domingo, 20 de novembro de 2011

Fragmentos

I

Primeiro ele se aproximou até que os olhos fossem globosos como o mundo, a fitá-la num interesse para além daquilo, que viajava sobre algum ponto inalcançável do universo. Depois, acariciou a cabeleira desgrenhada da mulher, polindo seu couro com as falanges macilentas enquanto revirava qualquer coisa em lábios descarnados. Que porventura se alargavam em risinhos interrompidos. Os dela, um risco duro em madeira escura, deitavam quietos sobre o abismo da voz. O plano mais engavetado de sua consciência quis vociferar insultos, levantar da maca e ir embora de supetão. Nada a impedia. Mas aquele acordar do avesso, de gosto estranho, pareceu ter desconectado-a do que talvez chamasse, um dia, de sua única e verdadeira essência. Tudo o que fez foi nascer no ventre do silêncio e anestesiar as dúvidas com a curiosidade indiferente de quem a vida se faz surpresa pouca. E ficar ali. O semblante do homem revolvia-se e engolia-se para cuspir feições da candura ao pavor, do fogo ao pétreo, masculino e feminino imbricados. E ele se movimentava sobre o aposento de luz fraca procurando extensões de si como um moribundo desesperado. E os risinhos. Vera lembrou-se que era Vera, que era velha, que era fraca, que era suja e burra pouco menos que uma pedra. O senhor de súbito a encarava novamente, tão incisivo quanto outrora, e parecia discordar com veemência. Possuía olhos difíceis de enfrentar, que a fizeram fugir para o soslaio dos covardes. Viu que ele trazia pendendo no punho cerrado uma linha vermelha, que pendulava lentamente cantando os segundos como um filete de sangue que foge da morte. E então ela sentiu todo o sabor daquele cordão quando a agulha que ele escondia rasgou sua boca em ziguezagues desordenados. Era de uma umidade difícil de sorver, que ao precipitar sobre sua garganta seca ferveu as memórias do fundo e a levaram até Cenourinha. Seu único brinquedo, um coelho de pelúcia da cor do lodo. Sujeira impossível. Só possuía um dos olhos, e todas as vezes que Vera o notava melancólico em qualquer canto, eis uma fonte inesgotável de piedade inanimada – e por isso inesgotável. Abraçava-o com toda fugacidade dos abraços, no aperto embalado por ausências, e quando sua boca se encontrava com a pelugem do animal-mentira, era esse o gosto. Essa gota escondida que se suga com dificuldade. E agora também havia sangue, seu sangue, mas que não corria apavorado. Mergulhava, e o ferro era tudo que se sentia. Sem dor, sem incredulidade, sem martírios lúbricos. Sem dor... Como ela podia não sentir dor se ele havia costurado-a como seu mais primoroso espantalho particular? A cognição que destrói as falsas realidades denunciou, e ela partiu o pesadelo fracassado a contragosto.

Quando sentiu as costas suadas no lençol, veio a dor crucial da verdade. Inclinou-se rapidamente e tateou no escuro o relógio de cabeceira. O peito tamborilando numa síncope acostumada. O ar saindo pelos lábios livres da costura. Igualmente mudos. Vinte minutos haviam se passado. Queria horas, dias, vidas, mas o tempo a castigava tão somente por maldade. Na ausência de pelúcias e afagos, abraçou os joelhos e rezou a Deus para que o pesadelo acabasse. O pesadelo essencial.

II

Vera,

Não vou dizer que essa carta foi um ímpeto fácil, desses vômitos que nascem das bocas em fúria. Foram noites em claro, foram noites suspiradas, foram noites que se delongaram como um inferno gelado me queimando dia após dia. Mas há nos adultos essa coisa de tentar tampar as verdades com os dedos entreabertos enquanto o outro insiste em fechar os olhos com força. E é isso que nós dois fazemos, é isso que nosso casamento se tornou desde que foi consumado. Consumindo tudo até as cinzas em que nos afogamos sem perceber.

Éramos pouco mais que crianças, éramos apenas quase jovens quando decidimos com muita ignorância costurar nossos destinos nesse nó cego! Como haveríamos de ter a maturidade suficiente pra prescrever o futuro? A única coisa que eu sabia sobre você era das suas curvas morenas e dos nossos beijos. Nunca soube de fato quem você é, e diria que não sei até hoje. Não sei o que a compõe, essa matéria dissimulada que ergue esses muros no contorno. E ninguém passa. Nem você mesma. Não sei o que acontece dentro da sua cabeça, do seu coração. Você vive todos os dias com uma maquinaria robotizada e enferrujada, placidamente social, e quando surge até mim os beijos agora secos - eles não são nada além de tempo escarrado num ralo qualquer.

Isso que faço não é uma vontade recente. É tão antiga quanto eu e o tempo que lembro de você. Só que, essa noite, sonhei com sua morte. Uma gangue de ladrões entrou aqui em casa e disparou todas as balas de todas as armas do mundo no seu corpo. Eu, ao longe, ouvia os barulhos como quem ouve uma sinfonia em melodia rara. Quando acordei, Vera, senti sua respiração e lamentei! Quase até chorar! Lamentei como um homem que pragueja contra a própria fé.

Não tenho piedade em fazer essas linhas porque já imagino sua feição que só se limitará a erguer as sobrancelhas num atrevimento comedido. Sei que não haverá lágrimas, nem palavras, nem telefonemas, nem procuras, apenas a interiorização de tudo para a introspecção no seu mundo, onde você realmente vive. Sua intimidade vazia.

Meu único pesar é pelas crianças, mas elas também não merecem essa família de porcelana. Tenho medo que elas herdem seu caráter podre, e por isso as levarei comigo. Embora pode ser tarde demais... Talvez você até goste de ficar sozinha, talvez encontre paz dessa maneira. Não adianta me procurar, ou colocar a polícia atrás de mim. Não me encontrará, nunca me encontrou.

Guarde essa carta como prova da minha derrota, de que tanto me orgulho. Eu tentei, Vera, eu tentei, mas você é quebrada e eu não me acostumei a me cortar com seus cacos. Você não funciona, é errante, é devastada, é um erro implacável que eu me recuso a cometer novamente. E eu vou me perdoar, acredite.

Adeus,

Sérgio.

III


Subir aquela rua – só com esses passos de quem finge não ter pressa. A menina Vera defletiu a cabeça em direção ao véu negro salpicado de pequenos pontos brilhantes. Gostar de estrelas era um bom refúgio. Preferia as nuvens, agora camufladas na treva, que quando banhadas pelos dedos do Sol pareciam esconder qualquer mistério execrável no dorso. Vera se perguntava se haveriam de viajar ali as pessoas mortas, num jazigo flutuante. Se um dia veria o mundo de tão alto. E seguia a contar estrelas, contando estrelas, contando estrelas...

O portão era uma tábua de madeira sempre aberta e sempre emperrada, em que ela precisava usar toda a contração parca de corpo marasmático e exausto pelo dia de trabalho para enfim movê-lo alguns centímetros. Ao passar através da pequena fresta, esgueirando-se como um lagarto furtivo, outra pequena elevação do lote se erguia a sua frente. Por um momento buscou dentro de si qualquer fonte de força abissal, ares quentes e impulsos de origem desconhecida, porque lá dentro do âmago crepitava o medo da noite.

Um grito, desses de entranhas massacradas, irrompeu das janelas do casebre como um sopro de morte e ceifou devaneios. Por um momento Vera pensou em correr, fugir, dormir na rua, desistir. Mas o dever era seu mais hábil ventríloquo, e as linhas estavam em todos os lugares. E o estrangular completo se ousasse fugir era o horizonte em que se via. O dever de filha mais velha. E quando a mais nova lhe veio correndo e a cabeleira hirta estapeando o espaço na desordem toda que tudo era, sabia: o usual prelúdio de qualquer tragédia diária. Não sabia, era mais: a hecatombe.

– Vera, vem logo! – pavoneou e exibiu a bocarra suja de criança, sua irmã, dois anos mais nova e cem anos mais jovem – É a mamãe, Vera! Ela tomou alguma coisa de um vidrinho e agora tá lá no chão, acho que tá morta!

Era mesmo a mãe e estava mesmo morta. A mulher parecia um amontoado de qualquer coisa e panos e cabelo embalados num sono fugidio e pálido, meio curvada no assoalho como quem sente a ardósia gélida demais. Em algum momento ela deveria se acostumar. Derrisória paisagem, mas não o suficiente para lágrimas. Ali, uma vírgula humana entre as próprias reticências. Não havia no seu rosto expressão alguma, mas a aceitação tenra de quem não contrai músculos nem vísceras. O vestido era do tecido da noite, calcinado de quaisquer tarefas doméstica extasiantes, que ela usou com frequência nas semanas anteriores. Luto?

Vera afagou a caçula roufenha a chorar em pânico, afundando com força o rosto da menina nas suas vestes agora empapadas. Os sentimentos imiscuídos eram menos que aquele vômito de silêncio, o paraíso de que sonhara. Caso a irmã interrompesse os berros. Seu mestre invisível, o ventríloquo, fez dela somente movimentos precisos e mais linhas e responsabilidades. Havia uma inveja pela libertação, a querela de um suspiro de onde vem essa anátema persistente. A fruição das sensações era mais vertente do ódio que do amor, a mãe amaldiçoara-a com seu egoísmo. Não a culpava.

Na madrugada que veio e passou, elas ali sentadas numa quina da cozinha. Abraçavam joelhos, imaginando os passos seguintes na neblina escura, a revolver uma fraternidade colossal nunca antes existente, quando os estômagos gritaram pela fome crônica. E entre os vasilhames poucos de arroz e outras coisas, também havia comprimidos. Comprimidos em todos os lugares, esfarelados sobre todos os alimentos.

Derrisória paisagem, suficiente para lágrimas.

IV

Ele lambia os cantos da boca como uma hiena.

– Você precisa muito desse emprego?

– Muito!

– E qual é o motivo?

– O motivo é que sou a melhor para esse cargo.

– Ousada, ousada...

– Sincera.

– Até onde você estaria disposta a ir para tê-lo?

– Até onde o senhor iria para me testar?

O homem de gravata prata fitava a saia de Vera e sua pupila se dilatou. Prendeu-a pelos punhos e colocou a mulher na mesa, encurvada. A despeito das formalidades, a moça de dezoito anos ensinou para ele o caminho até a umidade que guardava entre as pernas. Foi fácil passar pelo conduto de barreiras tantas, e de dois se somaram por fim em um.

– Quantos dias você trabalharia por semana?

– Todos.

– Você é casada?

– Talvez.

Gemidos em suspiros derradeiros, farpas de vento no espaço morto. Vera não sentia prazer, tampouco seu fôlego se imiscuía com aquele atrito indiferente.

– Têm filhos?

– Talvez.

– Conheço seu tipo.

– Talvez.

