou-me, mas eu não a sentia. Paralisado, via minha mão tocar a dela sem tocá-la. E toda força que havia dentro de mim era nada senão um comichão em todo lugar, em lugar nenhum. Uma coceira na base do pensamento. Um arrepiar de tudo e um impulso sem destino.

Seu olhar pendulou sobre meu punho. Claramente decepcionada. Talvez houvesse em sua postura temerosa a curvar-se um átimo de piedade a fornicar-lhe a mente. Piedade não de mim. Mas de querer encontrar em si mesma alguma fonte própria de benigna consciência. Buscando em si o que fora outrora, mesmo que teatralmente. Buscando em si os valores que a todos pertencem, ou deveriam pertencer. Pude senti-la cavando sua essência a procura de compaixão por aquela massa humana deitada afronte. Mas numa baforada de impaciência seguida de um mergulho de ambas as mãos na cabeleira fez-se a desistência semeada e germinada e crescida e regada. Os frutos degustados. A semente, cuspida na minha face. Fui dissecado. O corpo exaurido, imprestável, varrido por um obelisco feminino aos pedaços, ainda que por fora intacto. Eu: o vegetal de olhos abertos que nada podia oferecer senão a ausência de palavras.

Um estridor reverberou nas paredes brancas do meu último leito. Aquele som estava em algum lugar da minha memória, perdido entre tantos outros arquivos prontos para serem queimados. Era seu celular.

- Alô? Sim, estou com ele. Não posso falar por muito tempo. Não se preocupe, não se preocupe. Não demorarei aqui. Passei para ver se ele podia falar. Mas não pode. Não se preocupe, não se preocupe.

Que estranho, ela nunca gostara de jóias! Mas um colar de safiras retinia num azul singelo, coroando-a tímido, porém imperioso. Ela gostava de azul, então eu só comprava gravatas azuis. Mas nunca jóias. E meu último movimento, meu adeus à humanidade, fora tingido de azul. Na escada, antes do firmamento padecer, pintava num azul bem leve o quarto do nosso filho que viria e não sei se veio. Ah, talvez eu seja pai...

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Mesmerizar-se


Abriu os olhos. Na parede, o sol se refletia em laranja, e a cortina mofada de renda costurava com a sombra pequenos eclipses disformes. Sabia: era a hora exata de acordar. Acordado já estava – há quanto tempo? – mas ficaria ali a observar seu caleidoscópio particular por mais alguns segundos. Na cama pequena, desajustada para seu crescimento desajustado. Que o limitava a uma única posição lateral, de pernas flexionadas, com a possibilidade de talvez um giro pelo próprio corpo para fitar a janela. Mas havia luz demais do outro lado, e ele não podia encará-la. Havia espaço, havia liberdade. Havia um bonito campo verde ao fundo pra onde outrora planejara em fracasso fugir. E aprendeu, ao dissabor de várias surras, que ele era e sempre seria o antônimo de tudo que é livre. Encarcerado na sua própria grandeza, as costas suadas de um pesadelo já esquecido, os olhos marejados de sono e tédio, as articulações em frêmitos da circulação comprometida pela prisão que era dormir. Mas ainda melhor que acordar.

E no desalinho de sua completa desproporcionalidade, ergueu-se. Sentado na cama, vislumbrou mesmerizado seus membros artisticamente dilacerados. Na perna, uma mancha esgueirava-se pela maior parte de sua coxa. As bordas em crosta, denunciando uma ferida recente. E cicatrizes concêntricas à queimadura criavam uma tatuagem de um sol meio negro meio roxo. Tatuagem em tinta de ódio. Que infiltrava nas veias e anestesiava seu corpo. E seus olhos. Aquele olhar em nebuloso do garoto era um poço sem início e sem fim. Apenas com o vazio familiar de quem a nada se apegava não por frieza, mas por não ter escolha. E uma leve constatação nos braços de uma constelação de outras pequenas máculas diversas. Eram poucos centímetros de pele preservada. Aquilo era sua capa, sua carcaça, sua casca, sua casa.


Vestiu uma calça e uma camisa de manga comprida. Queria mesmo é uma máscara. Fazia muito calor.


Leonardo não tinha apelido. Pronunciavam seu nome grande tal como era. Talvez porque sua face talhada em crateras e cortes não inspirava nenhum tipo de doçura por parte de ninguém. Só secura. Ou porque diminuir seu nome significaria criar um laço cujo fardo não haveria a quem encarregar. Mas ele se chamava de Leo, em seus pensamentos migratórios a mundos fora da Terra onde metabolizava toda sua subjetividade em fantasias abstratas, funestas e até eróticas. Leo então era Deus, e os outros meros servos a seu bel prazer. Nisso, pessoas lambiam sua cútis podre como se tivesse o sabor do Elísio. Chamavam-no de belo, de único, de especial. Elevavam-no a uma divindade pelo dom que possuía. E poderia escrever destinos, e até mesmo o seu... Eis seu universo particular: a vingança semeada e cultivada por toda uma vida. Vingança por quem o fez diferente, essa experiência falha para a vida, mas pronta para o descarte. Pela escravidão da alma - se é que tinha - aos grilhões frágeis de quem nada tem. E por não saber que palavra era aquela que borbulhava nos lábios de todos: amor!


