Primeiro ele se aproximou até que os olhos fossem globosos como o mundo, a fitá-la num interesse para além daquilo, que viajava sobre algum ponto inalcançável do universo. Depois, acariciou a cabeleira desgrenhada da mulher, polindo seu couro com as falanges macilentas enquanto revirava qualquer coisa em lábios descarnados. Que porventura se alargavam em risinhos interrompidos. Os dela, um risco duro em madeira escura, deitavam quietos sobre o abismo da voz. O plano mais engavetado de sua consciência quis vociferar insultos, levantar da maca e ir embora de supetão. Nada a impedia. Mas aquele acordar do avesso, de gosto estranho, pareceu ter desconectado-a do que talvez chamasse, um dia, de sua única e verdadeira essência. Tudo o que fez foi nascer no ventre do silêncio e anestesiar as dúvidas com a curiosidade indiferente de quem a vida se faz surpresa pouca. E ficar ali. O semblante do homem revolvia-se e engolia-se para cuspir feições da candura ao pavor, do fogo ao pétreo, masculino e feminino imbricados. E ele se movimentava sobre o aposento de luz fraca procurando extensões de si como um moribundo desesperado. E os risinhos. Vera lembrou-se que era Vera, que era velha, que era fraca, que era suja e burra pouco menos que uma pedra. O senhor de súbito a encarava novamente, tão incisivo quanto outrora, e parecia discordar com veemência. Possuía olhos difíceis de enfrentar, que a fizeram fugir para o soslaio dos covardes. Viu que ele trazia pendendo no punho cerrado uma linha vermelha, que pendulava lentamente cantando os segundos como um filete de sangue que foge da morte. E então ela sentiu todo o sabor daquele cordão quando a agulha que ele escondia rasgou sua boca em ziguezagues desordenados. Era de uma umidade difícil de sorver, que ao precipitar sobre sua garganta seca ferveu as memórias do fundo e a levaram até Cenourinha. Seu único brinquedo, um coelho de pelúcia da cor do lodo. Sujeira impossível. Só possuía um dos olhos, e todas as vezes que Vera o notava melancólico em qualquer canto, eis uma fonte inesgotável de piedade inanimada – e por isso inesgotável. Abraçava-o com toda fugacidade dos abraços, no aperto embalado por ausências, e quando sua boca se encontrava com a pelugem do animal-mentira, era esse o gosto. Essa gota escondida que se suga com dificuldade. E agora também havia sangue, seu sangue, mas que não corria apavorado. Mergulhava, e o ferro era tudo que se sentia. Sem dor, sem incredulidade, sem martírios lúbricos. Sem dor... Como ela podia não sentir dor se ele havia costurado-a como seu mais primoroso espantalho particular? A cognição que destrói as falsas realidades denunciou, e ela partiu o pesadelo fracassado a contragosto.
Vera,
Não vou dizer que essa carta foi um ímpeto fácil, desses vômitos que nascem das bocas em fúria. Foram noites em claro, foram noites suspiradas, foram noites que se delongaram como um inferno gelado me queimando dia após dia. Mas há nos adultos essa coisa de tentar tampar as verdades com os dedos entreabertos enquanto o outro insiste em fechar os olhos com força. E é isso que nós dois fazemos, é isso que nosso casamento se tornou desde que foi consumado. Consumindo tudo até as cinzas em que nos afogamos sem perceber.
Éramos pouco mais que crianças, éramos apenas quase jovens quando decidimos com muita ignorância costurar nossos destinos nesse nó cego! Como haveríamos de ter a maturidade suficiente pra prescrever o futuro? A única coisa que eu sabia sobre você era das suas curvas morenas e dos nossos beijos. Nunca soube de fato quem você é, e diria que não sei até hoje. Não sei o que a compõe, essa matéria dissimulada que ergue esses muros no contorno. E ninguém passa. Nem você mesma. Não sei o que acontece dentro da sua cabeça, do seu coração. Você vive todos os dias com uma maquinaria robotizada e enferrujada, placidamente social, e quando surge até mim os beijos agora secos - eles não são nada além de tempo escarrado num ralo qualquer.
Isso que faço não é uma vontade recente. É tão antiga quanto eu e o tempo que lembro de você. Só que, essa noite, sonhei com sua morte. Uma gangue de ladrões entrou aqui em casa e disparou todas as balas de todas as armas do mundo no seu corpo. Eu, ao longe, ouvia os barulhos como quem ouve uma sinfonia em melodia rara. Quando acordei, Vera, senti sua respiração e lamentei! Quase até chorar! Lamentei como um homem que pragueja contra a própria fé.
Não tenho piedade em fazer essas linhas porque já imagino sua feição que só se limitará a erguer as sobrancelhas num atrevimento comedido. Sei que não haverá lágrimas, nem palavras, nem telefonemas, nem procuras, apenas a interiorização de tudo para a introspecção no seu mundo, onde você realmente vive. Sua intimidade vazia.
Meu único pesar é pelas crianças, mas elas também não merecem essa família de porcelana. Tenho medo que elas herdem seu caráter podre, e por isso as levarei comigo. Embora pode ser tarde demais... Talvez você até goste de ficar sozinha, talvez encontre paz dessa maneira. Não adianta me procurar, ou colocar a polícia atrás de mim. Não me encontrará, nunca me encontrou.