– Entendi, entendi. Está empregada. Volte amanhã.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Retrato


Ele foi buscar qualquer coisa na cozinha e me deixou ali. Estratégia maliciosa... Alguns minutos naquele quarto já seriam o suficiente para que eu não viesse a emitir quaisquer sons no seu retorno – a mais tenra tentativa de diálogo seria reduzida a uma conversa meramente fática. Talvez gemêssemos. Iríamos direto ao ponto, e depois do ponto, direto aos beijos de adeus definitivo. Ao mesmo tempo, aquele gesto de polidez falsa exibia, sem o demorado e inconveniente recurso das palavras, seu sustentáculo de homem firme, chefe de família e imperioso no reino que só dança ao sabor da sua vontade. E volúpias. Quando as intimidades se emparelhassem para assinar o contrato breve do prazer, nada precisaria ser dito nem tratado. Como se sua voz fosse o próprio silêncio: eu mando. Você, puta recalcada e burra, obedeça e vá embora.

Ah, querido, não pense que isso me ofende. A liberdade é um doce em drupa gorda. Desses que mais escorrem fora da boca do que dentro. E essa indignação que você projeta em mim, e exterioriza tão não galantemente, nada mais é do que o seu faro virgem invejando o meu melado que vaza, tal excesso em cachoeira. Liberdade é um balanço de criança de largura infinita oscilando em nuvens brancas, ancorado em tudo, controlando as direções em que o mundo se expande. Enquanto o seu se contrai até esse quarto agora quase leito do pecado. A infância dos desejos é onde eu vivo, não migrei para a infâmia onde você me quer. Não tenho limites porque limites me transformariam num todo indesejado e eu me tornaria um outro eu, cheio de pontas remodeladas e adestradas. Não, prefiro essas ranhuras que sangram. Que fazem poros e me conectam a mim mesma. Revolvo o destino nos dedos, mergulhando-o no caldo do que é execrável, animalesco, instintivo, atroz e incompreensível. Isso porque já estou totalmente afogada, meu bem, e suas palavras não chegam aqui tão fundo. O que eu quero de você são movimentos. Você, homem de superfície, existência comum.

Um cômodo grande, móveis caros e uma arquitetura simétrica como a fuga e o tempo. Nenhuma poeira, senão minhas partículas descamando no tapete felpudo. O cheiro era algo entre a essência da lavanda e da menta, misturadas, quase agradável. Um palácio estéril pronto para a mácula. Mas algo ali ressonava, inquieto no avesso do sossego, reverberando para me expelir do ventre. O corpo estranho, destruidor do firmamento familiar de ruínas remendadas. O aborto do mais profundo querer. Meus dedos raspavam na madeira que gemia no atrito tentando cravejar as farpas sem sucesso. As fotos encaravam-me num fitar de fúria, presas nas molduras plácidas. Todas amontoadas num palanque marmóreo ao lado de um espelho elipsóide. Meio escondidas, presas no soslaio por onde a mentira olha. Fui encará-las. Entre tantos eventos randômicos de felicidade duvidosa, um retrato das filhas.

A caçula era mais parecida comigo, havia herdado o mesmo sorriso forçado. O lábio superior pendia tosco e a boca toda era de um róseo tortuoso e esfarelado. Abraçava a primogênita para arrancar vísceras, mas a irmã era um raio quieto – semente da indiferença do pai. Aquele olhar com a pálpebra na altura média e as sobrancelhas pontiagudas era o algoz de tudo. E de tudo e entre tudo, desorganizava minha já bagunça interna com mais primor. O aviso da ira: mesmo estapeando-a, permanecia. De mim, a agora menina deflorada imitava a voz roufenha, mas com venal elegância. Era a lótus para o mundo, flutuante e serena onde os pés houvessem de pisar, imiscuindo e encantando e beijando e traindo e chorando e com vestidos floridos dançando, dançando, dançando. Por vezes via Bruno latejando olhares, desejando que eu fosse ela. Não ela envelhecida. Ela. Em toda a extensão que isso me cobre em noites como essa. A pequenina era o restolhar de uma confusão mal ordenada, e todos os dias seus dramas de criança eram explosões desconexas que só encontravam ouvidos em mim. Pelo menos a parte externa deles. É, é, é isso mesmo, jura?!, entendi filha, sim, sim... Inveja do pai, ourives pesaroso. Na madrugada, ao voltar do talvez trabalho, a menina cansada das algazarras do dia dormiria quieta. Única energia que tinha que desprender era num delicadíssimo beijo na testa, sem jamais acordá-la.

Como eu queria a sombra! Morar na sombra, vendo a luz de longe. Vendo a luz como quem vê a morte, e morar na sombra como quem está vivo. Para que não me vissem. Talvez só assim me vissem. Sentindo o aroma perfumado da erva almiscareira, do amaranto e do ademais da flora eterna que desconheço. Ou qualquer outra profusão de sensações. Rasgando a pele no gramado dos prados longínquos, rodando sobre as curvaturas das curvas e esquinas de mim e então vasculhar os abismos e as cascas do passado.

Naquela fortaleza de miséria, o único horizonte disponível era no espelho de outrora ele surgindo e me pressionando contra o seu corpo, evitando meu rosto e concentrando na nuca. Quase me dobrando a ponto de derrubar a velhacaria toda no móvel com as fotografias.

Era um belo homem, mas não sorria. Ele estaria mais feliz se minhas costas fossem minha frente. Eu também.

sábado, 5 de novembro de 2011

Caricatura

Eu porventura acordo com os olhos fervendo esperando a mudança de tudo. Pois os dias ainda deságuam na repetição imbricada de sempre – essa coisa de eu levantar e distribuir as partes de mim incompletas e quebradas para silhuetas igualmente desconhecidas, e então me afogar no etéreo gosto da pequenez disfarçada. A que ignora a fugacidade de tudo, a inconstância das pessoas, a inveja recoberta pelas cortinas da polidez, a violência que turbilhona o cosmos passando na frente dos olhos que insistem em piscar na hora exata. Qual a origem dessa carência abissal? E quando sento e fito a solidão – eis um encontro comigo mesmo, mais fugidio do que ansiado –, fico assustado por ter me desligado tanto de minhas bases. Já que me fizeram acreditar em bases, estou mais trôpego a cada manhã. E quando me pergunto quem eu sou, buscando-as, ouço a respiração arfada revolvendo a garganta e saindo pela boca, e nada mais. Ou talvez algum sentimento indecifrável no estômago, um tamborilo confuso e gelado. Não sou o que eu descrevo, nem o que sou descrito. Nem isso. Sou tudo como uma soma que diminui os montes empilhados ao vazio interno do pó, um ator exímio numa peça nômade, repartindo a atuação pelos cenários tantos. Começo a jornada um amontoado de matéria reciclada que vai descobrindo uma habilidade qualquer que retumba voz no crânio, que ensina: a morte é mais certa que o abraço amigo em noites de lágrima, sua importância para o mundo é equiparável a um grão de qualquer coisa, e que a certeza dos sentimentos de quem se ama de forma imprecisa é tão imprecisa quanto um dado lançado no chão liso. E tão logo essa certeza se enraíza, a fuga começa entre o que fora germinado. O espaço além, o vácuo preenchível somente por mentiras. E aqui é tão mais agradável, tão mais povoado! Penso que a racionalidade carrega consigo a maldição de não se saber lidar com o abstrato. O que há dentro da casca não é visto ou compreendido, a beleza do acaso genético ou sua ausência descrevem tudo o que um sujeito é. O destino então existe. Tudo mais são adereços, a roda da fortuna é um rosto belo que se desfaz no tempo. Porque precisamos dar forma a tudo para que a segurança frágil se complete. Dar forma a insegurança só poderia ser numa carcaça dos restos de nós. Frágil, pois essa forma só são os outros, uns mais ou menos afortunados, que trocam expectativas inalcançáveis porque as palavras não sobem. Ou sobem outras palavras, deformadas pela subjetividade inexprimível. Descompasso que sempre culmina num dia de tristeza, da qual todos correremos a passos largos. Esse fatídico fruto dos campos da veracidade. Não queremos aprender com ela, mas ela insistirá. Então, que compromisso eu haveria de ter com a coerência? Estou constantemente sentindo falta dessas palavras que não foram criadas, de órgãos sensoriais que não tenho, imaginando encontros improváveis e criando formatos de mim esculpidos pela vaidade. A mostrar ao outro algo que nunca fui, nunca serei, para então no universo em que mando eu, onde só eu moro, fingir que sou. Nisso o mundo roda, o verdadeiro. Essa briga com Deus pela unidade limitada em que me fez vai digerindo meus minutos. Queria ser vitral de todas as coisas, orgânicas ou não. Maldito é esse espaço pouco que eu ocupo, e portanto esse significado parco. Esse zodíaco previsível que gira com os planetas: os de pouco assoalho familiar se rodeiam de numerosos amigos de sorrisos fáceis e afagos fracos. Quem é traído quer vingança, quem se machuca um dia ataca, quem não tem fé se acha sábio. A identidade comum é inaceitável. Compremos fantasias! Mas quando a noite nasce, os esforços são em vão – no fim da jornada vamos dormir para experimentar um pouco da morte, em que as lembranças nada mais são do que retalhos disformes e sem significado em paisagens aleatórias. Quando acordamos, esquecemos a lição.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Arte?

Quando bateram na porta eu estava fazendo qualquer coisa muito humana. A última coisa humana. Meus olhos não puderam evitar o esbugalhar estupefato quando me deparei com um extraterrestre bem verdinho, com antenas pendulares e um sorriso simpático. Através de uma conexão cósmica sobrenatural, entendi suas palavras como se saíssem da minha boca e reverberassem nela mesma:

Você foi escolhida para me provar que eu não devo destruir a humanidade. Com licença...

Anuí – o que mais poderia fazer? Meu agora hóspede raspou os pés (de três dedos apenas) no tapete sujo, com uma polidez galante. A sala de estar que dava para a porta de entrada não poderia estar mais balburdiada, com todas aquelas roupas amarrotadas reunidas aos montes no sofá. Brinquedos das crianças em todos os cantos e migalhas da janta de ontem salpicando as quinas. Suas órbitas amarelas giravam em todas as direções daquela decoração atípica e meu estômago gelava. Não era um cartão postal nobre sobre as maravilhas da humanidade.

Eu acabei de preparar o café, você aceita?

Sim.

Bebeu através de um sugador que nasceu onde deveria ser a boca, algo que me lembrou um desentupidor de pia. Quando o café mergulhou nele pela primeira vez, foi como se uma corrente elétrica tímida caminhasse pelo seu rosto. E veio depois um esboço de sorriso. Tentei não encará-lo, concentrando-me nas xícaras vazias da pia, mas ele parecia bastante à vontade. Arredou-me com seu quadril largo, lavou toda a louça e repetiu o café até não haver mais café. E então lavou tudo novamente.

Logo devo começar a fazer o almoço, se você quiser me ajudar a preparar...

Não posso. Já estou de saída...

De saída? Mas... Você avaliou a sobrevivência do mundo nessa visita tão rápida?

Claro que não! Esse é só um encontro de rotina, voltarei quando a senhora estiver dormindo.

E ele então desapareceu numa constrição completa do seu corpo até mais nada existir, uma implosão silenciosa.

