segunda-feira, 25 de junho de 2012

Semiótica

Na calçada há dois pés sem pressa em passos e delongas: eu, a conjeturar um mundo onde não há espelhos. Não acredito que não more nos reflexos um mínimo de dor, quaisquer reflexos. Qualquer dor. É a sina, o sinal sobre o qual me delimito solenemente no espaço, no tempo sem sol que ainda assim me contorna com dedos de luz, a meu ácido contragosto. O corpo que reflete no vidro sujo e no vidro limpo e no vidro do carro é uma estratégia que o primeiro olho inventou para compactar o que há de mais desumano nos traços humanos – a vida, num sentido maior que apenas o amor lhe designa. Alguns resumem esse fatídico cárcere sobre a alcunha da beleza, conceito feio. Digo isso a mim quando vejo suas fotos e há nos seus traços poeira minha que é quase membro de tão densa, tecida no espectro vasto em que mora a raiva dos dias finais e de tantas outras horas fora desses dias. De agora, de um segundo atrás e dois também. Admiro as fotografias não admirando você, e sim a mim enquanto irradiação de você. Admirando você. Porque não haveria como eu me deitar contigo, no escuro onde os corpos podem se expandir para a ilusão da forma completa (e o que todos buscamos em caminhos propositalmente sinuosos é sempre algum subterfúgio de ilusão), sem lhe transferir algo de mim que eu não sei onde fica - mas que é núcleo vermelho vivo voraz, cheio dos componentes abissais que me compõem vitral torto mas de casca hígida. Os nojentos e execráveis componentes que atribuímos um carinho tolo de propriedade, de tesouro único. Então quando a vitrine me mostra como um manequim tosco de semblante vazio não sou aquilo mais do que eu sou a moldura dessas fotos, bege e velha. A tentativa de contenção dos momentos pelas bordas. Inútil! Eles envelhecem pelo centro, em fogo lento... Meus olhos castanho-mortos que piscam em demasia para apressar os ponteiros são menos minha visão em se tratando de alma do que a máquina que registrou esses lapsos, trancada em gavetas que também existem dentro de mim, a revelar a vontade ímpar de traduzir a felicidade rara numa memória embelezada, tresloucada na aquiescência dos apaixonados. E nas minhas mãos que cerram pulsos de falsa misericórdia creio que os átomos sejam na maioria seus, dos toques de carícia aos tapas de fúria e de sadomasoquismos tão nossos. O cheiro desses átomos parece eterno, já arrastado por toda a extensão de pele, de carne e ossos. Percebo que as palavras cuspidas e vociferadas de separação não são o suficiente, porque as palavras também são pacotes limitados que comunicam raramente em veracidade o que nem sempre sentimos, e no nosso caso algo mais definitivo seria necessário para desfazer o laço e os nós que há no laço. Nós. Pois apenas eu lhe enxergo em totalidade, ou talvez também os amantes. Eu, um deles. Não deixo de sorrir e descolar os lábios crispados quando os signos tantos me congratulam como seu mais antigo criador. Eu também ajudei a criar você, fui Deus de pequenos fragmentos teus.

Eu na moldura, no espelho, em mim – apenas no que sempre cresceu comigo; em você, onde o meu atrito fez sombra cicatriz; nessas fotos, nos silêncios, no vento que sopra na janela e imita a nota de uma música, na lembrança do sexo, no para-brisa do carro, na rede do quintal, na macieira do quintal, na caixa de entrada do e-mail, na mochila. Você na parede, na tesoura de cortar unhas, também nas fotos, na escada do prédio que subíamos em sorrisos (memória que me resguarda quando deito), no quadro pobre comprado em dia de preguiça, no tédio que remete ao tédio em companhia, nos segundos (o que me obriga a te amar, enquanto o mundo for feito de segundos), no aroma das páginas de todos os livros, nos papéis ferozmente rasgados daquela bem intencionada carta, agora já deteriorada em algum canto de terra; nos suspiros, em você, na harmonia que sempre te rege; em mim, nessas lágrimas...

E não há nas pessoas um objetivo tão primordial como a busca de se organizar para se encontrar novamente em contornos e compactar-se novamente ao corpo, assim fica mais fácil dar passos. Por não conseguir reunir e recolher o que existe de mim nessas quinas e curvas (já que muitas vezes me deparo com você), vaza pelos dedos qualquer longínqua ideia de estrutura. Faz poça no chão, reflexo verdadeiro. Há fatos gotejando pelo mundo, e enfim independo da memória para eternizar nossa fusão, meu intento. Abraço o vazio como quem compreende o que há para além da razão. E só assim consigo Ser.