quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Lábios de Lodo

Eram nos seus lábios de lodo que eu encontrava o sorvedouro daquele torpor. Um torpor de líquido azedo, de gangrena ácida. Que se alastrava por cada palmo de meu corpo. E de tremores extasiados na nuca seca. Naqueles lábios de ranhuras tantas, de digitações tamanhas - como fendas num campo virgem. De carne e carne e deveras carne rósea a ser inflamada pela chama do animal humano. E degustada e sugada até o lúmen da insanidade. Porque não havia mais nada senão aquele momento, aquele instante que alongava os segundos. Mas encurtava a vida. E creio que todos deveriam se voltar para nós dois, observando a proeminência de nossa entrega mútua à essência da qual germinamos. A semente do pecado que nos envolve em sua casca podre, as ramificações do que é errado e circula em nossas veias senis. As raízes do nosso amor que se fazia amor só no silêncio de cada beijo áspero: a traição.

Ali, nos prensávamos numa quina de parede. Eu com a mão espalmada. A parede gelada. A cabeça encurvada. E a postura... A postura de completa resignação, de clemência por misericórdia. Misericórdia divina? Mas se há Deus para todos, há para os traidores. Não fora ele quem nos ascendeu ao pecado? Talvez em busca de minha própria misericórdia, então. E crispávamos nosso lábio num só nó, cego, que não avistava o fim da noite. E ainda assim faltava fôlego. Aquela secura na garganta que precede a dor. Afundei a mão direita e puxei-lhe os cabelos desgrenhados para mais desgrenha: pois eu era uma bagunça só. E talvez eu projetasse ali o meu infortúnio. Eu provava do que eu era. Eu afundava nos mares de sua intimidade para me conhecer. Aos meus limites, às feridas tantas que se esconde por sociabilidade e que são proibidas de boiar e respirar. Às cicatrizes mal feitas e latentes. Latejam rente ao ouvido na pulsação eufórica. Quero que a dor passe.

Amor... Quem virá me falar de amor? De amor puro? Quem virá falar de fidelidade para alguém que nunca foi amado de fato? Quem ousa evocar honestidade sem vestir a carapuça que é essa desgraça de corpo e de mente que me encarceram? Pois que julguem! Que gastem toda a saliva para proferir os mil júbilos de má fé! Fingirei que não me importo. Melhor, perderei mais tempo mordiscando essa boca gorda para não pensar nisso. E para provocá-los e me provocar e provocar essa organização turva que alicerça a existência que já nasce morta brincando de viva. Não sei se nasci pra conveniências, pra coisinhas pré-determinadas e regras inquestionáveis. Se um dia eu me atrelei nesses compromissos, hoje me arrependo. O que tenho não é só para uma pessoa. Há força demais dentro de mim para eu desprender numa silhueta só. Há chamas demais que me queimam para uma pessoa só me salvar. São tantas e tantas cadências. No meu passado – tantas saliências. E reticências. Há em mim um céu de covardia tão lindo. Sou covarde...

E o fim do beijo.

Eis o efeito colateral: o que antes era belo exala um cheiro enojado. Diálogos toscos, frases de prontidão. Eu quero logo é o silêncio profundo. A calmaria que a solidão dá, antes do martírio da consciência. Sentei no chão e cobri os joelhos com as mãos suadas. E a corpulência toda se reduz a uma esferinha de homem. E o suor das mãos sinto também no rosto empalidecido de um medo cru. O suor de um quente culpado. Culpado... E o celular toca:

Eu atrasei no serviço, meu bem. Em meia hora estarei em casa.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Guardanapos - Parte III


- É... – e dois extensos segundos se passaram – acho que nosso lugar no inferno está garantido!