Busquei os filhos na creche para que pudessem sujar toda a casa com a janta requentada. Então vieram para dormir na minha cama, a meu chamado. Não era costumeiro, embora elas sempre insistissem, todos as noites, incansavelmente. Mas a candura das crianças poderia significar clemência e essa covardia toda poderia ser minha salvaguarda.

E quando o gosto melado e ébrio do sonho escorreu pelo canto da boca e fez poça no travesseiro, ele estava lá, sentado numa cadeira tosca sobre a maior planície e a mais verde da Terra, com esse enorme cobertor de gramíneas que irritava os pés sonâmbulos. Quase camuflava, o E.T, enquanto acariciava as próprias antenas numa despreocupação turista. Um punhado de mil ou dois mil pássaros brancos de todas as espécies sobrevoava nossas cabeças como espectadores aflitos. Tampavam o céu. E os dedos do sol, os que não morriam ali, escapavam por frestas mínimas entre as ranhuras das aves, desenhando círculos esparsos no firmamento. Plumas choviam sobre o mundo e eu podia senti-las arrepiando meu corpo notívago.

Bem, é agora. Prove o valor dos homens.

E algo dentro da minha mente já sabia o que fazer, um processamento de comandos e ritmos e movimentos que talvez estivessem gravados em mim desde o meu nascimento para que eu executasse ali, naquele momento fatídico. Onde o destino seria subjugado.

Acomodei-me na minha cadeira igualmente tosca e materializei uma harpa, a maior que eu consegui. E quando ela surgiu sua beleza paralisou tudo. O universo cravejou ali seus olhos. De sua ponta mais distante duas grandes asas de cobre planavam, e as plumas pararam de precipitar, medrosas. Suas curvas eram de simetria perfeita, marmórea e de brilho tilintando. Apologética. As quarenta e seis cordas paralelas eram delgadas beirando o invisível. Uma bela criação humana, ele haveria de perceber. Talvez a única, a arte. Todo o resto corrompe essências. Portanto eu me faria ser ouvida pela expressão do que eu era em tons desordenados. Os raios solares encontraram espaço e se acomodaram como ouvintes educados. Mergulhei no vazio de mim.

Quando os dedos dançaram nas cerdas e vergastaram toda a sua extensão, o silêncio foi brutalmente rasgado, docilmente substituído. A canção era de um lúgubre agitado, como uma cachoeira que ferve. Retumbando em pedras grandes e turbilhonando por onde passa. Era imperfeita, como eu e todos. Um vitral com peças faltantes. Tropeçava e levantava em harmonias mais fortes e por vezes trovejava, sem calma, naquela planície desertada. Para enfim convergir numa brisa litorânea e perene. O alienígena nunca tinha visto cachoeiras ferventes e tinha medo de descargas luminosas, eu podia ver na sua feição. A música era aquela respiração contida da pessoa que ama, mas teme, porque respirar é permitir que o tempo passe. E depois dele vem o fim... O fim que está em tudo, renegado pelos amantes. Que leva as mãos de tragédia a tampar nariz e boca.

E quando todas as incertezas humanas combinadas foram canalizadas e aspergidas ao instrumento, horas se passaram demoradas, e minhas mãos resistiam pouco naquela luta pra provar o eterno. Alguns filetes vermelhos pintaram o antes quase invisível, eis a pele frágil. E o sangue tingia tudo e o plumeiro era agora escarlate e caía novamente de terror. Mas os dedos se mantinham. Árvores vermelhas germinaram e tão logo germinaram suas folhas padeceram, e outras germinaram. Sulcos e fendas abriram no assoalho em direção ao infinito e os tremores abissais modelavam vales e montanhas e cumeeiras. Tudo era uma viagem ao caos, e depois um retorno ao nada para começar de novo. Rumo ao silêncio das coisas planas. E ele sentado ali.

As notas exauridas, dissecadas e retorcidas, dramatizadas pelo meu âmago que nada tem a ver com o que é simples, eternizaram-se no longínquo poder da memória, núcleo dos homens e dos pesares.

O sonho terminou de rompante, como os sonhos fazem. No fim, ele voltou no dia seguinte e pediu mais café, fez sua última implosão, voltando satisfeito para seu planeta.

domingo, 23 de outubro de 2011

Fugacidade


Naquele átimo impenetrável, em que tudo que existe se dissolve nos limites redundantes que separam dois caminhos. Ele quis tocar o queixo de sua donzela, mas tudo o que fez não foi mais que um sorriso estupidificado sem contornos, a emitir grunhidos.

Você é tão linda...

As têmporas eram gradualmente preenchidas pelo borrão escarlate da vergonha, tais palavras em vômitos assim atropeladas... Os pés da moça costuravam círculos trêmulos no firmamento gramíneo. Do outro lado, ela nada ouvia. Havia ali um pouco de uma sujeira bonita, barro puro que a ungia no execrável da beleza temível de se aproximar. Por isso ele grunhia tanto! Seu peito por onde fazia caminho aquela flâmula irritada era não menos um cárcere que o acorrentava em respirações rápidas, ofegos interrompidos e piscadelas de sustos entrecortados. Era como adoecer para se curar e então adoecer no instante seguinte.

Se me dedicasse ao menos um segundo dos seus...

Adoeceu desde a primeira vez que a viu através do vidro da floricultura, ela embebida em candura cantando baixo para as orquídeas de plástico. O sintoma primordial foram os ponteiros paralisados. Ficou ali, extasiado pelas sensações novas que se dissolviam em suas artérias, ouvindo o coração bombeá-las num tamborilo em frenesi macerando a racionalidade pouca. Lá dentro, tão longe, tão perto, a moça estava sempre dançando ao ritmo das notas do silêncio. Seus movimentos não tocavam nada, tampouco o assoalho. Eram repetidas flutuações delicadas, como o beijo de uma violeta que abraça a morte. Era também qualquer coisa acima da dança, da arte e da humanidade. Carregava consigo a origem de todas as pétalas. O púrpura violento que era a cor de seus olhos por vezes encontrava o marrom plácido e triste do rapaz, em descargas tempestuosas que o faziam sentir um vento vindo de qualquer lugar, revolvendo pêlos e eriçando nucas e beijando-lhe a face seca tão secamente. Nas laterais da boca da bela jardineira por vezes irrompia o rascunho do nascimento de um sorriso. Mas então a quase certa ilusão se perdia nos abismos tantos da memória tendenciosa de um doente.

Voltarei todos os dias, e em todos eles repetirei. Eu juro.

Desaprendeu a caminhar, comer era um mergulho de esquecimento e os sonhos eram caricaturas randômicas. De lá pra cá pareceu largar partes de si porventura intrínsecas enquanto se desmanchava para renascer. Os dias se resumiam nas horas em que se prontificava a observá-la, como uma daquelas plantas, esperando o toque derradeiro que teceria o destino do mundo. Conversava um pouco com o vidro amigo e ignorava a porta sempre aberta. Sempre ali no soslaio, indicando o caminho fácil. Dar as costas era um rasgo de ponta a todas as outras pontas, seguido de muitos olhares por cima do ombro até o horizonte engolir tudo. Mas as margaridas estavam em todos os cantos, margeando tudo! Toda a botânica terrestre se voltava para abraçá-lo. A Terra era verde e outras cores e pensamentos que em segundos germinavam brotavam davam frutos e apodreciam e tudo novamente. Em extensos jardins voluptuosos onde um dia se deitariam. O gosto que desvanecia nos lábios era difícil de identificar. Antes de abraçar o sono com a dificuldade habitual, sempre se perguntava sobre sua origem. Desafio grande, deglutir a felicidade sem temor...

Ela chorava na calçada, a floricultura fechada. Seu semblante de cacos rachados podia ser visto por entre todas as ruas e quarteirões que recortavam a cidade. Tal tragédia que emanava! A lua matutina era um olho ao norte orando por ela, pois dependia dela a sua existência fugaz. Forças de todas as origens, de profundezas oceânicas e vulcões dormentes, ergueram o homem renascido em pernas ágeis num galope arruinado, enquanto poesias de todas as eras se transcreviam nas fibras latejantes: para que servem as flores, quando longe de seus vasos? E a moça e sua tristeza de motivo a saber foram apenas diminuindo, diminuindo, diminuindo, até a ínfima dimensão de uma semente nua e só.

Pois ele corria na direção oposta. Felicidade essa fuga eterna.

sábado, 15 de outubro de 2011

Demência

A janela era um círculo pequeno listrado por finas hastes de aço. Ainda assim, dedos de luz escapavam daquela pequena prisão e chocavam-se na parede branca na maior velocidade permitida por Deus, às vezes ricocheteando na cama de panos também brancos, esquentando meu pé revestido em casca dura. Tudo ali era branco. E há no branco o fogo tímido próprio do que é luminoso, um martírio de cores que turbilhona as águas onde se dissolvem essências revoltas em trevas. Mas como fogo que é e se faz, tímido ou não, queima. Meus olhos dardejavam na órbita em todos os limites das pálpebras em busca de tons diferentes – mas minha pele empalidecia num tecido imberbe e coalhado onde não mais se fazia refúgios. Que saudade do verde das folhas e seu cheiro de qualquer coisa orgânica indecifrável! Quando Maria e eu deitávamos no gramado do sítio pra desenhar nuvens era de verde que nos banhávamos, e havia a inocência sublime dos braços que se levantam para tocar o céu e pedir a bênção do azul. Sinto o gosto de tâmara ocluir a garganta... Suas palavras eram veludo e poesias, pequenos cânticos, odes secretos que apenas eu orquestrava. E nada me interessava saber no mundo senão de seus segredos, de sua intimidade, daquela criptografia alienígena que tecia seus movimentos de corpo e de rompantes de insanidade perfeita em volúpias vermelhas. Aqueles cabelos de topázio líquido...

Agora eram quase pretos. Quando entrou no quarto olhou-me redonda numa desconfiança trôpega e devastada por qualquer coisa que se desenhava no meu rosto. Não quis perguntar, ela geralmente não respondia sem enigmas. Caminhou arqueada nas pernas estranhamente venosas em cordões púrpuras sobre terreno róseo. Ainda possuía a austeridade dos lábios crispados contendo as várias palavras que queriam nascer, porém já germinadas na sua feição toda ângulos.

Você não parece nada bem, João. – sua voz era um trovão eterno. Um lamento triste que ansiou retumbar em cada osso e carne e cartilagem e tudo além. Não havia a umidade da chuva pra precipitar em mim, somente suas lágrimas que pingavam no meu couro cabeludo em goteiras preguiçosas. E um abraço frouxo cheirando sal.

