sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Carta para Melissa - Parte II

Quando as águas me envolveram como um berço, minha amiga, encontrei no silêncio de seu fluir alguma paz. Era como se eu estivesse a caminho de me fundir ao mundo, dar-lhe de volta à matéria que me emprestara nessa vida fugaz. Mas tudo em mim é vaidade. E agora percebo as mazelas desse infeliz atributo: a pessoa vaidosa se mostra, preocupa-se com firulas e mesquinharias. Quer que notem que se veste bem. Quer ser admirada, quer ser bajulada. Não confessa, mas quer. Os casos mais perdidos até confessam. Sempre está se vangloriando de qualidades que ela sabe que não possui... As pessoas ao seu redor respondem com sorrisos falsos, pois os vaidosos não são muito bons para esconder sua alma cheia de futilidades. É o que há de podre no caráter humano.

O desespero bateu, e a vaidade convencia meu estupor de que minha existência era relevante demais para se desfalecer naquele momento. Às vezes nossos piores defeitos salvam nossas vidas. Estou sendo dramática, sei disso e peço perdão, mas queria que estivesse ali para visualizar aquela cena deplorável e então preciso te munir de todos os detalhes. Emergi, aos vômitos e gritos. Não demorou até que me tirassem dali e eu fosse encaminhada para o hospital mais próximo. Pensei em inventar alguma história, mas eu estava muito abalada para ter criatividade. Os olhares, daquele momento em diante, desferiam verdadeiros golpes na minha face. Uma mistura de piedade com resguardo. Fui tratada como uma criminosa. Quase matei duas pessoas, afinal...

Ao acordar, já no leito do hospital, meus pais me inundaram de perguntas, atônitos demais para me permitirem responder. Choravam e se perguntavam onde tinham errado na educação que me deram. Rezaram, num misto de culpa e vergonha. Eu, entretanto, deixei escapar: “O Guilherme já está sabendo que estou aqui?” num claro sinal de que o ocorrido não modificara minha falta de amor próprio. Respirei fundo – ele já sabia e não viria me ver até que seu filho nascesse. Praguejei a existência desse ser.

Os médicos não faziam rodeios. Disseram que a hipotermia causada pelo acidente afetara o sistema cardíaco do bebê, e que uma cesariana de emergência precisava ser feita naquele mesmo dia. Eu concordei sem refletir muito, embora a insegurança que me dominava fosse quase palpável na atmosfera. Sabe quando você tem todas as evidências que algo acontecerá e mesmo assim você prefere desacreditar? Foi assim, querida amiga, que eu fui levada para o bloco cirúrgico.

Num piscar de olhos ele estava lá. Um ser humano gerado no meu corpo repousava como um anjo ao meu lado. Meus sentidos se estontearam. Percebi que os médicos sorriam conversando com a nova vovó, que com curiosidade observava minha reação. E era de pura perplexidade! As suas formas diminutas e sua feição de serenidade fizeram as lágrimas despejarem em vistosas cascatas. Como eu quase arrisquei a vida daquela obra maravilhosa de Deus? Quando repousei aquele bebê nos meus braços, o sentimento materno que então estava ausente surgiu impetuoso. Escolhi o nome, Pedro, e fiz mil planos de mãe de primeira viagem. Queria muito que você fosse a madrinha!

Guilherme apareceu, mas eu já não estava muito interessada. Combinei os aspectos burocráticos de sua paternidade e evitava vê-lo ao máximo. Mel, hoje percebo, em meio às minhas crises de remorso, que ser mãe era tudo que eu precisava. Existem as dificuldades, com certeza, mas vivo cada dia com o fervor de quem quase já perdera tudo. Nesses dias frequentemente me lembro das pessoas mais importantes que passaram pelo meu caminho. A partir de hoje, prezo cada amizade como um tesouro da vida. Não quero perder ninguém!

Espero que tenha se divertido e se emocionado com esse relato. Espero, também, que me perdoe por tudo.

Muitos beijos e abraços,
Tina Costa.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Julia

E era exatamente dessa forma a grafia, sem o acento agudo. No colégio, os garotos insistiam em pronunciar o nome de maneira errada para irritá-la. Franzia a testa e suspirava, num ritual que mascarava seu desprezo pelos colegas e para si mesmo. Na verdade sentia-se bem os desprezando. Para o bom convívio social do mundo adolescente, porém, preferia considerar-se um ser humano com suficiente piedade alheia. Superficialmente, era a típica menina de traços finos. Exageradamente finos. Lábios de pouca carne, muito róseos, desenhados numa face de maçãs sobressalentes que davam um aspecto escultural para aquele rosto. Os cabelos eram exuberantes, de um bronze opaco que ganhava um tom escarlate debaixo do manto solar. Toda a sua personalidade se atrelava à aparência que, como as esculturas (mesmo as mais admiradas), eventualmente vinham a ruir ou perdiam pedaços continentes.

