quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O Maestro e a Bailarina


Três semanas... Três semanas e eu ainda não havia entregado o buquê.

Pouso meus olhos sobre a plástica capa que o cerceia. Há pequenas gotículas negras... Não digo que acordo. Não durmo. Levanto, porque os feixes de luz me incomodam. Esquentam as ranhuras das sobrancelhas. E quando volto a fitar as pétalas carcomidas, adormecidas na base da janela, deprecio sua aparência ao dar vida a um suspiro quente e lúgubre. Aquelas gotas eram gotas de quê?

O tempo, o frio, o vento... Mesmo na base da janela, o que havia esfarelado a haste verde antes tão rígida? Com espinhos antes tão incisivos... E vem uma lufada de agonia a contrair meus músculos. Uma constrição no peito que dói, muito! Ele precisava viver! E se não estivesse vivo – pois não sei quando um vegetal morre –, só me bastaria fingir. Não vejo com clareza a linha que separa minha vida de uma mentira viva. E com a falsa disposição de um bom mentiroso, tomo-o entre minhas mãos enlameadas de suor e vodka. Protejo-o...

Ou seria o contrário?

Mas o caminho era, embora curto, deveras pedregoso. Comumente, detenho-me no próximo cômodo. Os ombros arqueados, a respiração em frêmitos. O olhar fugidio a buscar abrigo na pequena sala de estar, outrora tão acolhedora. O olhar fugidio que cedo ou tarde decai sobre aquele armário. E decai, e decaio. Eis o móvel de sucupira. Majestoso, imponente, como se me enfrentasse pela milésima vez, já certificado de sua vitória. Ocupava dois terços da extensa parede que se alinhava à janela do lado oposto. Poucas gavetas porque não havia o que esconder: tudo estava bem ali, todas aquelas fotos que costuravam com o tecido de minha alma as memórias que minha mente lutava em afogar nas águas turvas da miséria que eu era e sou. Cerro os punhos ao redor das flores já frágeis e observo, resignado como um mendigo diante do almoço sujo, algumas pétalas pendularem até o chão, cristalizadas na morte. E invejo-as, pela profusão da liberdade que aquele fenômeno representava. Partir e partir-se sem dor. Num silêncio etéreo e absoluto. Talvez... Talvez fosse possível.

Imberbe no cenário florido de suicídio, retorno. Sou desse mundo. Desse mundo sou carne e dessa carne sou dor e dessa dor, prazer. Dor e prazer, miscíveis em cada lágrima desprendida e em cada sorriso de derrota. Pois não consigo desatrelar os motivos que me mantém vivo do sofrimento que minha vida transpira. O sofrer é o único meio de me conectar ao que eu realmente sou. A única forma de me exteriorizar e me reconhecer em meio a tantos desconhecimentos e estranhamentos como verdadeiro controlador do meu corpo. E que aqui me reteso, com os ombros ainda mais arqueados. O inevitável: retorno às fotos.

O que me surpreendia nela era que tudo o que a compunha era dança. Quando me atento ao porta retrato no centro, em que ela se abria toda para um sorriso e enforcava-me num abraço de veludo, sou capaz de vê-la em cada um dos seus movimentos tão penetrantes, ainda que delicados. Seus cabelos, os passos serelepes a correr ao meu encontro. Tudo era dança. E eu: o esquálido maestro. Suzane era a personificação de tudo o que compunha o meu paraíso. E nesses momentos que busco na minha memória seus atributos tantos, odeio-me com fervor por saber que algo dela eu estou perdendo. Que o tempo leva de mim, aos poucos, cada fragmento de sua vida breve. Porque no fundo eu sei do amor, sei que fui inflamado. Mas há algo faltando! Já não tenho certeza se lembro de sua voz. Depois de inúmeras noites esbaforindo-o, e quase bebendo-o, o perfume se esvaziou por completo e seu aroma se foi. Sei que era de flores... Qual? Mas as imagens estavam ali... E jamais sairiam.

Nossa paixão consumiu-se num fogo de chama única. Embebidos na euforia doente que acomete os apaixonados, decidimos por dividir uma casa. Essa casa. Esse espaço que foi do leito de intimidade ao covil de um caixão escuro. E vivemos dias raiados em beijos e beijos... Que secaram ao longo.

Pois a dança findou-se. Quando irrompia pela porta da casa, já não se abria em sorrisos. Já não corria ao meu encontro. Algo fragmentara os alicerces que a sustentavam e a semente desse mal desgrenhava suas raízes a cada dia. E nessas raízes que germinou o cerne de meu martírio: pois nada fiz, nada falei em consolo, nada expressei em preocupação. A mulher que eu considerava perfeita chorava de madrugada, na cama ao meu lado, e nem sequer um questionamento sobre seu estado saíra de minha boca rachada. Eu simplesmente dormia. Ranheta, por completo. Com os olhos titubeando nas periferias, eu tudo observava, mas fulgurava dentro de mim um medo que me deixou estático. E os pensamentos cômodos tantos (Devia ser uma fase. São coisas do serviço dela...)! E as engrenagens do tempo, implacáveis, não me perdoaram.

E a saliva ácida corrói a base da minha língua. Quando me coloco aqui, diante desses portais do tempo que são essas fotos. Portais de lembranças somente minhas, onde somente eu sou responsável por sua existência. O que significa que basta eu deixar de existir, e que a música que movia a dança de Suzane se esgotaria por completo. Não, ainda que fosse essa melodia triste, não podia interrompê-la! E era por respeito – e mais num autoflagelo de pura soberba – que eu precisava entregar aquelas flores. Mesmo mortas. Mesmo ela morta.

Eu não, mas ela liquidou o sofrimento, com uma faca a ceifar seu próprio pescoço. Trêmulo, passei dias vagando como um completo zumbi humano. Fétido como um. Sem sinais vitais expressivos, desejos ou sonhos. O laudo do Instituto Médico Legal alegara que, semanas antes do incidente, minha futura esposa tinha sofrido um abuso sexual. E afundando mais no mar de minha própria covardia, não procurei saber mais nada sobre o ocorrido. Cheguei a me convencer (e ainda penso nisso como algo plausível) de que tudo era um engano.

E desde então, da cama suja para esse cômodo. E nada mais. Das vodkas que me sequestram dessa realidade maldita para os tapas na cara que esse passado aqui desenhado me desfere. E muitas dores que não me causam dor. A pele quebradiça que me reveste já se pode ver margeando os flancos de músculo. Era um nojo pensar em comida. Mas o nojo maior sou eu. Encurvado feito um animal tendo piedade de mim mesmo. E a carne esfarelando. Nos pensamentos mais sórdidos que me circundam, percebo: nunca a amei. E não a amo, ainda. E talvez nunca ame ninguém. Porque todo aquele culto a sua imagem era um amortecedor para a minha consciência putrefata. Pois de nada vale a paixão sem coragem. Já que é, em sua totalidade, fruto de uma obra esculpida pelo tempo para que fique intacta. Eu, maestro patife e escultor torpe, concluí a obra cedo demais. E ao perceber isso, rendo-me:

Deixo as flores padecerem ao chão. E vou junto.