Como não conseguia falar - lacerações na língua -, tateei. Desenhei na sua cintura, com o indicador em meia unha, caracóis extensos que nasciam em círculo grande e morriam no abismo do ponto. Onde morava seu umbigo grávido ocluído pelo vestido carmesim. Tortuoso, sem jamais embarcar na estrada do reto. Pois são das curvas de quem não vê a si mesmo que ladrilhei meu caminho em direção a desgraça. O torto que representa o falho, o errado, o atroz. Dos farelos celulares que ficaram pelo caminho levando consigo o líquido da memória e da estrutura desgastada que aqui lhe sorri em sangue coagulado. Minha viagem ao vazio era solitária – e a mulher não compreende. Ela construía ao redor do volume que meu corpo ocupava no mundo o contorno de uma identidade que eu não mais possuía, através do teor ácido das lembranças que eu quase podia ver escorrendo por seus poros. O silêncio cheirava a culpa que ela cuspia de soslaio pela expectativa que nunca se cumpria. Vitral sem conserto, eu. Para ela: movimentos randômicos sobrepujados por loucura, e nada mais. E de que adiantariam suas palavras, fossem trovões ou veludos?

Tampouco pupilas que cravejavam em mim toneladas de piedade despertavam alguma faísca da faísca de alguma coisa. Maria... E essas cicatrizes invisíveis, você não vê? Quando foi que seus cabelos ficaram tão escuros?

Verônica e Roberto estão bem, sei que você pensa muito neles. Outro dia a professora de matemática do Beto me disse que ele seria um excelente engenheiro, de tão inteligente que é! Eles sentem muito a sua falta, você sabe... – falava como se tivesse lendo um texto o mais rápido que pudesse, oferecendo para deleite sua nuca, enquanto fingia olhar para além da pequena janela com o nariz em conta gotas.

Desbastado pela tormenta, irrompi na direção da senhora para degolá-la. Brandido em fúria. Seu pescoço, pano a rasgar. Roberto seria seu novo amante? Não poderia... Ela deveria me amar até o seu último suspiro! Essa fora a maldição que concordamos em nos lançar a cada beijo por línguas de fogo e seus nós de bocas unidas debaixo da alvorada de todos os dias. Ah, como é execrável cruzar a barreira do insano! Perdi a compreensão e a manifestação da linguagem que nos mantinha pessoas do mesmo universo. E se não há mais palavras que reclamem à incompreensão, eis a violência que somos todos nós, uns mais ou menos polidos, porém ainda partículas desse cosmo de hecatombes reunidas. Não há mais volta.

Talvez também não a compreendesse bem. O nome Roberto já morava em algum lugar das terras incendiadas de minhas memórias. Irresgatável nesses campos inférteis. Mas estrangulá-la ao som de seus ruídos de dor suspirada, como quem não quer chamar atenção do mundo para a besta, dava-me certa dose de prazer. A pele fina quase rasgando era a minha força provando o amargo sabor de quem olha altaneiro perante a vítima derrotada. Logo ela também cruzaria a fronteira. Larguei-a.

O choro agora era cachoeira vívida tropeçando sobre suas mãos em rocha que apertava as sobrancelhas, como se ali fosse o ponto único, a rede ímpar para agarrar-se a si mesma. Debruada sobre a cama de visitante, consumiu-se em desalento. A desgrenhada cabeleira morena, tão rala quanto conseguia, desprendia-se pelos dedos em punhos semicerrados. Flutuando até o chão numa viagem demorada. Sim - Maria despedaçava-se, deixando partes de si antes de partir. Borracha imprestável no emaranhado de sua fuligem. A verdade raramente se apaga. Mas existe a morte, muito viva em suas preces notívagas, eu bem sabia.

Sua figura inteira se contorceu num rompante ao dissabor da desordem. E ao deixar o quarto, cuspiu com o supetão que espreita o dissabor do descontrole. A nódoa de saliva caminhou gelada nas minhas têmporas.

Até cair na garganta, e ser digerida em doces lembranças.

domingo, 2 de outubro de 2011

Remetente

Meu caro Daniel,

Parece que ela dormiu (ou finge com a triste inocência de boneca que não é), então agora posso vomitar essas letras bravamente contidas nas camadas de mim que quase caem no esquecimento.

Sobre dormir. Labuta pesarosa como nunca foi! Quando os ponteiros já se cansam de anunciar o arrastar dos segundos e o sono pesa as pálpebras em sarcófagos temporários, Débora evita olhares. Seus túmulos particulares. Caixões negros de detalhes vermelhos em gotas de sangue. Vira-se para a parede e repete, noite após noite, a mesma sinfonia pétrea, calcária e inóspita: a que suspira de seus dedos retinindo incansavelmente na parede. E retinindo e retinindo... Como se escrevesse nas linhas de argamassa as palavras que não ousaria me dizer em costuras incongruentes, indecifráveis. De tecido podre. E eu me torno cúmplice do seu martírio silencioso, tocando seus ombros que me repelem em arrepios. Beijando suas costas de choro corredio. E sei que ela não deseja, que não há desejo, mas são as diligências de um casamento. Eu, o marido - o faço em busca de qualquer coisa que antagonizasse aquele silêncio crepitante de almas, em busca dessas almas talvez inscritas nas ranhuras daquelas quinas que ela desbravava mais que a mim. No fim, meu corpo padece à morte – infelizmente – temporária, temporariamente.

Dois dias atrás percebi na sua silhueta agora esguia e sem vida o impulso desesperador de quem não suporta ver os firmamentos cederem. Agarrou-me com a ferocidade (e o fedor) de um animal e cravejou as unhas longas no meu pescoço. Roçou a língua áspera no meu queixo e eis as primeiras palavras proferidas naquelas noites de tortura: pediu, no tom monocórdio de quem implora, que a penetrasse. Animalesca como nunca outrora. Os pudores são detalhes esquecidos pra quem fora esquecida pelos detalhes. Eu sou menos que isso. Não reagi, observando-a patética na tentativa de se despir, desajeitada, descompassada, fazendo nós nas próprias vestes e irrompendo em lágrimas ao se dar conta de que já não há mais firmamento. Abaixo de nós um abismo que engole tudo, e nada mais. Senão o meu toque frio e indesejado.

O telefone bem próximo ao abajur e não há ninguém do outro lado. Amigos? Nenhum. E essa culpa que ela deposita no arquejo dos meus ombros talvez eu não seja capaz de diluir. Sozinho assim. Nasci de um ventre com pouca vontade, e minha relação com a culpa sempre fora de maiores faíscas. A vida sempre atrelada à culpa de viver. E há na figura masculina essa responsabilidade pela integridade de sua prole, e talvez os gêmeos sucumbiram porque minha essência não era boa o suficiente. Ou pelos pecados dessa vida e de outras, pelo bel azar ou macumba ou olho gordo ou não sei. As respostas são várias e as perguntas, infinitas. É um presente de Deus que eu não compreendia, ousaram me dizer. Podia sentir a pulsação na garganta de Débora pela vontade de esbravejar pros meus ouvidos e para os vizinhos que a razão da hecatombe toda sou eu. Mas esse mesmo Deus de intenções misteriosas pôs no meu quarto essa mulher tão mergulhada na piedade de si mesma! Eu também teria o que vociferar, e ela não estava disposta a ouvir. Esse contrato silencioso nos silenciou.

Essa ideia em tormenta que turbilhona aqui e ali e quer virar verdade, mas é repelida. Inutilmente, pois já é a verdade desde que germinou: não sinto tristeza pelas crianças. Nem escassas fagulhas nos cantos mais obscuros de mim - certeza, pois procurei por longas horas de auto depreciação, durante chuvas extensas salpicando a janela... Sem sucesso. Afinal, morreram antes de existir. Nenhuma dor. Talvez tenhamos poupado aflições tantas! Ou são meros argumentos pra justificar minha mesquinhez? Ainda assim, não encontro no baú de mim lágrimas para homenageá-las. Mas lágrimas por essa solidão intrínseca que devora o mundo e além, lágrimas para os olhares piedosos, que julgam em palavras felpudas e também lascivas. Pelas vontades que evaporaram no poço raso que nos tornamos e por essa figura putrefata que me acompanha como uma maldição nas noites de comum zelo. Parca polidez das ocasiões sociais, segurando a mão dela na união perfeita de casal que não somos e jamais seremos, corrói a sanidade limite com a qual redijo.

Sou um tecelão de poucas linhas, um escrivão de palavras curtas e interrompidas por muitas vírgulas. Minha música é a melodia sem notas que compõe o silêncio e meus episódios de vida são quadros borrados por poucas cores. E cores sem vida. Meu sorriso é na fração inexistente do imediato e a dor é eterna, e a única a me manter firme nos dois pés fraquejados. A crueldade existe, enovelando cada palavra dessa cartilha, e sou eu.

Eu os culpo e os odeio, estes filhos que antes de nascer já tiraram tudo de mim. Escarro feito, assim termino.

Perdoe-me, se for possível.

Daniel.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Sanidade

[00:45]

A mão espalmada no azulejo frio e o suor em gota única escorrendo pela testa no seu sinuoso caminho breve da vida breve que tinha até respigar na privada e bolhas sujas saltitando depois. A pulsação resfolegava no peito nu na iminência da dor já conhecida. Que veio numa torrente amarelo-opaco impetuosa e ardida e áspera e quente e se tingiu no fim pelo escarlate enegrecido do meu líquido vital. Coloriu o enlameado de outrora com tintas de desespero e fechei os olhos lacrimejados na resignação torpe de quem quer clemência pelo sofrimento constante. E quando o gosto do silêncio se desvaneceu nos meus lábios secos desisti da piedade e acionei a descarga para quebrar aquela sinfonia maculada pelo podre de mim. Respirava pela boca como um vira-lata febril.

[3:13]

O sono não havia de durar muito e eu sabia mesmo nos meus anseios mais infantis. Abri os olhos desejando o anúncio da morte mas o que veio foi um escarro verde que desmanchei na fronha branca. Numa olhadela rápida em mim mesmo eis um relevo erodido por feridas exaustas na tentativa de cicatrização com manchas decorando o cenário do meu âmago dolorido. O espelho logo ali era o algoz da noite. O vidro da realidade costurava no reflexo a silhueta de um homem sadio a turbilhonar sobre si mesmo na cama no chão na parede sem motivo aparente. Tateei nas trevas e encontrei o termômetro. A luz da lâmpada pareceu queimar meus olhos crepitando lentamente e nada na minha vida eu conseguia explicar. Além do frio justificado pelos quarenta e um graus exibidos no visor.

[5:00]

- Alô, Laura?

- ...

- Eu sabia. Sabia que você não ia me atender! É sempre assim quando preciso de você.

- ... Vinícius? Eu estou dormindo. Ainda está escuro... São cinco horas!

- E daí? Será que não posso interromper seu sono de donzela? Você pode, não é? Você pode me deixar aos pedaços nessa desgraça de quarto!

- O que aconteceu? Por que está falando assim?

- Estou doente, e você sabe. Sabe que é a causadora! Que desde então eu sou esse moribundo de merda que fica contraindo tudo que existe e você nem se importa!

- Vinícius, eu já disse, você precisa se tratar. Entenda que acabou. Como tudo na vida. Tenta seguir em frente, pode ser?

- Vou, vou seguir em frente.