Vale ressaltar que tivera uma infância cheia de brilho, festas e fotos. Nascera numa família que não era de elite, mas se esforçava para viver a vida mergulhada em regalias materiais. Hoje já não existem famílias numerosas que se agrupam em comemorações exuberantes, mas uns dois ou três tios por ano traziam seus filhos únicos para jantares cheios de polidez e palavras rasas. O brilho era de um amarelo pálido; as festas, de uma monotonia maculada; e as fotos costumavam sumir nas gavetas de mármore. O amor dos pais, protetor às vezes em demasia, ora ou outra irritava. Cresceu se questionando se era amada e protegida por ser Julia Monteiro ou por simplesmente exercer o papel de filha. Estava clara a resposta: a segunda tese. Construiu, portanto, a personalidade da não-personalidade. Julgava-se capaz de agir da forma que quisesse, dependendo da exigência das situações. Não passava de falta de autoconhecimento, entretanto.

As crises familiares se davam em gritos baixos, perfídias silenciosas e jantares teatrais. Numerosas empregadas domésticas iam e vinham. As amigas sempre elogiavam a beleza de sua mãe e da casa, ambas de fato impecáveis. Sorria e suspirava. Era quase que uma mania, essa coisa de suspirar. A neblina que porventura oculta a realidade dos olhos das crianças se dissipava com o tempo. A verdade ficava irritantemente diáfana. Ganhou o costume de criar em sua mente situações de conflito, em que dizia as palavras mais abissais, gritava para os pais como o amor deles por ela era falso e cheio de contratos. Um ódio indevassável. Nas viagens imagéticas mais longas, agredia-os com tapas furiosos. Imaginava-se quebrando os móveis, usando drogas e levando homens para casa. Pelo menos, pensava, seria podre para os olhos de todos que quisessem ver. Na prática, embora os olhos se marejassem, apenas suspirava. Hábito amaldiçoado...

Num momento da vida onde os impulsos corporais sobrepujavam a lógica, entregou-se cruamente ao primeiro amor. Como uma flor de vida perene, abriu-se sem critérios. Expôs o âmago. Afinal, Hector personificava a beleza, o divino. A esperança! Os encontros eram sempre de poucas palavras e muito toque. O tato que encontrava em seu corpo o gozo mais profundo enchia seus sonhos das atitudes mais libidinosas. Dormia fora de casa, habituou-se à família do namorado (tão mais natural e simpática) e amou. Amou sem conhecê-lo. Que não lhe perguntassem a cor preferida do rapaz, ou seu gosto musical; ela não saberia responder. Quando se sentia enjoada de romances e flores, traía, numa tentativa de descobrir o que havia de mais sórdido em si mesma. Era o ensejo puro de se conhecer. Mas permanecia no relacionamento, e mais neblina se dissipava ao longo dos anos.

Mudou-se, e procurava notícias dos pais - agora divorciados - apenas em datas específicas ou quando a situação monetária se mostrava complicada. Ignorava as chantagens da mãe e desligava peremptória quando se prolongavam demais em diálogos fúteis. Sua nova meta era construir uma família que fosse diferente, repleta de amor e sinceridade. Hector concordava, como sempre fazia. As volúpias da vida íntima sem a preservação eram estonteantes, mas não obtiveram resultado. Culminou num sentimento pétreo de martírio que ambos do casal compartilharam. Mais tentativas falhas levaram-nos a um médico especializado.

Eis que a imunologia paradoxalmente se pôs contra a fecundação. A análise clínica demonstrara que o sistema imune de Julia criava anticorpos contra os gametas do parceiro. Não que fosse infértil, mas pra ter um filho com o cônjuge necessitaria de um procedimento laboratorial muito caro. Ele estava determinado. Só ele. Suspirou.

Conheceu outros modelos. Variedade da anatomia masculina! Sua silhueta mudava drasticamente de forma. A boca estava sempre manchada com batom vermelho e os cabelos não passavam da altura dos ombros. O quadril se alargou, preparando o envoltório da fertilidade. O excessivo sentimento de independência a transformou numa futura mãe solteira.

Levou os pais ao primeiro exame pré-natal, numa tentativa fracassada de criação de um ambiente familiar. As palavras preenchiam o ar como previamente ensaiado. Os sorrisos, sempre acompanhados de risadas curtas. Risadas que só se ceifaram quando a doutora comunicou, após uma cariotipagem, que o bebê era macho, e nasceria com a trissomia do 21. Mais conhecida como Síndrome de Down.

O diafragma se contraiu num profundo suspiro.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Victor

A mãe foi relapsa. Utilizou-se duas mãos para analisar o xampu que prometia alisamento imediato. Livre, a silhueta diminuta do rapaz podia se desvencilhar daquela multidão. Sua mente infantil não compreendia como tantas pessoas se reuniam num mesmo lugar para comprar coisas tão desinteressantes. Arroz, açúcar, manteiga, óleo... Não fazia sentido. Então, na primeira oportunidade de escape, parou apenas para pensar se levava o carrinho ou não. Balançou a face rosada num sinal negativo para si mesmo, não tinha forças para empurrá-lo. Ainda assim, faria daquilo uma aventura. Seria um herói mesmo sem carrinho. Cogitou dar um beijo na mamãe, mas sabia que fazê-lo estragaria tudo. Colocou-se em posição de largada, contou até três em um segundo e correu. Em seu caminho, pernas surgiam como arvoredos dos quais ele precisava se esquivar de maneira teatral. Contornava-as, passava por entre elas e urrava em vitória a cada progresso. Fez com que as pilastras que o obstaculizavam abrissem espaço para ele. O chão era liso, fácil de atingir a inércia na velocidade. Outras crianças olhavam-no com uma curiosidade que alimentava seu ego já inchado.