E foi dobrando e dobrando e dobrando até que o guardanapo tornou-se um pequeno quadradinho. Guardou no bolso da jaqueta. A mulher, que seguia o papel se diminuindo nas mãos de cera do homem, não sorriu. Como se nem ao menos tivesse ouvido o que João Paulo dissera. No entanto, ouviu para muito além do ouvido. Retiniu no crânio e borbulhou na mente. E questionou-se sobre inferno, coisa que nunca fizera em vida. Era coisa pra mortos se preocuparem - seu costumeiro ideário. Mas o inferno lhe pareceu tão convidativo! Nele, os pecadores não a mirariam com olhos de julgamento. Com aquela expressão de sobrancelhas mortas e lábios crispados em meia lua que tanto odiava. A piedade estampada nas feições... Afinal, seriam pecadores como ela! Ou, se olhassem de um jeito pedante, ela também poderia fazê-lo. E fez, para a mesa que viu na sua frente, imersa em suas conjecturas fantasiosas. Naquele instante o inferno configurou-se como talvez a única expressão de liberdade que ela poderia sorver. Porém, não pensou em morte.

- Acho que você precisa de cigarros... – murmurou para si, derramando um maço inteiro diante de Gabriela – Fume e diga alguma coisa, moça.

Havia mais tempo. Ele lhe dera mais tempo. Sem cerimônia, fumou a tragadas fortes. Permitiu-se contemplar a paisagem que bordava pequenas linhas vermelhas e costurava o céu, ainda lutando para fortalecer o tom azul tão prematuro. Mais um dia e ela nem dormira. Alguém encerrou a música que se repetira durante horas nos fundos do bar. Uma gorda surgiu, quebrando a dualidade daquele cenário. Lavava pratos sujos sem muita paciência, o rosto carrancudo. O som da água arranhando a louça era a nova sinfonia daquela cena.

- Não tenho o que dizer. – pontificou, com a voz impregnada de uma rouquidão áspera que nem ela mesma se sabia detentora.

- Conte-me sobre como isso tudo ocorreu, então...

A gorda rangia os dentes. Dois barulhos: os dentes e a água. Os dentes e a água... A torrente alternava a vazão numa lógica incompreensível. Gabriela pôs-se a fitar a torneira enferrujada. Como queria um banho! Pensou que talvez pudesse ser como uma daquelas louças. Que debaixo da água, despida de quaisquer pudores acerca de suas máculas, pudesse se purificar. E que a exibição das tantas feridas fosse, em suma, a penitência que a limpeza exigiria. Mas ela teria que lavar a si e a outros. Pois pecados não acinzentam a alma apenas do pecador. Há a vítima. Vítimas. Vítimas que já se foram e que então não poderiam ser simplesmente lavadas numa água sacra. Que glosa ingênua, a que perpassara seus pensamentos... Elas estariam no inferno, essas vítimas? Voltou a caricaturar o inferno. Só conseguia pensar em fogo e cinzas. Desconhecia o cheiro de enxofre... E a simples ideia que ela ouvia no subconsciente fugia por todas as quinas da consciência. Ela não queria pensar. Não queria enfrentar. Uma pergunta que ela nunca poderia se fazer: teria mandado dois filhos para o inferno? E antes de concluir já imaginou um acervo de respostas. Não! Claro que não! Eram apenas fetos, o que poderiam ter feito para merecer o inferno? A voz da mãe ao pé do ouvido: quem suicida, quem nega a vida e a benção de Deus, tem um destino muito claro...

- Mas fui eu quem os matei! – vociferou de imediato, afundando as mãos nos cabelos curtos em impaciência.

