domingo, 21 de fevereiro de 2010

Victor

A mãe foi relapsa. Utilizou-se duas mãos para analisar o xampu que prometia alisamento imediato. Livre, a silhueta diminuta do rapaz podia se desvencilhar daquela multidão. Sua mente infantil não compreendia como tantas pessoas se reuniam num mesmo lugar para comprar coisas tão desinteressantes. Arroz, açúcar, manteiga, óleo... Não fazia sentido. Então, na primeira oportunidade de escape, parou apenas para pensar se levava o carrinho ou não. Balançou a face rosada num sinal negativo para si mesmo, não tinha forças para empurrá-lo. Ainda assim, faria daquilo uma aventura. Seria um herói mesmo sem carrinho. Cogitou dar um beijo na mamãe, mas sabia que fazê-lo estragaria tudo. Colocou-se em posição de largada, contou até três em um segundo e correu. Em seu caminho, pernas surgiam como arvoredos dos quais ele precisava se esquivar de maneira teatral. Contornava-as, passava por entre elas e urrava em vitória a cada progresso. Fez com que as pilastras que o obstaculizavam abrissem espaço para ele. O chão era liso, fácil de atingir a inércia na velocidade. Outras crianças olhavam-no com uma curiosidade que alimentava seu ego já inchado.

No instante em que o vento que margeava a rua refocilou-o no suor, banhou-se no alívio da liberdade. Admirou o céu, ergueu os braços e se reconheceu como vencedor. Os meninos da sua idade, em seu julgamento, nem de longe eram tão fortes e rápidos. Franziu a testa imaginando como contaria para seu vizinho, que com seus quatro anos mais velhos sempre tinha histórias fascinantes para relatar. Certamente ornamentaria da maneira mais dramática. Podia dizer que o perseguiram, que ele lutou contra os seguranças corpulentos e desarvorados. Só de imaginar, um sorriso brotava-lhe na feição. Respirou fundo. Suspirou. Olhou ao seu redor. Entrelaçou os dedos por trás da cabeça. Havia um parque no meio da praça.

Os balanços estavam vazios. No ímpeto, as pequenas sandálias se deslocaram de seus pés. Acomodou-se. O gancho da corrente arranhava na ida e na vinda. Rangido confortável. Bocejou. Estava tudo tão vazio que não tinha muito sentido em exibir sua libertação. Flutuou com os pés em cima da cadeirinha. Abraçou os joelhos e fechou os olhos. O que era aquele sentimento? Parecia que duas mãos fortes espremiam seu coração...Pensou que estivesse sendo punido, mas resistiria. Voltou-se à praça. O calor o irritava muito. Quando ia à praia, sua mãe sempre o impedia de sair correndo ao mar logo quando sentia a areia sobre seus pés para, primeiramente, banhar seu corpo no protetor solar. Procurou afastar a imagem materna de sua consciência e limpou as gotas de suor com as mãos rechonchudas. Criou círculos no chão de terra com seu indicador. O astro-rei, objeto de quase todos os seus desenhos, ganhava vida na arte daquelas mãos. Passaram-se minutos naquele torpor, embora o tempo parecesse paralisado. O badalar do sino da igreja invadiu o garoto com uma nostalgia triste. Abaixo de si, uma sombra humana que tomava grandes proporções fez o seu pequeno sol se transformar numa lua negra. Empertigou-se.

- O que faz aqui sozinho, querido? – Os cachos loiros daquela mulher mais pareciam douradas serpentinas em infinitos caracóis. Um sorriso pequeno de lábios curvados escondia os dentes. O olhar extremamente redondo envolvia uma pupila negra, como as rosas escuras que havia no jardim da casa do garoto. A casa... Por um instante desejou sua proteção inviolável. Mas era tão bonita, aquela moça! O que é externamente belo já é capaz de encantar a alma de uma criança. Sua mãe às vezes era muito rígida, severa. Não crescera para compreender que a preocupação é a mais tenra expressão de amor.

- Não me olhe com essa desconfiança! Venha, há outros brinquedos mais legais logo ali. – Entrelaçou seus dedos com aquela pele fria e desconhecida. Tentou romper o elo, mas estava muito fixo. Papai do Céu já pintava o mundo de laranja, anunciando que a noite não tardaria. Victor odiava o crepúsculo. Sem que o pequeno menino notasse, uma forte lufada de ar esvoaçou os grãos do firmamento. O sol se desfez.

3 comentários:

  1. intrigante, isso sim!
    adoro finais q sao flexiveis, cada um pode deduzir o que quiser.
    pra mim o menino foi sequestrado auhauhauhauhuahuahauhauha
    talves por uma mae q tenha perdido um filho q viu semelhança no victor e quis pegar para cria-lo, vai saber...
    me surpreendeu um menino tao jonvem como pareceu ser no conto refletir tanto, este vai envelhecer cedo, sem duvida.
    adorei!
    ;*****

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