No instante em que o vento que margeava a rua refocilou-o no suor, banhou-se no alívio da liberdade. Admirou o céu, ergueu os braços e se reconheceu como vencedor. Os meninos da sua idade, em seu julgamento, nem de longe eram tão fortes e rápidos. Franziu a testa imaginando como contaria para seu vizinho, que com seus quatro anos mais velhos sempre tinha histórias fascinantes para relatar. Certamente ornamentaria da maneira mais dramática. Podia dizer que o perseguiram, que ele lutou contra os seguranças corpulentos e desarvorados. Só de imaginar, um sorriso brotava-lhe na feição. Respirou fundo. Suspirou. Olhou ao seu redor. Entrelaçou os dedos por trás da cabeça. Havia um parque no meio da praça.

Os balanços estavam vazios. No ímpeto, as pequenas sandálias se deslocaram de seus pés. Acomodou-se. O gancho da corrente arranhava na ida e na vinda. Rangido confortável. Bocejou. Estava tudo tão vazio que não tinha muito sentido em exibir sua libertação. Flutuou com os pés em cima da cadeirinha. Abraçou os joelhos e fechou os olhos. O que era aquele sentimento? Parecia que duas mãos fortes espremiam seu coração...Pensou que estivesse sendo punido, mas resistiria. Voltou-se à praça. O calor o irritava muito. Quando ia à praia, sua mãe sempre o impedia de sair correndo ao mar logo quando sentia a areia sobre seus pés para, primeiramente, banhar seu corpo no protetor solar. Procurou afastar a imagem materna de sua consciência e limpou as gotas de suor com as mãos rechonchudas. Criou círculos no chão de terra com seu indicador. O astro-rei, objeto de quase todos os seus desenhos, ganhava vida na arte daquelas mãos. Passaram-se minutos naquele torpor, embora o tempo parecesse paralisado. O badalar do sino da igreja invadiu o garoto com uma nostalgia triste. Abaixo de si, uma sombra humana que tomava grandes proporções fez o seu pequeno sol se transformar numa lua negra. Empertigou-se.

- O que faz aqui sozinho, querido? – Os cachos loiros daquela mulher mais pareciam douradas serpentinas em infinitos caracóis. Um sorriso pequeno de lábios curvados escondia os dentes. O olhar extremamente redondo envolvia uma pupila negra, como as rosas escuras que havia no jardim da casa do garoto. A casa... Por um instante desejou sua proteção inviolável. Mas era tão bonita, aquela moça! O que é externamente belo já é capaz de encantar a alma de uma criança. Sua mãe às vezes era muito rígida, severa. Não crescera para compreender que a preocupação é a mais tenra expressão de amor.

- Não me olhe com essa desconfiança! Venha, há outros brinquedos mais legais logo ali. – Entrelaçou seus dedos com aquela pele fria e desconhecida. Tentou romper o elo, mas estava muito fixo. Papai do Céu já pintava o mundo de laranja, anunciando que a noite não tardaria. Victor odiava o crepúsculo. Sem que o pequeno menino notasse, uma forte lufada de ar esvoaçou os grãos do firmamento. O sol se desfez.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Amanda

Um simples olhar desnuda. Quando as pupilas se observam o íntimo se revela no instante em que um mar de suposições quase sempre verdadeiras inunda a mente. Porque será que ele está olhando para mim? Será que ele quer conversar comigo? Ou ainda: e se ele quiser sentar perto de mim? Um movimento qualquer de sobrancelha pode significar um convite à amizade ou estampar a indiferença. Preferi não movimentá-la. Sei que, se alma de fato existe, ela se esconde nos olhos... Quando fitei aquela silhueta de uma serenidade assombrosa me retesei na cadeira. Não se tratava de beleza. O rapaz mirava o professor com uma disposição tão curiosa que as conjecturas começaram. Era inteligente, eu aposto! Tinha cara de quem já lera uma gama de livros, muitos dos meus preferidos inclusos. Na última fila de aposentos, via-o pelas costas coçando a nuca com certa frequência. As unhas meticulosamente cortadas, rente à curvatura dos dedos... Tão certinho, o moço. Organizado com certeza. Talvez chato quando invadiam seu espaço. Com o decorrer das aulas trocou algumas palavras com as duas pessoas ao seu lado que eu não me pus a reparar. Sorria de uma maneira infantilizada, dava vontade de abraçá-lo.