A gorda olhou de soslaio. Nem uma nesga de reação - provavelmente não ouvira com detalhes. João Paulo pareceu interessado naquele torpor eufórico, mas ainda assim sorria. O cenho franzido. Gabriela se deteve naqueles dentes pontiagudos... De cobra. E aquela brancura lhe pareceu diabólica. E voltou a desconfiar com o fastio de sanidade que lhe invadia. Não se lembrava direito como aquele indivíduo surgira há algumas horas atrás, tampouco no que o fizera sentar-se ali, tão próximo em sua distância. Ele estava sorrindo. Estático. O casaco de couro curtido era entrecortado por feixes de luz matutina. Havia algo nele de atraente. Porém perigoso: e talvez atraente por isso. Uma identificação entre duas almas corrompidas e malignas. Que mesclava no mesmo caldo sujo pecados inconfessáveis já confessados. Um líquido de que ela poderia embebedar-se e banhar-se e afogar-se sem medo. A purificação pelo avesso. Pois ele deu a ela algo que ninguém jamais ousou. Tempo. Pela primeira vez Gabriela olhava os ponteiros do relógio na parede sem sentir aquela dor inexplicável que ceifava seu peito. E lacerava seus dias com as lágrimas tantas. Não sentia fome ou sede. Senão a fome de liberdade e a sede por misericórdia. Os ponteiros revelavam a iminência de algum juízo final o qual ela não poderia ser submetida. Ali, naquele vórtice ilusório, sentia tranquilidade. E uma vergonha incipiente. Já que ele estava bem ali, o dono de seu tempo, e ela respondia somente com silêncio – sem saber que esse mesmo silêncio era sua maior paixão.

- Podíamos sair daqui. – e apontou para a gorda com uma leve inclinação de cabeça - Não falarei o que houve nesse lugar. – desdenhou, retomando a vivacidade do rosto e dos lábios já fendidos de secura.

- Por mim tudo bem. Eu estou de moto, posso levá-la onde quiser.

- Vamos para a minha casa.

Ele acenou, agora mais sério. Ela, em síncope. Pela primeira vez se fez vítima de um olhar tão penetrante. E cogitou cenas. E só cogitar doía. Sua cama estaria arrumada? O homem colocou-se de pé e pareceu-lhe muito mais corpulento. A feminilidade em ebulição. Fervilhava a garganta.

- Não tem problemas com moto? – um roto cortejo?

- Nenhum – uma talvez mentira.

- Vou buscar a moto e espero em frente o bar, então.

Gabriela concordou. Quando a silhueta de João Paulo sumiu nos corredores, a mulher pôs-se a catar cada cigarro da mesa e afundá-los em sua bolsa com a gesticulação própria de um esfomeado. Aprumou o busto, retocou com cuidado o batom carmesim no vidro embaçado e ensaiou algumas palavras incisivas. Uma risadinha de impaciência consigo mesma. Quando enfim levantou, notou que o companheiro esquecera uma pochete no banco em que estava acomodado. O zíper entreaberto a impediu de ignorar: um revólver.

Pegou a pochete e foi. Como uma ratazana à caça.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Memórias Amargas


- Você não vai ver seu pai, Matheus?

Que chá amargo! Como um rio furioso que dissolve suas margens - minha garganta. Esse chá amargo. Portanto bebo-o devagar. Um gole, três ou quatro pensamentos. Tem muito chá nessa xícara gorda! Poucos pensamentos, na mente vazia. Então os mesmos se repetem. E se repetem... Duas bolachas de queijo. Beberico, mordisco. Queijo enjoativo!

- Todos os seus parentes estarão lá...

Levanto-me num supetão desengonçado. Precisava de música! Uma frequência qualquer numa rádio qualquer. Samba? Até que está bom... Poderia sorver aquele som ao mesmo tempo em que respirava. Inspirava, expirava. O diafragma se contraindo descontroladamente. Sinto como se a quentura do chá amargo fosse incapaz de desfazer a gélida sensação que preenchia meu interior. E que fazia até o chá parecer frio. Além de mim. Tombo a cabeça ao assoalho. Pendulo no eixo encarando meus próprios pés. E pendulo... O samba no clímax. Dois passos pra lá, um passo para cá. Em qual mês mesmo foi o desfile das escolas de samba? Quem venceu? E os passos me levam à janela. E me debruço.

- Vão perguntar por você. Acho melhor desligar o celular.