[5:38]

É tão vergonhoso além de fraco e até demente pensar que eu um dia acreditei que havia alguém ou ela por mim como eu por ela. Por vezes me imaginei em estradas desertas só o asfalto e o mato verde. Ela estaria logo do meu lado como a extensão mais particular do meu corpo e com aquele sorriso desmesurado que ela sempre lançava quando queria alguma coisa eu seguiria em frente e nada mais precisava existir. Que todos morressem! Assim eu seria o único alvo daquele olhar lascivo azul e grande que só ela tinha. O sentimento que te nutre pra viver também te mata naquele instante em que a pessoa colocada sempre ali e sempre ali parece imortal e portanto pode-se nela descarregar a ira dos dias de chuva. Ainda assim como entender que num relapso num relâmpago num lampejo de segundos a chama que inflamava o amor foi engolfada pelo sopro do vazio? É nesse momento que todos os alicerces ruem e a racionalidade se esvai e com ela todas as memórias se apagam no tempo. Deus sabe que eu faria tudo. Esse Deus que agora existe tanto! Penso nele como o sorvedouro de pífias esperanças jorrando em fontes escondidas. Faria tudo.

[6:44]

A cada elevação do tórax na inspiração entorpecida ela cravejava com mais força as raízes a perfurar as ranhuras ictéricas da pele. A planta se erguia majestosa bem diante dos meus olhos e os galhos muito verdes retorciam no ar só se limitando ao teto. As raízes remexiam qualquer coisa dentro de mim mas não era nada tão doloroso quanto aquela epopéia fastidiosa que eu haveria de escrever não sem pesar com sangue lágrimas suor escarros e pus. As folhas esfareladas cujo verde agora morria num podre marrom padeceram sobre meu corpo-solo e ali mesmo montaram serrapilheira. A erva daninha brotou das paredes e saltou até a quase árvore de modo também quase vampiresco em busca da seiva da vida que eu nunca mais haveria de provar. Trovejei sobre mim mesmo palavras de êxtase e insônia. A mão não podia ser engolida e portanto eu não conseguia desaparecer num ponto insignificante do universo e ali ficar. As raízes mesmo mortas já atravessavam pelas minhas costas e uma nova árvore surgia em direção ao chão. A cama que se quebrou num estampido agudo e ao mesmo tempo me apontava o abismo entre a sanidade e a loucura convidativa. Caí ali no pandemônio escuro que se revolvia num líquido fluído e espesso de morte. E acabou... Já não estou mais doente.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Quinas



Num desses momentos em que olho para minha sombra e vejo que ela se inclina até você. Foge de mim. O que é isso? Isso é o encontro entre a parede e o teto, que vejo aqui da cama. Esse encontro limítrofe e ao mesmo tempo absoluto de dois planos que se cruzam irremediavelmente. Como nós. Todas as quinas somos nós. Você foi dormir, mas ainda estou sem sono... O vento frio que a janela cospe na minha nuca. Sento.

E há na minha boca o fastio da espuma de palavras que morreram no início do silêncio. A contingência da solidão na madrugada que se demora e se demora e aponta a insônia lá no fim do escuro. E vou sem medo. E os armários abertos. Estampam roupas que nada mais são que retalhos de momentos tantos. De cheiros, martírios, silêncios e suspenses e segredos e sibilos. Da tripulação de inocência carreada por quem ainda desconhece o verdadeiro apego ao amadurecimento da candura de quem se entrega até do avesso. Avesso, onde tudo mais encanta e mais machuca... E nada cicatriza. Avesso que hoje sou eu, e não mais meu avesso. Não fecharei essas portas, para que as lembranças que viajam nas teias do tempo se coagulem na consciência e aí façam morada.

Vejo pelo canto dos olhos o instinto humano e sua busca visceral por respostas que aqui estão, no cubículo do quarto. Ficarão aqui, e ninguém virá buscá-las. Nas minhas têmporas ruborizadas ao bel sabor da memória e sua parafernália orgânica consequente. Na flexão quase involuntária dos membros de quem quer proteger alguém do frio intenso. Esse alguém tão distante, encasulado no confortável sono dos anjos! Esse paradoxo que pinta telas com as tintas do passado, do presente e do futuro nessas fotografias que me roubam a letargia. E também das lágrimas que são tudo que existe e não existe, entupindo veias, coalhando o olhar e então se fazendo cadentes no firmamento do mundo. A evidência clara e abissal da transformação de qualquer coisa em matéria. E da matéria em vida.

Abraço os joelhos e então sou pedra. A pedra que compõe qualquer paisagem que você queira. Dos lugares que quiser conhecer. A pedra também para o descanso. E quando fecho os olhos e as divagações fazem ondas na areia, já não sei se as mãos que me envolvem são minhas ou suas. Quando lentamente deixo que as pálpebras abram as cortinas vermelhas da peça, vejo que na verdade são as minhas. Mas na verdade são as suas.

Dormir... Sem sonhos, pois tenho ânsia de sorver a magia que vejo na realidade. Quero somente um salto nas horas. Adiantar o relógio até o minuto e o segundo em que sua voz fará estrada nos meus ouvidos, aquecendo tudo que encontra. E depois eu penso no café da manhã, nos compromissos. Em respirar.

Você fez da minha alma terra fértil para qualquer coisa. Depois plantou um infinito da mais bela arte: a de compreender o sentido da vida.

Esvaziado e extasiado - obrigado, agora posso dormir.

sábado, 16 de julho de 2011

Escapismo - Caim Castellamare



- Príncipe Caim, com sua licença, a Rainha me mandou dizer que exige pontualidade para essa noite.

A voz de Dolores era sempre uma balada doce. Suas bochechas fartas da gorda que era retumbavam para fora e para dentro da boca abaulando sua pele de cera como um instrumento orquestral. Naquela frase, porém, eu sentia notas de uma ironia ácida gotejada sobre o forro de discrição que sua posição impunha – afinal, minha mãe sempre e sempre se atrasava. E na previsibilidade dessas cordialidades tantas, que nas repetições ensinam, eu já me encontrava devidamente vestido. Ainda assim, assenti respeitosamente. Gostava daquela senhora. Muito.

Senhora e tia. Dolores é bastarda de meu avô. E para não ficar à deriva de seu destino maculado foi forçada a ser minha criadora. Mas parecia não se incomodar. Seus sorrisos de dentes marfinizados eram nada mais que um retrato do paraíso onde vivem os que com nada se preocupam, e apenas gozam da bênção da parcimônia, da ignorância. Sem ser nem por um segundo ignorante, mas um paradoxo espantoso e sobretudo angelical. Sabia muito de história, das cordialidades dos nobres e das engrenagens enferrujadas da política. Quando surgia pela manhã ondulando na fortaleza do próprio corpo, fitava-a sempre na esperança parca de que fosse minha mãe, já que era provavelmente a mais próxima dela em aparência. Quando a questionava, ela dizia num murmúrio vergonhoso que sua irmã tinha a beleza do dia, da tarde e da noite. Era o crepúsculo e o alvorecer. A mesma frase, ouvi durante anos... E nas terras férteis das minhas divagações de criança eu sentia não curiosidade, tampouco orgulho, mas uma frieza no âmago que se configurava num sentimento novo muito próximo do pavor absoluto.

Duas irmãs com destinos tão opostos. Sentia-me inclinado a proteger Dolores já que minha mãe roubara dela não somente toda a possibilidade de poder, mas também a arma mais poderosa que uma mulher poderia empunhar: beleza. Ou talvez as duas coisas estejam intrinsecamente conectadas, beleza e poder. E as raras vezes que a Rainha se dirigia particularmente a mim com aquela máscara cicatrizada na pele, a insensibilidade de suas palavras eram como uma extensa carta sobre a mais sôfrega resistência e toda a amargura do mundo. E a um fascínio secreto e persistente. Mas como podia um abismo tão grande separá-las, se vieram em parte do mesmo sangue? Entendi depois que somos todos feitos de abismos, e são as diferenças que reinam na escuridão que nos controlam e nos completam, e escrevem todos os destinos. Hoje, na ilusão de sensatez do quase adulto que sou, abandono um pouco o sentimentalismo exacerbado de criança e coloco a indumentária da seriedade que faz um homem se impor. Sou príncipe, antes de pessoa. Portanto escondo a piedade em gavetas mofadas.

- Pois então vamos, já está na hora.

Numa reverência plácida, seguiu-me com os olhos enquanto eu saía do cômodo e apenas o estalar dos meus passos desconcertava a monotonia do silêncio. Para depois a cuidadora então me acompanhar.

O salão real era a alguns corredores dali, corredores quase desertos. O tom do mármore que estava em todos os lados, pois tudo era mármore e o mármore era tudo, sempre refletiu sobre meus olhos uma brancura extasiante, longe de tudo que é agradável. Parecia esconder a sujeira, disfarçá-la. Em algum lugar do castelo nascia uma sinfonia triste, nos dedos de algum pianista triste, que retinia nas quinas e nos cantos e debulhava-se nos meus ouvidos, impregnando-me com a sensação da lamúria de sua harmonia de sono e de morte e de silêncio. Passos depois, percebi que vinha do salão real. A música – meu guia.

Encontrei no fim dois guardas que inclinaram o pescoço em respeito. Sorri sem exibir os dentes. A porta escarlate que estava ali dava acesso ao local da reunião. O rangido metálico era o som que precedia minha entrada costumeira, teatral e, aos olhos de alguns e até de mim, cômica. O trompete explodiu num grave ensurdecedor que ocluiu o piano de outrora. As portas se abriram, um qualquer anunciou meu nome e então passo a desfilar tortamente no tapete vermelho e aveludado. Irritante. Meus passos já não fazem mais barulho. Nada faz barulho. Uma mulher que nunca vi antes flexionou o pescoço como se a musculatura cedesse na ausência do som, seu alimento. A pianista. Ela se encontrava um degrau acima de onde as poltronas dos nobres se alinhavam na horizontal. Era bonita, e eu não sabia dizer o porquê, já que sua face era totalmente escondida pela sombra de uma boina de renda, azul e aparentemente feita por um artesão raro em habilidade. Tudo nela parecia frágil. Magra, as mãos extremamente finas e seu único fragmento visível, a boca, não era nada senão um detalhe róseo sobre a pele pálida, mas sem exibir cansaço. Não parecia curvar-se para mim, mas para o piano.

Ah, para quem vive mergulhado nas águas densas do poder, aquilo que é grácil, mimoso e sutil é algo muito além do belo e se transfigura num convite de folha dourada. A uma paisagem de céu laranja-roxo, nuvens livres e vento raso a esfriar a canela, com poças também rasas aqui e ali. Atraente, mas tão distante! Que me faz intocável a tudo, e tudo intocável a mim.

Quando me sentei na grande cadeira dourada a esquerda de duas outras vazias, uma da Rainha e a outra do falecido Rei, notei que a musicista, agora às minhas costas, privara-me de perceber todos os outros ali presentes. Talvez três dezenas de pessoas sorriam para mim na placidez comum daquelas ocasiões. Poucas eu realmente conhecia o nome, a feição, a história de vida. Provavelmente todas mais interessantes que a minha. Retribuí.

- Haveremos de esperar mais alguns minutos, como todos já sabem. Até lá, donzela da música: continue.