Guarde essa carta como prova da minha derrota, de que tanto me orgulho. Eu tentei, Vera, eu tentei, mas você é quebrada e eu não me acostumei a me cortar com seus cacos. Você não funciona, é errante, é devastada, é um erro implacável que eu me recuso a cometer novamente. E eu vou me perdoar, acredite.
Adeus,
Sérgio.
III
Subir aquela rua – só com esses passos de quem finge não ter pressa. A menina Vera defletiu a cabeça em direção ao véu negro salpicado de pequenos pontos brilhantes. Gostar de estrelas era um bom refúgio. Preferia as nuvens, agora camufladas na treva, que quando banhadas pelos dedos do Sol pareciam esconder qualquer mistério execrável no dorso. Vera se perguntava se haveriam de viajar ali as pessoas mortas, num jazigo flutuante. Se um dia veria o mundo de tão alto. E seguia a contar estrelas, contando estrelas, contando estrelas...
O portão era uma tábua de madeira sempre aberta e sempre emperrada, em que ela precisava usar toda a contração parca de corpo marasmático e exausto pelo dia de trabalho para enfim movê-lo alguns centímetros. Ao passar através da pequena fresta, esgueirando-se como um lagarto furtivo, outra pequena elevação do lote se erguia a sua frente. Por um momento buscou dentro de si qualquer fonte de força abissal, ares quentes e impulsos de origem desconhecida, porque lá dentro do âmago crepitava o medo da noite.
Um grito, desses de entranhas massacradas, irrompeu das janelas do casebre como um sopro de morte e ceifou devaneios. Por um momento Vera pensou em correr, fugir, dormir na rua, desistir. Mas o dever era seu mais hábil ventríloquo, e as linhas estavam em todos os lugares. E o estrangular completo se ousasse fugir era o horizonte em que se via. O dever de filha mais velha. E quando a mais nova lhe veio correndo e a cabeleira hirta estapeando o espaço na desordem toda que tudo era, sabia: o usual prelúdio de qualquer tragédia diária. Não sabia, era mais: a hecatombe.
– Vera, vem logo! – pavoneou e exibiu a bocarra suja de criança, sua irmã, dois anos mais nova e cem anos mais jovem – É a mamãe, Vera! Ela tomou alguma coisa de um vidrinho e agora tá lá no chão, acho que tá morta!
Era mesmo a mãe e estava mesmo morta. A mulher parecia um amontoado de qualquer coisa e panos e cabelo embalados num sono fugidio e pálido, meio curvada no assoalho como quem sente a ardósia gélida demais. Em algum momento ela deveria se acostumar. Derrisória paisagem, mas não o suficiente para lágrimas. Ali, uma vírgula humana entre as próprias reticências. Não havia no seu rosto expressão alguma, mas a aceitação tenra de quem não contrai músculos nem vísceras. O vestido era do tecido da noite, calcinado de quaisquer tarefas doméstica extasiantes, que ela usou com frequência nas semanas anteriores. Luto?
Vera afagou a caçula roufenha a chorar em pânico, afundando com força o rosto da menina nas suas vestes agora empapadas. Os sentimentos imiscuídos eram menos que aquele vômito de silêncio, o paraíso de que sonhara. Caso a irmã interrompesse os berros. Seu mestre invisível, o ventríloquo, fez dela somente movimentos precisos e mais linhas e responsabilidades. Havia uma inveja pela libertação, a querela de um suspiro de onde vem essa anátema persistente. A fruição das sensações era mais vertente do ódio que do amor, a mãe amaldiçoara-a com seu egoísmo. Não a culpava.
Na madrugada que veio e passou, elas ali sentadas numa quina da cozinha. Abraçavam joelhos, imaginando os passos seguintes na neblina escura, a revolver uma fraternidade colossal nunca antes existente, quando os estômagos gritaram pela fome crônica. E entre os vasilhames poucos de arroz e outras coisas, também havia comprimidos. Comprimidos em todos os lugares, esfarelados sobre todos os alimentos.
Ele lambia os cantos da boca como uma hiena.
– Você precisa muito desse emprego?
– Muito!
– E qual é o motivo?
– O motivo é que sou a melhor para esse cargo.
– Ousada, ousada...
– Sincera.
– Até onde você estaria disposta a ir para tê-lo?
– Até onde o senhor iria para me testar?
O homem de gravata prata fitava a saia de Vera e sua pupila se dilatou. Prendeu-a pelos punhos e colocou a mulher na mesa, encurvada. A despeito das formalidades, a moça de dezoito anos ensinou para ele o caminho até a umidade que guardava entre as pernas. Foi fácil passar pelo conduto de barreiras tantas, e de dois se somaram por fim em um.
– Quantos dias você trabalharia por semana?
– Todos.
– Você é casada?
– Talvez.
Gemidos em suspiros derradeiros, farpas de vento no espaço morto. Vera não sentia prazer, tampouco seu fôlego se imiscuía com aquele atrito indiferente.
– Têm filhos?
– Talvez.
– Conheço seu tipo.
– Talvez.