Em casa me senti estúpida. Amanda, sua imbecil, pensando numa pessoa que você nem sequer conhece só por uma troca de olhares que não preenchera sequer um décimo de segundo? Atrelada mentalmente à aparência de alguém somente pela imagem? Mesquinho demais! Mas eu eventualmente me cansava muito rápido quando me dispunha a autoflagelação e não demorou muito para que eu me flagrasse matutando formas de abordá-lo. Melhor, fazê-lo me abordar. Acordei cedo para passar uma camisa de banda, selecionar uns apetrechos meio nerds e trocar de mochila. Usaria a da época de colégio, cheia de broches e chaveiros. Em um olhar, ele seria capaz de saber tudo o que gosto.

Pela primeira vez não cheguei atrasada e tive a sorte de encontrá-lo num movimento peremptório de sentar-se perto do quadro. Eu jamais o faria em minhas condições normais, mas fui com minha timidez teatral tão bem treinada. Trocamos alguns olhares, mas ele não parecia interessado na ornamentaria que eu preparei para impressioná-lo. Num impulso de soberba soltei o cabelo, acertando-o propositalmente com o emaranhado loiro.

- Desculpa!
- Sem problemas... –
A voz era grossa, mesmo aos sussurros.
- Às vezes tenho que domar essa juba! – Ele deu um riso de meio lábio e se voltou para a Física. Muito inquietante o silêncio de quem não tem o que falar. Não me contentei:
- Você é daqui mesmo? – Minha voz estava tão plástica! Nem parecia eu falando...
- Não não, sou do Amapá.
- Ah... – Não fitei-o nos olhos para fingir desinteresse.
- Você é, não é? – Ele falou algo por conta própria, finalmente! Uma sensação de vitória preencheu meu peito e me senti vitoriosa. Manipuladora, forte! Tinha as rédeas da situação mais cedo do que me supunha capaz.
- Sou o quê?
- Daqui, oras.
- Ah, sou sim. Você veio só pra estudar?

- Sim, repeti o terceiro ano duas vezes. Minha mãe me expulsou de casa e estou morando aqui com meu primo. Enquanto termino o ensino médio, faço o pré-vestibular.

Esbocei um raspar de gargantas fingindo interesse. Não era culto. Não da forma como eu esperava. As unhas eram roídas e cospidas, fato que eu não reparei à distância. Ele se coçava tanto que parecia que uma mácula espiritual tomava conta do seu corpo. Sua letra de caderno-de-caligrafia me irritava. Por alguns segundos senti desprezo. Continuamos conversando durante um tempo e eu percebi que era uma pessoa determinada, na verdade eu estava me forçando sem muito empenho para ver algo de bom em Rafael (que disse seu nome antes mesmo de eu perguntar). Para o seu físico corpulento e escangalhado tinha uma personalidade até muito sensível. Falar de problemas logo no primeiro bate papo não é bom sinal, revela uma ingenuidade própria de crianças.

Quase deixei escapar um “ufa” quando o sinal ecoou. Voltei a sentar nos fundos, e me limitava a erguer a sobrancelha quando os olhares se cruzavam eventualmente nos intervalos. Como eu era patética por achá-lo patético! E mais ainda por não me incomodar com isso.

Pelo menos entendi. Fico apaixonada por personagens da minha própria mente, que porventura me pregam peças se escondendo nos olhares alheios. Talvez seja amor próprio, afinal...

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Carta para Melissa - Parte I

Ipatinga, 12 de Março de 2009.

Melissa,

Sei que desde a época do colégio eu só recorro a você quando estou em apuros. Tanto tempo passou, e eu deixei nossa amizade se impregnar com a poeira do esquecimento... Talvez você já nem more mais nessa rua a qual estou endereçando. Talvez nem mesmo no Brasil! Não me importo. Quero sentir a presença da amizade, do ombro cálido que afugenta qualquer mágoa sem requisitar nada em troca. Isso eu só encontro em você, mesmo que na abstração. Meu coração – embora sempre errante – acredita que você lerá.

Quando digo que tenho problemas, você certamente já sabe a fonte. Guilherme. Provavelmente está pensando na minha ingenuidade, em como padeço diante da malícia masculina ou algo assim. Pela primeira vez irei te impressionar, eu acho... Vou contextualizar: desde a formatura estamos juntos, quatro anos completos. Eu acabei por me adaptar ao seu jeito frio e desleixado, pois realmente o amava (ainda não sei bem como conjugar esse verbo). Certas relações somente se prolongam quando você aprende a se acostumar com o outro, embora pareça insensível eu abordar dessa maneira. Porém, a paixão um dia acaba. Os obstáculos não.

Não consegui encontrar forças para voltar a estudar e entrar numa faculdade. Trabalho como vendedora numa loja no centro. Minha avó faleceu, e a ilusória sensação de força que nos acomete nos momentos trágicos fez com que o filme da minha vida passasse rápido demais, abrindo espaço para outros problemas se instalarem. O drama começou quando descobri que estava grávida, e te confessaria se fosse de caso pensado. Enjôos e enjôos e tonturas e fraqueza... Ainda assim, fui pega desprevenida. Pensei em te ligar, mas tenho certo problema com telefones. Não contei para ele nem para meus pais. Algo em mim diz que o Gui pressentia...