Algumas risadas cordiais precederam a nova melodia. Eufórica em demasia, lasciva e lancinante. Convidava-me a olhar por atrás do meu ombro, mas não o faria. Enquanto os dedos da graciosa subiam e desciam cada vez mais rapidamente, o teste se tornava árduo. Ela queria contar sua história, ao mesmo tempo contando a minha por querer. Brotou na consciência a lembrança de Dolores cuidando de um corte que eu abrira em minha própria mão, na tentativa de cumprir a etiqueta dos banquetes e das facas. Tão preocupada, num dos poucos instantes que seu rosto se retesava num franzido completo e paralisado. Enfaixou-me com um tecido branco banhado num líquido qualquer. Mas no seu olhar que sempre se comprimia quando algo estava errado comigo, ela sabia: eu causara aquilo para chamar a atenção de Vêda. E à noite, eu exigia dormir mais cedo para sugar toda a expectativa que era fixar o olhar na porta do quarto esperando que ela irrompesse, nas suas vestes sempre imperiosas, para oferecer um carinho raro, materno. Cada estampido comum da madrugada era um sopro gélido de esperança. Ela não vinha. A tia que surgia. E antes de gratidão, sentia na boca o gosto áspero da raiva contida. Maldita Dolores! E crescendo e vivendo onde os papéis não eram claros - tia que era mãe e todo o resto, mãe que era máscara e nada mais, pai que era defunto e nem memórias -, onde eu encontraria a mim mesmo? Naquela melodia, talvez.

Rangido na porta. O trompete explode ainda mais alto. Breve silêncio. O anúncio.

A Rainha.

domingo, 10 de julho de 2011

Escapismo - Vêda Castellamare


Era de um tecido tão fino, parecia seda! O paradoxo de uma seda metálica. Pendia sobre minhas mãos como se desistisse da própria existência. Bordada sobre si, caracóis disformes, verdes na essência, criavam redemoinhos que viajavam em todas as cores por sua extensão, e preenchiam o que seriam minhas têmporas – tão cansadas têmporas! A superfície bege sofria o dissabor do tempo ancestral que crepitava minha alma fugidia num fogo azul e vermelho, de inverno a verão. Eterno. E era pouco observado naquele caleidoscópio de cores vivas que o transformavam numa abóbada de falsa riqueza, falsa alegria, falso poder. E os redemoinhos banhados num macerado brilhante precipitavam ao redor das narinas, onde pequenos furos me permitiriam a dádiva do respirar. O abismo maior, circundado pela ideia de meus lábios estreitos, não era nada além de uma abertura para o vazio. O vazio de minhas palavras de dor inexprimível, ou de destino insosso, ou até de uma desgraça de sobremaneira, gélida e sem razão. A razão, tão aclamada, mas nada bem vinda nesses tempos. Os olhos permaneceriam em cárcere, haveriam de enxergar por entre as fibras daquele pano, o que não era tão difícil quanto parecia. A imagem da justiça cega, justamente o detalhe que me fazia uma figura tão imponente na corte. E tão frágil na solidão do próprio leito.

Eis minha geniosa máscara! Minha única fonte de liberdade que me salva do pavor absoluto que é ser eu mesma. Fui ao seu encontro, como que oferecendo um beijo, e ela ocluiu cada poro em resposta, colando em mim como um membro que reconhece sua verdadeira gênese. Senti meu cabelo padecendo ao resvalar do vento que zunia pela janela pouco aberta. Os fios de cobre, tão longos quanto as cortinas brancas, debatiam sobre si mesmos. Temendo aos arrepios a previsível mudança de comportamento. Sentada na cama, vislumbrei as montanhas forradas por neve que emergiam no horizonte. O emanar da tranquilidade, tão perto. E intocável. Alguns segundos se passaram... Meu rosto, outrora gélido, agora já podia sentir o rubor da pele que não respira. Era o sinal do dever que chama. Preenchi os pulmões com os ares daquelas montanhas, a única porção delas que eu poderia obter. Levantei-me na imposição de minha alcunha: a impiedosa e justa Rainha Mascarada.

- Cornélia, Liz, Arlene!

Tão logo a voz ecoou no primeiro anteparo, as três fidalgas, identicamente decoradas num longo e denso vestido azul escuro entremeado por fiapos de prata, surgiram com os semblantes pétreos numa reverência deveras teatral. Na face externa da porta, admirei o brasão – o castelo esculpido em mármore e o mar tentando desfazê-lo. A fortaleza que resiste às ondas gigantes, às intempéries. A qualquer coisa! Um nome que perpassa gerações... E vários fardos que morrem com elas.

Das três, que nada mais eram do que qualquer coisa entre a estupidez e a falta de beleza, apenas Arlene me interessava naquela noite. No silêncio salgado na boca que envolve quem manda e quem serve, as empregadas iniciaram seus fazeres noturnos sem delongas. O jantar na corte exigia um preparo minucioso para minha apresentação, sempre tardia, que trazia consigo as desejadas expectativas. Liz, que já empunhava o pente fino em cabo de madeira, alisava meus cabelos com uma força suspeita, segurando o couro cabeludo na altura da nuca. Sentada numa cadeira de mogno defronte ao espelho, eu podia ver seu rosto contrair em cada energia gasta, e aquilo me alimentava num amargo lascivo. Embora não soubesse ao certo que sentimento inundava o coração da tosca moça, podia até sorrir por trás do manto em resposta ao estranho prazer. Mas na honra que ela deveria sentir por ser fidalga pessoal da rainha, se percebia qualquer reação, recolhia-se sabiamente na mesquinhez de si mesma. Eu não precisei proferir uma sílaba sequer, e Liz sabia: reuniu quase todos os fios num coque horizontal, e deixou que em quatro pontos, exatamente simétricos em torno do centro, eles pendulassem livres, chegando à altura da cintura. Apenas um olhar em direção a porta e ela se retirou, não antes de reverenciar-me novamente.

Cornélia trouxe o vinho real, especialmente dedicado a mim, encheu dois cálices fitando-os como quem sente o paladar ser inundado por saliva seca e o gosto só no plano etéreo e fugaz da imaginação. Reverência. Foi-se.

Restou Arlene, negra e de seios mais fartos que os meus. Que os de qualquer uma. Lábios profusos. Olhos, bocas e cabelo também muito pigmentados. Meu antônimo perfeito. Prostrada a alguns centímetros, eu podia sentir o cheiro sujo de seu suor. Nojento.

- Seu marido veio?

Ela assentiu. Arqueei levemente as sobrancelhas como quem ordena a retirada. Ela assentiu. E apenas quando chegou ao limite da porta, virou-se para uma reverência que foi até a metade de altura das outras duas. Fechou a porta, que em menos de dois segundos foi novamente aberta.

O homem que surgiu, de meia idade, de meia altura, cabelos meio grisalhos e alma totalmente corrompida, entrou aos passos tímidos - embora frequentasse sempre aquele quarto. Levantei-me e fui ao seu encontro. Retirei a máscara e senti quase de imediato o toque de suas mãos ásperas analisando meu rosto. No vício e ao mesmo tempo reféns do silêncio, trocávamos nossa intimidade travestida na urgência do tempo que era pouco. As paredes de fato ouvem, haveria mesmo de ser daquela forma. O homem então calculava a textura, os traços, as curvas. Os dedos viajaram por tudo que residia acima do meu pescoço e por onde caminhavam devolviam a vivacidade e o rubor para o meu todo de palidez. E o sorriso quase risível que se desenhava em sua feição alongava-se gradativamente. Como quem perde a inibição num supetão de falsa intimidade, bebeu do vinho que sobrenadava no cálice dourado e vi seus olhos fechados como o convite do paraíso. Aproximei-me o suficiente para que só coubessem beijos ou palavras. Vieram palavras:

- Parece que tudo vai bem, minha rainha! Um resultado notório, além do esperado, eu diria... – a voz morosa num suspiro rouco, excitava-me por trás de minha realeza de obelisco, e eu resistia – Mas continuarei te visitando, se isso não for problema para Vossa Majestade.

Parei de resistir. Despi-me, num ritual costumeiro no nosso pacto particular, e fiquei nua para que ele me moldasse da forma que bem entendesse. Que me tocasse. E vieram os beijos, apascentados em pressa. Virou-me e, por trás, envolveu-me num vestido totalmente dourado, que ondulava sobre si mesmo e no assoalho. O busto escasso bem oculto. Eivado. E soprou ao meu ouvido que eu lhe lembrava o sol, o visitante mais raro. Mas eram beijos frios, que talvez só encontravam calor no terreno quente e desmesurado que Arlene deveria ser.

Antes de Hector me deixar, resguardou um último olhar, silente. Devassada pela névoa de seus olhos opacos, coloquei-me à deriva de um sentimento que eu traduzira como o mais tenro desgosto. Talvez eu não fosse a sua experiência oportuna e primorosa. Encarcerada naquele invólucro de pele. No meio do bramido da porta se fechando na sua cruel despedida, ouvi sua voz de terra infértil pela última vez naquela noite.

- Não esqueça sua máscara.

Sem reverência.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Narrador Personagem



Não lembro bem se primeiro em mim brotaram os olhos ou essa gota opaca de consciência. Vieram juntos, talvez. A consciência com uma única imagem. Moldada do barro etéreo do solo das ideias do qual germinei.


A única imagem: um deserto de areia branca e uma tempestade de penas negras, que dançavam ao dissabor da própria loucura (e não do vento) criando pequenos e efêmeros eclipses. No assoalho arenoso e também no céu igualmente alvo.


Soube depois que todas as suas criações começam com um recorte de uma realidade tresloucada. Um misto de fantasia de lugares que nunca foi com sentimentos de infância, juventude e ao resvalar de seus mistérios. Ao visualizar a minha paisagem particular, selei o pacto. O segredo que nos uniria pela eternidade. E ao fim da minha construção eis a sensação que eu teria que devolver: da areia branca e as penas loucas reverberando em seu âmago. E mais que isso, os significados que dormem por baixo. Sei que ele olharia pra mim ao final de tudo com o olhar altaneiro de um criador e exigiria de mim o retorno.


E a gota de consciência dobrava-se sobre si mesma, crescendo em bolhas em grumos em poças e em rios.


E a primeira imagem que se refletiu nos meus olhos foram os próprios olhos. Flutuando defronte a um espelho, para que eu compreendesse minha própria gênese. Ele haveria de estar em algum lugar por ali, mas eu ainda não tinha a voluntariedade de meus movimentos. Então me vi. A íris primeiramente pintou-se de um tom ambíguo entre o verde e o azul. Desmanchou-se em branco e precipitou por fim no negro da treva e do inverno. Ele não me faria diferente, me faria comum como as garotas comuns de dias comuns. Para que me lessem e encontrassem o delírio dos loucos na figura mais patética. E, portanto, em alguma ilha patética dentro do oceano de si mesmos. E seu questionamento tilintava em algum lugar dentro de mim que ainda haveria de ser criado: de que vale a beleza pálida de olhos coloridos se ela sempre tropeça e falece no abismo da inexistência? Lendo-o e, por conseguinte, vendo-me, todos haveriam de ler e ver um pouco de si mesmos. Já que ler é exibir os olhos da alma: o livro de páginas infinitas e de fórmulas complexas que cada um é.