Lá na rua poucos transeuntes. Há uma mulher com uma sacola grande. Meio verde... Penso que são frutas. Toda em forma de ameba, ela. E atravessa... O sinal também verde, mas não há carros. Nem mesmo um barulho de cidade. Apenas o samba. O cabelo encrespado num coque, posso vê-lo agora que ela vira a esquina rebolando. Seriam mesmo frutas? Vou até a mesa e desligo o celular. Apenas hoje não quero a voz de ninguém. Nada de parentes me aborrecendo. Nada de amigos. Nunca os tive e agora eles aparecem...

- Não vai demorar muito até que venham até aqui...

Mas que merda! Não entendo essa mania de me perseguir! Todos fazem o que querem, no momento que querem. Quem são para me julgar? Meu irmão não dá as caras há anos. A irmã, fugiu o quanto antes para o exterior... Quem são eles para falarem qualquer coisa que seja comigo? Eu já nem ouço mais o samba... Esse ódio fulminante retumbando no crânio. Dor de cabeça... Desgraçadas, essas normas de boa conduta. Volto ao chá. Amargo!

- Mas você passou tanto tempo com ele!

Alguém cala essa voz! Não adianta balançar a cabeça, esmurrar a parede. Já tentei... Por favor, alguém a cale! Imploro! Eu sei que passei muito tempo com ele. Lembro-me muito bem: horas e horas fitando aquelas paredes brancas carcomidas pelo tempo. O assoalho de porcelana refletindo qualquer coisa. Sentava-me na cadeira branca, a olhar para qualquer coisa. Já não tinham revistas antigas que eu já não as tivesse lido por inteiro. E meu irmão cuidando de sua familiazinha de etiqueta. A caçula usurpando algum otário por aí. E eu lá... Meses e meses a fio.

- Tenho certeza que ele gostava tanto de você!

Cale a boca! Cale! Já fazia mais de um ano que ele nem sequer olhava-me no rosto. Não sabia quem eu era. Chamava-me pelo nome de meu tio, de meu irmão. Até pelo nome de minha mãe! Quando as complicações mais sérias surgiam, ele dizia que eu não cuidava bem dele. Que eu era um estorvo, uma despesa que deveria ter sido abortada. Eu olhava resignado, no esforço de não tampar os ouvidos. Com o olhar cético de um resignado complacente. E como aquilo doía! Todos os dias, ao acordar, rezava – mesmo sem Deus e sem fé e sem amor – para que ele ao menos pudesse me abraçar em sinceridade. E eu perdoaria tudo. Bastaria um abraço... Apenas um.

- Essas complicações acontecem...

E o abraço nunca veio! Não conseguia se mover, nem esboçar qualquer reação diante do mundo. Nenhuma lágrima fluiu de meus olhos, eu simplesmente sentava e pegava uma revista. Fingia que lia. De meia em meia hora olhava-o, desconfiado. Esperava uma reação milagrosa. E ao mesmo tempo preferia-o quieto. Em primeiro plano, que a memória retornasse! Os enfermeiros entravam e saiam trocando olhares comprimidos, um ou dois suspiros. Larguei o emprego, a dedicação precisava ser integral.

- E você não queria...

Evidente que não! Quem quer desprender horas e horas de seu tempo para cuidar em vão de uma peça humana que se reluta em morrer de uma vez? E todo momento em que penso nisso, um silêncio tenebroso envolve-me como um manto. Fúnebre em toda a sua extensão. Mas ele era um cadáver vivo, e nada mais.

- Você desejou.

E não posso vê-lo nesse velório, sabendo disso. Ele não me deu um simples abraço que tanto esperei. E eu não o verei. Afundo em amargura, apodreço em azedume. Esse fardo é eterno. Mas, enquanto houve tempo, eu fiz o que pude. E sei que ninguém jamais reconhecerá.

- Tudo bem. Sente-se. Beba outro gole de chá.