Andávamos de mãos dadas. Ele, com a mão livre, segurava o guarda-chuva que sustentava a tempestade que castigava. O calor daquele sentimento podia disfarçar as lufadas gélidas de vento. Ou talvez essa cena melodramática seja fruto de minha mente que, como sempre, tenta me colocar na cômoda posição de vítima. O que importa é que era como um quadro. Um casal e a chuva. Um casal debaixo de um guarda-chuva. Um quadro tão sensível que em questão de segundos se desfaleceria.

Hesitou quando chegamos no portão aqui de casa. Sua face rígida parecia mais severa do que de costume. Tinha tanto tempo que não me manifestava irritadiça diante de seu conservadorismo que por um segundo me assustei. Os dois corações dentro de mim pareciam sincronizados, batendo fortemente. Guilherme não sabia da gravidez, mas havia algo de repreensivo eu seu olhar semicerrado. Mel, eu juro, ficamos nos olhando durante minutos! E então veio o ultimato. De sua boca as palavras saíram cruas, sem polidez, sem ornamentos. Suspirou e falou bem baixo “sinto que nosso amor acabou, e eu não estou disposto a viver com você mais” Eu queria chorar, fazer cena, encarar aquilo como uma costumeira briga entre namorados, mas não consegui. Você sabe que eu sou boa para dramatizar, mas meu talento me desapontou naquele instante. As lágrimas foram as gotas de chuva que salpicavam meu rosto. O homem do qual eu havia convivido por quase meia década virou as costas, e eu senti parte da minha história jogada no lixo do tempo como um brinquedo velho que se descarta. Deixou a aliança e levou o guarda-chuva.

Não consigo expressar como minha mente ficou confusa. Não queria usar a gravidez como álibi, mas precisava arrumar uma forma de abordá-lo a respeito disso. Minha família me questionava o que havia acontecido e eu fui evasiva, pois confesso que existia no fundo da minha alma uma fagulha de esperança de que tudo ficaria bem. Os dias foram passando e me mostrando o contrário. Sentia uma falta da presença do Gui que sugava minhas vontades. Fiquei apática, odiando a vida. Percebi que enalteci demais suas características ruins e pus de lado sua compreensão, a forma como ele sempre cuidava de mim quando, por exemplo, eu adoecia e a ira que o possuía quando alguém mexia comigo. Tente entender, era como se um pedaço da minha existência se descolasse. E então só restou solidão e angústia.

Quando repentinamente as lágrimas brotaram em cascatas violentas, bati a campainha de sua casa e contei-lhe sobre a criança. Gesticulava, pedia desculpas, proferia palavras de amor que nem cabiam num momento como aquele e me vi cobrando proteção. Ele foi generoso, e seu altruísmo me fez sentir ódio! Disse que ficaria ao meu lado, que assumiria a criança e a amaria. Eu queria que ele falasse sobre nós! Gritei coisas que nem lembro direito e saí de lá correndo, para me punir pela minha mesquinharia no meu quarto.

Agora vem a parte que, se você ainda morasse aqui, seria capaz de me bater. Entrei em depressão, e no dia que a gestação completava 3 meses pulei no rio doce. É, Mel, cheguei no ápice da insanidade. Tentei me matar.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Alexandre

Abri a porta num supetão enraivecido, ainda que não possa definir aquela sensação que me dominava como simplesmente raiva. Rangeu estridente, rasgando o atroz silêncio da madrugada como quem anuncia o desfalecimento de uma alma que se esvai de um corpo deteriorado. Olhei para a patética sala de estar. Os móveis que a guarneciam se distribuíam toscamente: o sofá torto, a mesa com cadeiras desfalcadas e os quadros empoeirados. Pratos, talheres, vasilhas e panelas se juntavam num motim em cima da mesa, refletindo não só uma ausência de limpeza, mas a exteriorização dos meus próprios anseios. Arremessei a arma no sofá, cuspi a mucosa úmida no estofado e me dirigi à cozinha.

Uma geladeira em cor pálida de musgo, um fogão pequeno e uma pia carcomida pelo tempo. Rachaduras desenhavam mapas nas paredes e no teto, onde plantas de pequeno porte criavam relevo com suas raízes tímidas. Agindo sem o controle de minha mente, liguei a torneira e me coloquei a observar o fluxo de água, trêmulo. Alternava a vazão da corrente, dos pingos de chuva às torrentes mais fortes. O titilar das gotas regiam a única sinfonia daquela noite.

Um sentimento de compressão no peito me retirou o ar, como se pedras de gelo inundassem o meu interior. Meus olhos giravam na órbita e eu tateava o azulejo enlameado da pia em busca de nada. O gotejar sereno se modificou num zumbido intenso, paralisando meus membros junto aos ouvidos e eriçando os pelos do meu corpo. Girei em torno de meu eixo em busca de alguma explicação visual, e me abstive em frente à torneira. A água estava rubra como sangue talhado, com a viscosidade de uma ferida gangrenada. Nada continha o jato escarlate.