O rosto que se emoldurou ao redor me parece com uma personagem de sua própria vida. Pela prontidão que foi moldado e pela familiaridade que eu não sei de onde vem. Não haveria de estar totalmente abstido de sua própria vida, uma vez que toda sua arte seria em menor ou maior grau reflexo de suas próprias experiências, ainda que modificadas. Conclusões que já me vieram prontas. Talvez devido aos fragmentos de alma que compartilhamos. Mas enfim: uma face pontiaguda, pouco simétrica, de queixo profuso e maçãs inchadas. A boca era quase que uma linha rosa desenhada a lápis na pele morena. Um pequenino nariz e uma cascata de fios espiralados em cor de ferro. Eu não me imaginaria de outra forma.


Ele estava atrás de mim, agora que eu podia vê-lo. Sei que ele não retribuiria o olhar até que todos os seus sentimentos confusos precipitassem numa arquitetura sublime. Que eu ainda não era. Mas era bom vê-lo. Não muito diferente do espelho. A mão esquerda do jovem ancorava a testa como se os conflitos pesassem. As ideias em ebulição que não encontram um meio de explodir para o mundo! Pois ele, o artista que era, dobrava-se sobre a maldição dos pobres sentimentais. Ele haveria de expressar tudo, e nem tudo as palavras abrangem. São criações do homem, o imperfeito homem! As emoções seriam como galhos espinhosos a perfurar-lhe o íntimo que até doía. Então usaria os segredos por trás das criações (as paisagens), os detalhes por trás das palavras, as vicissitudes dos cenários e enredos oblíquos e difíceis. A maldição solitária colocava-o no fim como única testemunha. E talvez por isso ele me criava, como testemunha virtual – minha triste limitação. Mas se ao fim os galhos puderem ser cortados pela proficiência de seu labor, borbulhará na garganta um regozijo também solitário. E por isso tão almejado.


O monitor do computador emitindo a única luz do quarto escuro. Eu não conseguia ler, mas sabia que ali se emparelhava todo o código do meu nascimento, onde se bordava com linhas de seda os retalhos que comporão meu destino. Num supetão desorientado, levantou-se e deixou o quarto. Eu ali, ainda sem corpo...


E na triste cacofonia do silêncio, veio-me um lampejo. Minha primeira sensação autônoma, fruto da liberdade que quase faz de mim uma pessoa. Faria dele também meu, de pacto a contrato justo. O rapaz esguio, crítico e decerto deveras solitário, seria também algum fenômeno dentro de mim. Paisagem?


Uma árvore morta flutuando no ar, as raízes pendulando lentamente.


Com pouca noção do que é vida, eu já sabia: antes que eu fosse a sua tempestade de penas negras, ele me devolveria uma sensação de morte. Morte rápida para alguém que nem sequer sentiu a firmeza do chão, e só meramente levitava. Como a árvore. Entrou no quarto, acendeu a luz e pela primeira vez me fitou. Trocamos um olhar de resignação e de mútuo respeito, que durou a menor fração de um piscar. As linhas de seda se desintegraram. Um suspiro: o retorno não viera. A experiência fracassada, a labuta postergada. Sem encarar o monitor, desligou a máquina. Desapareci – diferente de morrer.


Porque entre suas penas e desertos, me faço imortal.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Comatoso


Como ela poderia estar tão inebriante em beleza? Os cabelos de seda negra cascateando defronte aos miúdos olhos falsamente marejados. Os traços finos suicidando no precipício do queixo, todos juntos na perfeição do retilíneo inviolável. A pele talhada num moreno lascivo que ousava brilhar. E maquiagem, não era ocasião pra maquiagem! E no útero do ódio de onde eu nascia a cada instante, nasci e odiei Marília mais uma vez.

Queria nela o caos! Os fios negros reverberando ao estapear desordenado do vento. A palidez, também dos lábios. Os punhos cerrados em revolta. Gritos, que viessem! Que tudo viesse e fosse fruto do descontrole de quem teme e de quem ama. Mas não da compostura gélida em máscara de etiqueta.

Mas só há compostura. E meu ódio-amor na dicotomia mais tenra e insaciável eram linhas que ela tecia sobre mim para o controle. Costurando na minha feição uma moldura pétrea de resignação. Costurando a boca com agulhas finas. Eu olhava. Embebido pela beleza da beleza e pela beleza de sua podridão. Pois até seu podre era belo. Erguendo-se sobre mim como uma aranha de patas em veludo. Eu na maca, prostrado em velório a mim mesmo, nada tinha senão as cartas vazias que se joga no silêncio. Os olhares cúmplices.

- Ah, meu amor, fiquei tão preocupada com você!

E cada sílaba carregava consigo toda a estiagem do mundo. Com secura de trincar minha pele já em fase de esfarelar. Seis meses que perdi. Seis meses em coma. E o soro gotejava calmo num sussurro de morte suave e longínquo, familiar. Eu olhava. Como ela estava bonita! Aproximou-se de mim como quem se interessa por um animal exótico, mas ainda com nojo. Aquela atração execrável pelo sujo. A sobrancelha tremulava alguns milímetros, ziguezagueando. Eu conhecia bem aquela postura: a de quem não suporta o fardo do segredo. E nem o fardo da verdade. Por segundos me pus a imaginar. Os outros romances. Outros presentes. O desejo ácido de que eu partisse (até eu o tenho!). Mas não sou mais receptáculo para emoções. Não sinto gosto da lamúria. As emoções não me salvaram. Então, eu apenas olhava, quieto.

Senti sua aproximação e a teia se formando. Tocou-me, mas eu não a sentia. Paralisado, via minha mão tocar a dela sem tocá-la. E toda força que havia dentro de mim era nada senão um comichão em todo lugar, em lugar nenhum. Uma coceira na base do pensamento. Um arrepiar de tudo e um impulso sem destino.

Seu olhar pendulou sobre meu punho. Claramente decepcionada. Talvez houvesse em sua postura temerosa a curvar-se um átimo de piedade a fornicar-lhe a mente. Piedade não de mim. Mas de querer encontrar em si mesma alguma fonte própria de benigna consciência. Buscando em si o que fora outrora, mesmo que teatralmente. Buscando em si os valores que a todos pertencem, ou deveriam pertencer. Pude senti-la cavando sua essência a procura de compaixão por aquela massa humana deitada afronte. Mas numa baforada de impaciência seguida de um mergulho de ambas as mãos na cabeleira fez-se a desistência semeada e germinada e crescida e regada. Os frutos degustados. A semente, cuspida na minha face. Fui dissecado. O corpo exaurido, imprestável, varrido por um obelisco feminino aos pedaços, ainda que por fora intacto. Eu: o vegetal de olhos abertos que nada podia oferecer senão a ausência de palavras.

Um estridor reverberou nas paredes brancas do meu último leito. Aquele som estava em algum lugar da minha memória, perdido entre tantos outros arquivos prontos para serem queimados. Era seu celular.

- Alô? Sim, estou com ele. Não posso falar por muito tempo. Não se preocupe, não se preocupe. Não demorarei aqui. Passei para ver se ele podia falar. Mas não pode. Não se preocupe, não se preocupe.

Que estranho, ela nunca gostara de jóias! Mas um colar de safiras retinia num azul singelo, coroando-a tímido, porém imperioso. Ela gostava de azul, então eu só comprava gravatas azuis. Mas nunca jóias. E meu último movimento, meu adeus à humanidade, fora tingido de azul. Na escada, antes do firmamento padecer, pintava num azul bem leve o quarto do nosso filho que viria e não sei se veio. Ah, talvez eu seja pai...

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Mesmerizar-se


Abriu os olhos. Na parede, o sol se refletia em laranja, e a cortina mofada de renda costurava com a sombra pequenos eclipses disformes. Sabia: era a hora exata de acordar. Acordado já estava – há quanto tempo? – mas ficaria ali a observar seu caleidoscópio particular por mais alguns segundos. Na cama pequena, desajustada para seu crescimento desajustado. Que o limitava a uma única posição lateral, de pernas flexionadas, com a possibilidade de talvez um giro pelo próprio corpo para fitar a janela. Mas havia luz demais do outro lado, e ele não podia encará-la. Havia espaço, havia liberdade. Havia um bonito campo verde ao fundo pra onde outrora planejara em fracasso fugir. E aprendeu, ao dissabor de várias surras, que ele era e sempre seria o antônimo de tudo que é livre. Encarcerado na sua própria grandeza, as costas suadas de um pesadelo já esquecido, os olhos marejados de sono e tédio, as articulações em frêmitos da circulação comprometida pela prisão que era dormir. Mas ainda melhor que acordar.

E no desalinho de sua completa desproporcionalidade, ergueu-se. Sentado na cama, vislumbrou mesmerizado seus membros artisticamente dilacerados. Na perna, uma mancha esgueirava-se pela maior parte de sua coxa. As bordas em crosta, denunciando uma ferida recente. E cicatrizes concêntricas à queimadura criavam uma tatuagem de um sol meio negro meio roxo. Tatuagem em tinta de ódio. Que infiltrava nas veias e anestesiava seu corpo. E seus olhos. Aquele olhar em nebuloso do garoto era um poço sem início e sem fim. Apenas com o vazio familiar de quem a nada se apegava não por frieza, mas por não ter escolha. E uma leve constatação nos braços de uma constelação de outras pequenas máculas diversas. Eram poucos centímetros de pele preservada. Aquilo era sua capa, sua carcaça, sua casca, sua casa.


Vestiu uma calça e uma camisa de manga comprida. Queria mesmo é uma máscara. Fazia muito calor.


Leonardo não tinha apelido. Pronunciavam seu nome grande tal como era. Talvez porque sua face talhada em crateras e cortes não inspirava nenhum tipo de doçura por parte de ninguém. Só secura. Ou porque diminuir seu nome significaria criar um laço cujo fardo não haveria a quem encarregar. Mas ele se chamava de Leo, em seus pensamentos migratórios a mundos fora da Terra onde metabolizava toda sua subjetividade em fantasias abstratas, funestas e até eróticas. Leo então era Deus, e os outros meros servos a seu bel prazer. Nisso, pessoas lambiam sua cútis podre como se tivesse o sabor do Elísio. Chamavam-no de belo, de único, de especial. Elevavam-no a uma divindade pelo dom que possuía. E poderia escrever destinos, e até mesmo o seu... Eis seu universo particular: a vingança semeada e cultivada por toda uma vida. Vingança por quem o fez diferente, essa experiência falha para a vida, mas pronta para o descarte. Pela escravidão da alma - se é que tinha - aos grilhões frágeis de quem nada tem. E por não saber que palavra era aquela que borbulhava nos lábios de todos: amor!


Leonardo tinha doze anos. E não sentia de dor. De nenhum tipo. Nenhum resquício. Nasceu assim...


