quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

O purgatório é o corpo

por André Amaral

Voltando do escritório, depois de transar com o chefe, Valéria pôs-se a contemplar os pingos de chuva que dançavam no vidro escuro da janela do táxi. Pensava nas últimas palavras ditas pelo homem, quando cavalgava sobre seus gritinhos e umidades. Veja-se no espelho, Valéria. Veja-se no espelho...

Viu-se.

Nasceu o último filho do silêncio. Ele era como uma criança estupefata da primeira tristeza. Como uma velha que mareja os olhos antes de ver os filhos pela última vez. Todas as barras de ferro que um dia pensou ser a sua estrutura não eram nada além de constantes remodelações de uma massa disforme, incolor, insossa. Valéria se viu diante do espelho como uma mulher transfigurada, mas de um jeito quase cadavérico. Ela percebeu, num instante tão fugaz quanto a morte, que a personagem a qual remodelara a casca durante anos tinha menos dela do que ela própria poderia inventar de antônimos. Valéria e o espelho. Ela, de pé, o cabelo em cascata suja contornando o pescoço, os joelhos contraídos como se protegessem a genitália. Valéria e o espelho. Valéria se via, se revia, e nada era. Nada era do que queria.

Valéria dirigiu ao espelho o olhar com a feição retesada, as sobrancelhas envergadas, o lábio crispado só de um lado, os punhos serrados e a coluna ereta. Seu olhar patenteado. De mulher sóbria, forte, imponente e independente. Mas os verdadeiros desejos que Valéria tinha no âmago encontravam os olhos como portas solícitas para escorrerem pelos cantinhos. Os olhos eram tão opacos da mentira quanto o significado do que é naturalmente fosco. Sua verdadeira feição era cansada - das humilhações externas, sobretudo das próprias. Dos dias em que se viu mentindo pros outros e pra si sobre aventuras confabuladas porque só assim encontrava uma forma de existir. E Valéria queria existir, acima de tudo. Suas sobrancelhas, minuciosamente finas, não conseguiam proteger o peso que lhe sofria a fronte, a pressão que o passado inscrevia nas linhas da testa e as tantas lágrimas que suicidavam no travesseiro da madrugada. O lábio que outrora sorvia intimidades masculinas nem sequer gostava dos sabores dos fluidos que porventura lhe instigavam sorrisos. Esses mesmos lábios nunca beijaram o beijo essencial, de fogo e de fúria e de fome que os apaixonados prometem. Sem o batom vermelho, eram lábios áridos e tão rachados quanto deveriam. Mordidos, nunca mordiscados. Ela os umedeceu com a língua, e sentiu que aquelas fendas viajavam tão profundamente, tão profundamente...

Valéria se aproximou da própria imagem, medrosa, mas foi capaz de se tocar e colar seu rosto no seu rosto. Pode ver, pela primeira vez, que algumas das cicatrizes que tanto tentava esconder eram pequenas assinaturas do passado, cravejadas artisticamente numa pele arenosa - culpa de tantos produtos coloridos com os quais se pintava todos os dias em tons de carmesim a vermelho, ou do cinza ao próprio cinza. Eram cicatrizes depois de serem memórias de uma dor escondida. Acumulada em pequenos pacotes de pele, para que dormissem eternamente ali. A maior misericórdia para consigo ela fez nos dedos que se tocavam através do gelado do vidro, contornando seus traços, repaginando suas paisagens. Ela era gigante. Com um pouco de tremor nos dedos esguios, abandonou o reflexo e sorveu o calor que vinha de si, de suas fontes mais íntimas. Apalpou-se em regiões que há muito ela não estudava. Percebeu os pequenos detalhes da assimetria de seus seios, que se encerravam em trêmulas ondas elétricas que bailavam no mamilo. As ondas trazem a vida das praias para a secura das almas dos tristes. E assim seu toque ganhou flama, suas mãos agora avidamente reviviam a percepção do prazer corporal, imiscuída na percepção do prazer do outro. Apertou suas coxas levemente suadas como se tivesse medo, penetrou suas profundidades violadas como se tivesse paixão. E tinha paixões, que se vulcanizavam através da fala. Na voz pura, sem palavras, entremeada em gemidos e suspiros de linguagens ancestrais, abissais. Ela se penetrou até que a energia cedesse e a descarga a colocasse ajoelhada no chão.

Chorou-se.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Toma o meu silêncio


Ela pousou cuidadosamente a xícara na mesa - como se aquele gesto, se atabalhoado, fosse quebrantar qualquer coisa sagrada que nos protegeria -, incapaz de me dirigir o costumeiro olhar sumarento. Eu sorri, ainda assim. Permaneceu alguns segundos observando as ondas do café na lagoa de porcelana, velejando na calmaria dos líquidos, tão diferente da balburdia ao redor.

- Eu sei que não posso pedir isso, mas eu não queria que você chorasse.

Seus fios de cabelo pareciam pequenas asas de inseto. Se estapeavam à revelia do vento para depois se acomodarem em grandes grumos de cor escura, trabalhando tranças que faziam estradas entre suas camadas de flores e frutos. Cruzei os braços sobre a mesa e afundei a cabeça entre eles, lateralmente, a observar a movimentação das outras pessoas naquele caos de palavras e lágrimas.

- Não chorarei.

Ela deitou sobre minha cabeça fazendo as nossas orelhas opostas se beijarem num vácuo de concha. Uma posição habitual de nós duas, das tardes em que deitávamos no chão para ver o mundo de baixo. Mas havia um suor gelado vindo dela, componente novo. Sua pele sempre fora tão seca para afagos e beijos... Ficamos assim, ao dissabor do burburinho dos relógios. Eu gostaria de esgotar todas as palavras do mundo, e cerrei as pálpebras na tentativa de encontrá-las. Suicidaram nos precipícios tantos da consciência. Meu presente de despedida seria o meu mais particular e execrável silêncio. Eu lhe daria meu silêncio. O meu silêncio é muito mais trágico que as torrentes de lágrimas que ela tanto temia. O meu silêncio é uma praia antiga aonde o mar nunca chegou. É uma ilha submersa em sangue. É o suicídio feliz.

- Bem, eu preciso ir ao banheiro... Estou apertada!

Tão delicada em seus movimentos que eu precisei retesar até sentir o grito da panturrilha nas pernas, para não ceder ao contrato e me ajoelhar e vociferar chantagens proibidas e gritar e morrer. Para que ela então ficasse. Desejei ter asas, mas o que ela me deu foi o aroma simples de uma rosa branca, efêmera e plácida diante da morte. Dissolveu-se no ar. E assim tão simples, havia uma cumplicidade solene entre as intenções para construir as pétalas e as intenções por trás de tudo, onde todas elas nasciam. Pude vê-la diminuir ao horizonte como um verdadeiro ponto sem cor, e então ela desapareceu entre vultos e destinos, entre correntes. O tempo havia cravejado a sua foice implacável em nós, e ela então voaria para outros braços e outros sorrisos.

Não sei quanto tempo se passou que fiquei ali, deitada, tentando entender o que acontecia dentro do corpo. O tremor, as palpitações, as visões de futuro. Com os olhos fechados dos que precisam urgentemente costurar memórias para consolar a alma, murmurei o ódio e praguejei Deuses como nunca antes na história da humanidade. Acho que foram horas, várias horas. Sei que fiquei ali. Fiquei ali como prova da qualidade de raiz que eu a oferecia. Fiquei ali até que o orgulho me beijou na testa e me fez dormir.