Duvidando da minha própria sanidade irrompi pela casa e adentrei em meu quarto. Estava tudo vazio, apenas as camas e as paredes que tinham rombos circulares de tamanhos variados. Alguns pareciam feitos à mão; outros, esculpidos por balas de escopeta. Eu não tinha matado ninguém. Ninguém além de mim mesmo.

Há cinco dias atrás um revólver que parecia de brinquedo surgiu embaixo da minha cama e estranhamente cada dia ele se posicionava em um lugar – Na mesa do escritório, na janela, dentro do vaso de plantas sem vida... Outrora o carteiro o trouxe. Tentei levá-lo para outros lugares fora da casa e ele sempre reaparecia. Minha irmã conheceu-o naquele dia.

Sentei na cama e, debruçado sobre o joelho, retomei o controle da respiração e procurei me acalmar. Foi quando, na inércia da tranquilidade, senti a sola do pé umedecida pelo líquido agora violáceo que se esgueirava pelo meu aposento. Em frenesi, corri até o sofá cambaleando e empunhei minha defesa - a única coisa que me traria paz para me retirar daquele pesadelo descomunal. Necessitava de emitir o som, observar o dilacerar da carne.

O disparo se efetuou, rasgando o atroz silêncio da madrugada.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Orquídea

As gramas mal aparadas faziam daquele jardim um lugar ainda mais bonito e heterogêneo, sempre amontoado de insetos e pássaros em busca do âmago das flores. Gostava dali, pois era de uma falsa naturalidade muito aconchegante. Deitei-me e procurei ignorar a coceira que fornicava minhas costas. Com os braços estendidos e as pernas flexionadas, passei as falanges por entre as gramíneas arrancando as pontinhas já afiadas, lançando-as uma a uma novamente no acolchoado verde. O céu de um azul claro que muito me agradava exibia nuvens livres e velozes, que pintavam formas desconexas a cada segundo naquele manto divino de beleza inalienável.

O ócio não deveria ser bem vindo, já que precisava entregar vários trabalhos da universidade e à noite havia marcado um jantar com a nova namorada para conhecer seus antiquados pais. Ainda assim, vestia o pijama costumeiro e fingia ignorar os convites para o almoço. Essa sobrecarga de afazeres surtiu em mim um efeito antagônico ao esperado, afinal, nada disso parecia ter muita relevância naquele instante. Subitamente senti uma movimentação estranha na perna; uma formiga em sua ingenuidade de mera operária prendeu-se nos pêlos de meu calcanhar e me fez admirá-la pelas tentativas determinadas em se desvencilhar daquele emaranhado que, na visão daquele diminuto ser vivo, possivelmente se assemelhava a um verdadeiro labirinto. Depois de poucos segundos, cutuquei-a de volta ao firmamento. Certamente a esmagaria caso estivesse simplesmente caminhando num cômodo da casa ou mesmo na rua. Puro capricho.

As árvores assobiavam e se inclinavam em resposta ao vento, numa harmonia rítmica que não me surpreenderia se fosse copiada por alguma bela música já existente. Foi então que inclinei a cabeça e vi, no fundo do pátio, próximo a um balanço oxidado, um vaso que exibia uma majestosa orquídea. A miscelânea de cores em suas pétalas tornava-a um destaque iminente naquele cenário de natureza artificial. Os insetos se banhavam em seu pólen colorido e descobriam no âmago protegido pelas sépalas o regozijo da vida. Não havia flores ao redor.

E tudo aquilo, e eu, viemos da mesma matéria. Pensar em evolução fazia minha mente entrar num estupor que, se por um lado eu me sentia ávido pelo conhecimento, por outro parecia adentrar no vazio da insignificância. Nunca fui uma pessoa muito religiosa, preferi as explicações pautadas pela ciência, muito porque elas não exigiam que eu acreditasse nelas. Muitos falam que há falta de fé em mim, mas pensando melhor, para acreditar na evolução não é preciso muito mais fé? Pensar que todos os seres existentes hoje possuem um ancestral comum, e que as diferenças entre todos são derivadas, entre outros, da conjunção do ambiente com os fatores genéticos? É difícil aceitar isso vendo uma sequóia gigantesca, com seus ramos habitando tantos seres diferentes entre si: louva-deus, barbeiros, bem-te-vis, hemiparasitas, fungos e outros milhares de seres vivos infinitamente pequenos.

Fui até a orquídea e alisei-a com o indicador. Trazendo-a ao nariz pude perceber uma fragrância suave, possivelmente mais uma estratégia adaptativa para atrair os polinizadores. As coisas pareceram frias e mecânicas demais. Arranquei algumas pétalas e lancei-as ao orvalho, observando o rebuliço das vespas e besouros.