Leonardo tinha doze anos. E não sentia de dor. De nenhum tipo. Nenhum resquício. Nasceu assim...


Embebido em descrença! Aprendeu na escolinha que papai do céu fica triste quando os filhos desrespeitam, xingam, batem ou odeiam seus pais. E ali, debruçado sobre a pia gordurosa por guloseimas que nem sequer viu, questionava-se se esse mesmo papai do céu não se comovia com suas lamúrias. Se Ele não ficava triste quando os pais desrespeitam, xingam, batem ou odeiam seus filhos. E também se esse papai do céu, acomodado em seu trono celestial, plantaria, algum dia, amor no seu coração para com aquela figura amebóide que recebeu de algum infeliz a alcunha de pai. Difícil... Ao olhar por cima do ombro e vê-lo imperioso em seu gigantismo assimétrico, esparramado flacidamente pela extensão do sofá, uma confluência de sentimentos ácidos complexos de descrever jorravam uma saliva amarga na mucosa crispada e sanguinolenta do garoto. Mergulhado num espectro infantil de reconhecimento da realidade, não saberia nomear aquela sensação irritadiça como o próprio sentimento do qual o suposto Deus supostamente se chateava: ódio. O arrepiar em frenesi que normalmente sentia em momentos como aquele, em que ouvia o ranger da movimentação de seu pai no atrito de sua pele membranosa em contato com mais pele membranosa. Os calafrios da iminência de um pesadelo ricocheteavam em seu corpo por inteiro, trazendo lufadas geladas ao seu estômago. Concentrou-se na louça. Mas aquele barulho familiar do atrito somado à pressão de passos firmes no assoalho de madeira era a trilha sonora de tantos outros momentos vistos, previstos, sentidos. Não esquecidos...


Primeiro os passos. Depois a voz que esbravejava ofensas que ressaltavam a inutilidade de Leonardo, a incapacidade, o talento para desastre e sua feiúra sem limites. Vociferava que devia tê-lo abandonado como a mãe fizera, ou sugerido o aborto. E, não com aquela falsa sinceridade de quem está magoado e finge ser forte, mas com uma sinceridade límpida de quem não entende o acaso da vida: o menino sinceramente concordava. Quase sorria meio débil. Porém, os lábios não se abriam para consagrar o ultimato da resposta. De alguma forma aquelas sensações estranhas e perigosas que fulguravam em seu interior e gritavam em uníssono para cada canto do seu íntimo trancavam as portas. Trancavam a boca de onde de dentro destoam os gritos.


Pois quando ele elevava a mão inchada para desferir-lhe um soco contra a face menos marcada, não havia nada senão a sensação incômoda de ser deslocado para outro lugar bruscamente. Humilhantemente esgueirar-se e ir dobrando-se e desdobrando-se e redobrando-se para o equilíbrio. A feição continuava estéril, pétrea, de cera, focalizando qualquer coisa no rosto do pai, qualquer detalhe macabro que talvez o fizesse sentir aquilo que todos temiam. E se agarravam. O sentimento que faz o homem se ajoelhar em pranto e agonia, mas que também o faz erguer-se sobre seus traumas para respirar mais forte que outrora. Cerrar os punhos contra os próprios fantasmas e ceifar o desalento de toda uma vida. Foi puxado pelos dedos gordos cravados em sua nuca para que padecesse contra as próprias pernas. Naquele momento, em que se precipitava de encontro ao chão como uma fruta podre que se desprende para se decompor, descompôs-se enfim. Fechou os olhos.


Água. Seu corpomovia-se lento, pois o oceano de uma água cálida, estática e quente, abraçava-o todo num esmero zeloso e confortável. E respirava. O horizonte verde-azul era como um abismo de paz, um poço de uma tranquilidade anestésica que o fazia prolongar-se a cada piscar temeroso da realidade. O silêncio... Ninguém. A pele íntegra, curada, movia-se em desordem, como uma criança na experiência de um universo completamente novo. O gosto doce de possuir por completo os próprios movimentos. Desenhar com os membros as figuras cicatrizadas na alma. Se soubesse desenhar seus próprios vórtices de tristeza... Fez com o dedo um redemoinho. As possibilidades tantas: giros, cambalhotas, contorções. Com a boca, bolhas! Que subiam... Mas havia acima de si uma lâmina de espelho d’água que não refletia nada senão confusão. E depois dela a incerteza. Voou até lá numa zarpada eivada pela curiosidade de menino. E emergiu submergindo em mais água. Em mais nada, silêncio, ninguém. E de onde de tudo no fundo de si e além, a verdade: a solidão. Gélida. Era água e só. Liberdade crua. Não era uma praia com sua mãe observando como ele nadava. Não era uma piscina e seus amigos pulando e brincando. E focando a visão, todo aquele azul costursuturado em verde era senão um túnel negro. Era ele, sem nada, sem tudo, sem luz, sem dor.


Abriu os olhos. A água extravasou do inconsciente e reencarnou em lágrima. A primeira! Escorreu sequiosa, tremulou no nariz e faleceu no chão.