Voltando do escritório, depois de transar com o chefe,
Valéria pôs-se a contemplar os pingos de chuva que dançavam no vidro escuro da
janela do táxi. Pensava nas últimas palavras ditas pelo homem, quando cavalgava
sobre seus gritinhos e umidades. Veja-se no espelho, Valéria. Veja-se no
espelho...
Viu-se.
Nasceu o último filho do silêncio. Ele era como uma
criança estupefata da primeira tristeza. Como uma velha que mareja os olhos
antes de ver os filhos pela última vez. Todas as barras de ferro que
um dia pensou ser a sua estrutura não eram nada além de constantes remodelações
de uma massa disforme, incolor, insossa. Valéria se viu diante do espelho como
uma mulher transfigurada, mas de um jeito quase cadavérico. Ela percebeu, num
instante tão fugaz quanto a morte, que a personagem a qual remodelara a casca
durante anos tinha menos dela do que ela própria poderia inventar de antônimos.
Valéria e o espelho. Ela, de pé, o cabelo em cascata suja contornando o
pescoço, os joelhos contraídos como se protegessem a genitália. Valéria e o espelho.
Valéria se via, se revia, e nada era. Nada era do que queria.
Valéria dirigiu ao espelho o olhar com a feição retesada,
as sobrancelhas envergadas, o lábio crispado só de um lado, os punhos serrados e a
coluna ereta. Seu olhar patenteado. De mulher sóbria, forte, imponente e
independente. Mas os verdadeiros desejos que Valéria tinha no âmago encontravam
os olhos como portas solícitas para escorrerem pelos cantinhos. Os olhos eram
tão opacos da mentira quanto o significado do que é naturalmente fosco. Sua verdadeira feição era
cansada - das humilhações externas, sobretudo das próprias. Dos dias em que se viu mentindo pros outros e pra
si sobre aventuras confabuladas porque só assim encontrava uma forma de
existir. E Valéria queria existir, acima de tudo. Suas sobrancelhas,
minuciosamente finas, não conseguiam proteger o peso que lhe sofria a fronte, a
pressão que o passado inscrevia nas linhas da testa e as tantas lágrimas que
suicidavam no travesseiro da madrugada. O lábio que outrora sorvia intimidades
masculinas nem sequer gostava dos sabores dos fluidos que porventura lhe
instigavam sorrisos. Esses mesmos lábios nunca beijaram o beijo essencial, de
fogo e de fúria e de fome que os apaixonados prometem. Sem o batom vermelho,
eram lábios áridos e tão rachados quanto deveriam. Mordidos, nunca mordiscados.
Ela os umedeceu com a língua, e sentiu que aquelas fendas viajavam tão
profundamente, tão profundamente...
Valéria se aproximou da própria imagem, medrosa, mas foi
capaz de se tocar e colar seu rosto no seu rosto. Pode ver, pela primeira vez,
que algumas das cicatrizes que tanto tentava esconder eram pequenas assinaturas
do passado, cravejadas artisticamente numa pele arenosa - culpa de tantos
produtos coloridos com os quais se pintava todos os dias em tons de carmesim a
vermelho, ou do cinza ao próprio cinza. Eram cicatrizes depois de serem memórias
de uma dor escondida. Acumulada em pequenos pacotes de pele, para que dormissem
eternamente ali. A maior misericórdia para consigo ela fez nos dedos que se
tocavam através do gelado do vidro, contornando seus traços, repaginando suas
paisagens. Ela era gigante. Com um pouco de tremor nos dedos esguios, abandonou
o reflexo e sorveu o calor que vinha de si, de suas fontes mais íntimas.
Apalpou-se em regiões que há muito ela não estudava. Percebeu os pequenos
detalhes da assimetria de seus seios, que se encerravam em trêmulas ondas
elétricas que bailavam no mamilo. As ondas trazem a vida das praias para a
secura das almas dos tristes. E assim seu toque ganhou flama, suas mãos agora
avidamente reviviam a percepção do prazer corporal, imiscuída na percepção do
prazer do outro. Apertou suas coxas levemente suadas como se tivesse medo,
penetrou suas profundidades violadas como se tivesse paixão. E tinha paixões,
que se vulcanizavam através da fala. Na voz pura, sem palavras, entremeada em
gemidos e suspiros de linguagens ancestrais, abissais. Ela se penetrou até que
a energia cedesse e a descarga a colocasse ajoelhada no chão.
Chorou-se.