Um convite mais irritadiço para a refeição irrompeu da cozinha. Suspirei, procurei afastar aqueles pensamentos da minha mente e voltar a viver o mundo tão focalizado em mim mesmo, já que era tão mais fácil aceitá-lo.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Rosana

Os vizinhos provavelmente se empertigaram com o estampido provocado ao fechar a porta. Já era madrugada. Muito embora esse pensamento me ocorresse naquele momento - eu não me importava. Cravei meus dedos no pulso de Rosana com fervor. Ela sorria. A pele de um moreno que me remetia à madeira bem lustrada era como um convite. Seu corpo todo me chamava em uníssono. Mas havia silêncio. Um silêncio de compreensão mútua. Era como se aquela mulher previsse e desejasse cada um dos meus movimentos. Desejo cru. Quando a virei para mordiscar a nuca escondida pelos longos cabelos de caracol, ela envolveu meus braços sobre sua cintura, ensinando-me como explorar cada ponto sensível em seu abdômen. Respiração descompassada. Não poderia deixá-la com o controle, essas coisas devem se alternar. Girei-a e colei nossas faces confrontando os lábios sedentos. Senti sua língua ganhando vida e desejando explorar o além-boca. Não permiti. Avancei primeiro, desbravando aquela cavidade que me confundia as sensações. Era paladar? Tato? Sei que era dança, em passos que pareciam ensaiados por toda uma vida de paixões intermináveis. A música de suspiros – agora menos envergonhados - nos conduziu ao sofá. O leito da consumação. E cada peça de roupa que eu descolava de seu corpo, ora com a mão, ora com os dentes, era como estar cada vez mais próximo de encontrar o âmago daquela personalidade que me enfeitiçava. Ela compreendia, sabia o poder que detinha. Libertava-me da carcaça. Ali, eu me configurava como um verdadeiro animal. Corpos nus em contato, livres de preceitos, entregues à condição biológica de instintos e impulsos. Rosana... Nem despida me parecia frágil! Sua forma não era seca. Era professora, não modelo. E na maneira como ela exibia sua intimidade residia grande parte do meu êxtase. Fitava-a em sua condição primordial, analisava suas máculas e cada imperfeição era capaz de lançar ao ar sinceros gemidos de prazer. O divã não suportava aquela explosão de sensações. Tombamos, sem dor, no tapete ao seu lado. “Não se mova”, ao pé do ouvido. Beijei, mordi, lambi, arfei, senti o suor brotando de suas contrações agora violentas. O cheiro... Na tentativa de oferecer um antro de prazer, fui vítima de minha própria ambição. As volúpias eram mútuas. Diante disso, o tempo parecia nos dar uma trégua. Na atmosfera, o prelúdio do ato que no pensamento fingia se esconder. O seu ventre pulsava. A anatomia se mostrou receptiva ao permitir o encaixe perfeito. As zonas de maior prazer em contato. Em atrito. A dança em seu clímax. A sinfonia de uma sexualidade sem falsos pudores, apalpada e degustada para que se retirasse dela o que havia de mais hedônico. Os movimentos não-ritmados das peles em chamas. As vogais entoadas aos gritos! Onde dois se fazem um. E se fazem dois, e se fazem um...

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Conto sem título

E nos meus olhos sua imagem se configurou num quadro de outono. Sua aparência, antes mesmo da beleza, emanava algo de sagrado. Voluptuoso. E quando a solidão das noites quentes me abraçava em seus ventos de amor, era a sua silhueta de gestos simples e sorrisos cálidos que moldava cada um dos meus pensamentos. Quando as incertezas sobre o futuro criadas pelo platonismo de meu sentimento inundavam o íntimo, as batidas aceleradas em meu peito regiam a única sinfonia que quebrantava o silêncio nas trevas.

Não me esquecerei daquela tarde primaveril que foi palco do nosso primeiro encontro. Seu sorriso de um amarelo claro distribuído em dentes grandes não tão alinhados revelava uma timidez estampada numa feição esguia, de traços suaves e não muito decididos. Para compensar sua falta de jogo de cintura, falei sem parar sobre assuntos pouco interessantes. Contei sobre o passado, sobre os amigos, sobre os casos de outrora e sobre sonhos. Muitos sonhos: de constituir família, criar bebês que correriam em jardins verdejantes e viajar muito. Disse muito, e a resposta vinha em sorrisos grandes e amarelados. Aquele mistério me corroia.

Insistia que sua vida não tinha nada demais. Que viera de uma família de classe média e que trabalhava na redação de um jornal. Vestia-se muito bem, e estranhamente evitava o contato por telefone e encontros em lugares fechados. Culpava o cigarro. Com o tempo, depois de várias indagações repelidas por respostas curtas e diretas, a doença do amor manifestou um sintoma grave: a desconfiança.

Sem controlar meus atos com precisão (ao menos eu prefiro crer que foi assim), vi-me vagando pelas ruas e espionando sua vida. Não levava muito jeito para aquilo, bastava que virasse o rosto e eu estaria à mercê de seu julgamento. De alguma forma, por sorte, consegui espreitar até a casa em que morava e esperei do lado de fora, em busca de brechas para que eu digerisse mais informações sobre sua vida pessoal. A residência era simples e tão pacata que me lembrava por completo a vítima de minha espionagem. Uma casinha exatamente como aquela que as crianças desenham ao ingressar nas escolas, com apenas duas janelas e uma porta.