Embebido em descrença! Aprendeu na escolinha que papai do céu fica triste quando os filhos desrespeitam, xingam, batem ou odeiam seus pais. E ali, debruçado sobre a pia gordurosa por guloseimas que nem sequer viu, questionava-se se esse mesmo papai do céu não se comovia com suas lamúrias. Se Ele não ficava triste quando os pais desrespeitam, xingam, batem ou odeiam seus filhos. E também se esse papai do céu, acomodado em seu trono celestial, plantaria, algum dia, amor no seu coração para com aquela figura amebóide que recebeu de algum infeliz a alcunha de pai. Difícil... Ao olhar por cima do ombro e vê-lo imperioso em seu gigantismo assimétrico, esparramado flacidamente pela extensão do sofá, uma confluência de sentimentos ácidos complexos de descrever jorravam uma saliva amarga na mucosa crispada e sanguinolenta do garoto. Mergulhado num espectro infantil de reconhecimento da realidade, não saberia nomear aquela sensação irritadiça como o próprio sentimento do qual o suposto Deus supostamente se chateava: ódio. O arrepiar em frenesi que normalmente sentia em momentos como aquele, em que ouvia o ranger da movimentação de seu pai no atrito de sua pele membranosa em contato com mais pele membranosa. Os calafrios da iminência de um pesadelo ricocheteavam em seu corpo por inteiro, trazendo lufadas geladas ao seu estômago. Concentrou-se na louça. Mas aquele barulho familiar do atrito somado à pressão de passos firmes no assoalho de madeira era a trilha sonora de tantos outros momentos vistos, previstos, sentidos. Não esquecidos...


Primeiro os passos. Depois a voz que esbravejava ofensas que ressaltavam a inutilidade de Leonardo, a incapacidade, o talento para desastre e sua feiúra sem limites. Vociferava que devia tê-lo abandonado como a mãe fizera, ou sugerido o aborto. E, não com aquela falsa sinceridade de quem está magoado e finge ser forte, mas com uma sinceridade límpida de quem não entende o acaso da vida: o menino sinceramente concordava. Quase sorria meio débil. Porém, os lábios não se abriam para consagrar o ultimato da resposta. De alguma forma aquelas sensações estranhas e perigosas que fulguravam em seu interior e gritavam em uníssono para cada canto do seu íntimo trancavam as portas. Trancavam a boca de onde de dentro destoam os gritos.


Pois quando ele elevava a mão inchada para desferir-lhe um soco contra a face menos marcada, não havia nada senão a sensação incômoda de ser deslocado para outro lugar bruscamente. Humilhantemente esgueirar-se e ir dobrando-se e desdobrando-se e redobrando-se para o equilíbrio. A feição continuava estéril, pétrea, de cera, focalizando qualquer coisa no rosto do pai, qualquer detalhe macabro que talvez o fizesse sentir aquilo que todos temiam. E se agarravam. O sentimento que faz o homem se ajoelhar em pranto e agonia, mas que também o faz erguer-se sobre seus traumas para respirar mais forte que outrora. Cerrar os punhos contra os próprios fantasmas e ceifar o desalento de toda uma vida. Foi puxado pelos dedos gordos cravados em sua nuca para que padecesse contra as próprias pernas. Naquele momento, em que se precipitava de encontro ao chão como uma fruta podre que se desprende para se decompor, descompôs-se enfim. Fechou os olhos.


Água. Seu corpomovia-se lento, pois o oceano de uma água cálida, estática e quente, abraçava-o todo num esmero zeloso e confortável. E respirava. O horizonte verde-azul era como um abismo de paz, um poço de uma tranquilidade anestésica que o fazia prolongar-se a cada piscar temeroso da realidade. O silêncio... Ninguém. A pele íntegra, curada, movia-se em desordem, como uma criança na experiência de um universo completamente novo. O gosto doce de possuir por completo os próprios movimentos. Desenhar com os membros as figuras cicatrizadas na alma. Se soubesse desenhar seus próprios vórtices de tristeza... Fez com o dedo um redemoinho. As possibilidades tantas: giros, cambalhotas, contorções. Com a boca, bolhas! Que subiam... Mas havia acima de si uma lâmina de espelho d’água que não refletia nada senão confusão. E depois dela a incerteza. Voou até lá numa zarpada eivada pela curiosidade de menino. E emergiu submergindo em mais água. Em mais nada, silêncio, ninguém. E de onde de tudo no fundo de si e além, a verdade: a solidão. Gélida. Era água e só. Liberdade crua. Não era uma praia com sua mãe observando como ele nadava. Não era uma piscina e seus amigos pulando e brincando. E focando a visão, todo aquele azul costursuturado em verde era senão um túnel negro. Era ele, sem nada, sem tudo, sem luz, sem dor.


Abriu os olhos. A água extravasou do inconsciente e reencarnou em lágrima. A primeira! Escorreu sequiosa, tremulou no nariz e faleceu no chão.

sábado, 22 de janeiro de 2011

O que cortar?


Abro os olhos como quem sai do coma. As pálpebras hesitam, mas se afastam devagar. As cores surgem meio agressivas num caleidoscópio desordenado. Muito, tudo muito vermelho. Eu adoro vermelho... No fim, há só um teto. Daqueles de tijolos dispostos em pares, formando fileiras de quadrados entremeadas por grossas faixas brancas. Não parece bem uma residência típica do centro urbano. Mas eu estou aqui. Somos eu e o teto. E nenhuma parede - meus olhos não são capazes de viajar nas órbitas. Estão estáticos, vidrados. Não sei do resto do meu corpo. Não o sinto...

Mas há uma música! Uma mulher e um piano. E ela não entoava palavras. Apenas um suspiro de morte enquanto o pianista brincava com as notas de uma dança macabra. Um suspiro longo. Que viajava de um temor sôfrego a uma excitação frenética. E depois se debulhava numa somente respiração cansada. Passam-se alguns minutos enquanto aquela música parece me anestesiar. Por dentro, já que por fora eu não sinto nada. Nada, o vazio completo da consciência. E fico. Coisas como vida ou morte não fazem sentido debaixo daquele teto de tijolos. Pois aqui é o nada.

Há quanto tempo vejo essa mulher? Ela não surgiu gradativamente no campo de visão. Apenas apareceu, como uma foto costurada à minha retina. Os cabelos vermelhos precipitando em ondas de sangue. A primeira fonte de luz daquele cômodo. E o rosto forrado de uma pele desbotada, algo próximo do cinza, num relevo acidentado de manchas roxas discretas, como se a mais forte maquiagem ousasse construir uma máscara de normalidade. Inútil, era a face da tristeza se abrindo para um sorriso de maldade. Um sorriso que me mostra uma garrafa de vidro e um punhado de criaturas. Insetos: abelhas, formigas, escaravelhos e outros. E de tudo o que eu mais odeio e entre tudo o que eu mais odeio e mais que tudo, ela acertara. Insetos. Despejou-os sem delongas na altura do meu abdome. Mas eu não os sinto. Apenas fito sua face diabólica contorcendo-se numa satisfação doentia.

Dor? Não a física, mas pior. Imagino os insetos comendo e carcomendo minha pele com suas garras e presas. Dilacerando a extensão do que eu era e infectando-me com sua podridão. Sugando sangue, depositando em mim os ovos de sua prole. Dói! Mas não há grito não há movimento não há contração dos músculos. Dói dentro. Onde tudo o que penso se converte em desespero sólido. Em pesadelo vívido. E não consigo mais fechar os olhos. O que eu era apodrecia diante de mim e eu não podia ver. Primeiro, meu corpo. Agora, minha alma. Só restaria a mente para que pudesse ainda degustar daquela dor. E toda a força que eu desprenderia num clamor de fúria se volta contra mim e rebate no meu âmago ao me revelar que o que eu via bem ali, a mulher ruiva que se tornara meu algoz, eu já conhecia. Sim, como as memórias podem ser cruéis! Escondidas nas gavetas mais sujas da consciência. Ao som da melodia fúnebre que orquestrava o meu inferno particular, abrem-se, uma a uma.

Uma rua uma mulher um beco. Um homem uma faca. Aproximei-me dela cambaleante como usualmente fazem os bêbados. Tão sozinha e tão linda! Ah, como amava aqueles fios vermelhos que dançavam alegres ao sabor do vento! Seu rosto, ainda imaculado, era fino e frágil como uma flor de primavera que desabrocha para a noite. E desabrocharia agora para mim... Toquei-a com meus dedos oleosos e sujos e senti que já não havia como voltar atrás. Ela também estaria corrompida. Mas debatia-se como uma fera! Quando a levei ao beco tentando calá-la com meus beijos de álcool, ela gritou muito. Ora, que afronte me pareceu! Um tapa de força mal calculada a lançou no assoalho áspero. E o grito se reduziu a um gemido. Estava muito tarde, ninguém viria salvá-la... Firmei os joelhos posicionando-a entre minhas pernas. Ela se desesperava olhando aos arredores. E para si, pois eu rasgava sua blusa de rendinha com um único puxão e deixava marcas vermelhas em sua barriguinha branca como uma estrela da noite. Minha estrela! Como ela chorava! Calei-a com uma das mãos. Brinquei com a outra. E a mulher ainda se debatia! Tentava a todo custo me chutar nas costas ou me jogar de lado. Mas era uma flor, fraca como uma. Não me impediu de me despir e limpar o meu suor fétido naqueles cabelos ruivos tão lindos! Esfregava-os na minha face torpe e sentia um aroma calmo, gostoso. De rosas. Minha língua viajava na sua pureza semeando a maldade por onde passava. Não me importava de fazer de sua dor o meu prazer, talvez por realmente nunca me importar ou por não estar lúcido o suficiente para isso. E fiz, então, o contato. Unifiquei os corpos e ela era como um ímã que me rejeitava. Mas quando foi que eu comecei a aceitar rejeição? Uni, fundi, colei-nos contra a sua vontade. E contra a vontade divina. E descolava a meu bel prazer, e colava de novo. Pois ali, no meu mundo, eu era o Deus e ela uma serva resignada. E parou de se debater, então, e aceitou como uma dama deve fazer a dança que eu majestosamente propunha.

Um intruso. Um besouro pousou no corpo dela no meio da dança. Encostou suas patas sujas de estrume no terreno que era meu. Fui tomado por uma fúria descomunal e espanquei-a como bem merecia. Como ela permitiu? Reuni todo o meu ódio em punhos cerrados, em socos e tapas frenéticos que deixariam as marcas daquele pecado encravadas em sua alma. No fim, mergulhado nas águas salobras do nojo, cuspi. Cuspi e cuspi de novo. Nojo! Deixei-a com o seu inseto e me retirei. Ainda haveria a ressaca para eu lidar.

E, por rasgar sua feminilidade e pôr do avesso sua intimidade, agora eu me coloco aqui. Vendo-a torta entre insetos e sorrisos diabólicos me corroendo, ambos. O ritmo da música se findou numa hecatombe de sons agudos. Agora sinto o pavor do silêncio. Parecendo extasiada de satisfação, largou os insetos. Suspirou...

E trouxe uma faca.