Alguns minutos se passaram e então um ruído ensurdecedor irrompeu daquele casebre. Um som pesado, encabeçado por uma voz que parecia possuída, fazia tremer o firmamento até os limites da rua. Nunca havia dito nada sobre o seu gosto musical aparentemente tão excêntrico em nossos poucos encontros. Aquilo perdurou por alguns minutos e os vizinhos, um a um, se prostravam enraivecidos na porta de seus aposentos, aos cochichos. Nenhum deles parecia realmente disposto a impedir aquela música que, embora eu não conseguisse sequer entender o que o vocalista balbuciava, parecia agressiva e num volume demasiado alto para as quase meia-noite que se completavam.

Bati na porta, com força, pois o interfone parecia inútil. Depois de alguns segundos, a música se encerra e o rangido da porta revela a mesma face esguia de horas atrás. Não me questionou como havia conhecido o lugar onde morava, mas deu um sorriso de meia boca muito diferente do costumeiro que me paralisou. Ao fundo, na casa, reparei que os cômodos pareciam pintados à tinta preta e não reconheci nenhum móvel, a despeito do meu campo de visão ser o suficiente para uma caracterização simplória de uma residência qualquer.

- Por acaso se perdeu? – vociferou, como se houvesse raiva naquela expressão serena. Algo me fez parecer que não me reconhecia, mas não falei nada. A síncope que me afugentara fazia com que meus pés tremessem e meu desequilíbrio era explícito. O sorriso de meia boca persistia.

Corri e não olhei para trás. Em casa, lavei o rosto e subi para o meu quarto, que estranhamente estava mais desarrumado do que de costume. Não me importei, apenas queria dormir para esquecer aquele estranho episódio. No meio da madrugada, o titilar estridente do telefone me colocou de pé na mesma euforia em que eu havia chegado. Eu não tinha dúvidas a respeito de quem estava do outro lado da linha, ainda que fosse alguém que não gostava de comunicações por telefone e que nem sequer sabia meu número. - Estou esperando você voltar. – foram as últimas palavras.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Zachariah

A água cai fria. Sopros molhados divergiam das nuvens que se aglomeravam numa colcha negra. Zachariah fumava, imerso em pensamentos. O carro, de um preto luxuoso que repelia toda a luz, seguia suas ordens contornando as sinuosas curvas da cidade. Viagem a trabalho! Uma gota de suor brotava logo acima dos olhos e desenhava um caminho tímido em volta de seu nariz, titubeando salgada nos lábios ressecados. Se ao menos pudesse escolher outra pessoa para fazer aquilo... Não, ele tinha sido requisitado. Se fugisse, enfrentaria sérias consequências.

– Sei muito bem que não é o tipo de coisa que você faria, Zach. Mas você sabe que essa é uma situação excepcional... Muitas vidas certamente serão poupadas. – balbuciou Esther, abrindo uma fresta do vidro para que a fumaça do cigarro escapulisse. Sua voz, porém, não arrancara nenhuma mudança de expressão no companheiro. Voz que por um momento soara plástica e desinteressada. Ela não entendia nada, afinal. Não era ela que poria de lado sua ética de profissional e sua fé em nome de uma chantagem! Cravou os punhos com mais força no volante. Pulverizou o cigarro nos dedos. Um suspiro morno revolvia seus pulmões e era exalado pela boca. Um sopro de silêncio.

Trancou a porta do carro sem entusiasmo. Fitou a lataria fosca, conferindo como estacionara. Esther olhava-o com aquela preocupação doentia que o fazia desejar que a menina sumisse. Cerrou o olhar apreensivo e se dirigiu ao casarão no fim da rua. Pilastras ornamentais, alvas e com trepadeiras jovens alicerçavam o que mais parecia uma mansão grega. Aquele luxo o enojava. Janelas do tamanho de portas se gabavam do interior da casa, estampando para quem ousasse olhá-la uma riqueza agressiva, que deixava claro em cada móvel não ter sido fruto de histórias familiares honestas. Seus passos eram lentos, a respiração arfava em chiados de angústia. A companheira resmungou duas palavras que o doutor confirmou sem se preocupar sobre o que se tratava. A campainha era estridente, como se precisasse ecoar em todo o bairro para avisar que chegaram visitas.

– Doutor Zachariah! Por favor, entre. – a voz de tenor, falsamente receptiva, quebrara o silêncio. A porta ainda estava fechada. Empurrou-a lentamente e viu a silhueta de seu algoz bem diante de si. Olhos que se comprimiam em linhas finas, imitando a boca de um rosa doentio salpicada de cascas. O cabelo grisalho crescia tímido. Havia uma aura maliciosa que facilmente se detectava, contornando o fanfarrão. Esther vislumbrava aquela atmosfera de nobreza mórbida com sua usual displicência. – Não faça tantas delongas, sua paciente está logo no fim daquele corredor. – o velho bradava. Queria correr. Suas pernas pareciam não respeitar seus impulsos de fragilidade. Seguiu, sem triunfos.