sexta-feira, 30 de abril de 2010

Carta para Raquel


Raquel,

Caso essa nota se conclua, saiba que foram muitos os versos inúteis embebidos em lágrimas que se amontoam na lixeira próxima à escrivaninha. Coloco-me aqui, numa tentativa entorpecente de vencer a resignação que me petrifica, só encontrando nessas letras disformes o canal para o alívio intangível. E não me surpreendo se você encarar essa humilhação gloriosa com aquela feição que tanto conheço: a sobrancelha direita erguida em seta; os lábios (e me permito divagar sobre eles alguns segundos), levemente crispados e os dedos mergulhando fundo nos cabelos em intervalos sumariamente periódicos. Saliento uma segunda vez: não me surpreendo.

Mas sei que lerá até o fim pelo sabor da curiosidade, embora tema que seu ímpeto comum a impeça de ver o cerne por trás das palavras. Admito que lhe escrevo, nas saliências do silêncio, ansiando vomitar cada angústia que me sufoca.

"Foi apenas um beijo", sou capaz de ouvir-te dizendo. Sim, apenas um. Apenas um. E apenas esse fora capaz de sibilar em minha memória, vívido, durante as tantas noites em que vi o céu em seu parto diário. E no afago dos meus sentimentos, suspirei. Transmutei-me em brasa e renasci. O engomado "não", que dissera sem palavras ou rodeios, de início pareceu charme de moça. Engoli numa deglutição vagarosa, a verdade. E a aspereza na garganta virou nódoa e me calou. Desci veloz a rampa célere que leva ao ódio. Praguejei. Gritei insultos para as paredes e brandi punhos ensanguentados. Blasfêmias a Deus irromperam de minha boca salivante. Calei-me.

Isso há semanas. Hoje, o tempero da serenidade - trizteza tímida - ajudou a enganar meus pais, que notaram a brusca mudança comportamental. Acalme-se, não disse nada a eles. Mas iremos mudar de cidade.

Já rasguei o contrato com a boa conduta. Não vou desejar que você seja feliz. Quero, em contrapartida, que espume arrependimento por seus orifícios maculados. Acredito numa justiça que te fará algoz de sua covardia e escrava de cada palavra polida, floreada, mergulhada no líquido torpe da mentira. Digo adeus, mostrando que seu espírito efêmero, na somatória das parcelas, ceifou o meu comportamento outrora sonhador. Agora, recolho-me aos pedregulhos da desilusão com um sorriso de meia boca. Buscarei meus fragmentos em outro lugar, onde nem resquícios de sua existência possam se tornar fantasmas. Duvido...

Mônica Silveira

terça-feira, 27 de abril de 2010

Pedro e Liz - Parte I


As perninhas não o sustentavam. Aos risos, caia e retomava a empreitada. Modelado numa massa rósea e perfeitamente lisa, Pedro ainda era um bebê quando a mãe revelara suas duas outras famílias. A criança, diante disso, persistia em seu movimento amebóide, no qual, através do tato virgem, descobria o calor, o frio, a pressão e a dor. A visão, redonda e maligna, se unia à audição submissa e fotografavam juntas o pai aos berros, esmurrando paredes ao sabor da raiva. Vanda, a mãe, fugira.

Na boca ágil dos vizinhos: uma hecatombe sem precedentes. Na construção do arquétipo do garoto, porém, o incidente parecia refletir pouco. Dotado de uma polidez maquinal, exibia seus dentes perfeitamente cuidados em todas as situações em que sua etiqueta natural mandava fazê-lo. Manipulando um estrondoso acervo léxico, ressuscitava palavras em desuso e citava autores pouco conhecidos, lapidando intelectualmente seu caráter. Livros pelo tamanho. Discos pela velhice do músico. Firmou-se uma carola bondade esculpida numa exímia educação, vista com antipatia pela maioria. A presença familiar era nula. O pai, ranzinza em sua essência deplorável de traído, embebedava-se todos os dias, vomitando ofensas normalmente incisivas e invertendo os papéis dentro do casebre solitário. Ainda assim, nunca brigavam - Pedro era incapaz de enfrentá-lo. Ou de enfrentar a si mesmo.


Diante disso, numa fuga que ele mesmo não reconhecia, criou um apreço pelo ambiente escolar. A construção de alvenaria que se instalava ao longo de um barranco e vez ou outra entrava em paralisação por semanas era onde aprendia, além do conhecimento científico, o básico das relações interpessoais. Crianças geralmente se unem ao bel do acaso, para saciar as peripécias e atingir um determinado nível de auto-afirmação. Na juventude, as amizades alicerçam-se pelos gostos. Formam-se grupos. E ter uma realidade compatível à de Pedro era incomum. Excluía-se. Acostumou-se, então, a ter convivências rápidas e coleguismos efêmeros, enraizando a funesta retórica em que as pessoas se unem por mera conveniência.


Em certa ocasião, Diego, que lhe ilustrava perfeitamente o perfil de um sujeito extremamente débil e pegajoso, surgiu no colégio com uma ferida no braço esquerdo. Uma nódoa escarlate parecia polida por um medicamento branco, que mergulhava nas marcas profundas que supôs terem sido trabalhadas pela mandíbula de um animal feroz. A simples aproximação do colega o desconcertava.


- Veja, Pedro! Meu cão me mordeu... – murmurou, mas parecendo mais feliz do que triste com o incidente.

- Legal... – não o encarava, mirando um ponto qualquer no quadro negro.

- Ele é grande, todo peludo. Pus o nome de Simba. Vai lá em casa pra você conhecer!

- Costumo passar muito tempo estudando... – propositalmente, deixou que o silêncio pairasse para atenuar o efeito das palavras que seguiriam. – E você sabe disso, embora viva chamando...

- Estuda nos sábados e nos domingos? Duvido! – como Pedro se calou, continuou na ofensiva. – Você passa muito tempo sozinho, isso faz mal! Já te contei que eu tenho uma irmã?

- No mínimo dezesseis vezes essa semana.

- Ela toca violino muito bem. Hoje ela vai apresentar no anfiteatro pra escola toda e você, querendo ou não, a conhecerá!


Girou o pescoço e focalizou Diego, deixando-se levar por uma comoção repentina. Ele mostrava se preocupar. Isso o amedrontava... Por mais fastidioso que fosse, o talvez único amigo não parecia se importar com seu temperamento seco, vestindo sem nenhuma vergonha a carapaça de um bobo. Quando o sentimentalismo se esvaia, enxergava um ser humano grotesco diante de si, que em sua ignorância o enojava. Não se sentia imundo por se considerar superior.


Inverno, Antônio Vivaldi. Todas as cadeiras do pequeno teatro da escola abrigavam, maravilhados, os alunos de diferentes faixas etárias, mas igualmente surpreendidos. Mesmo diante da falta de estrutura para uma apresentação decente, o som do violino trabalhado em ébano ricocheteava no firmamento e nas pilastras calcárias atingindo com precisão o âmago dos ouvintes. Cada nota entoada dava continuidade infinita há uma série de sentimentos que emergiam das entranhas, impossíveis de serem contidos. A racionalidade de Pedro não o deteve de pensar que aquela música deveria ser destinada a sua pessoa. Imaginou paisagens gélidas, campos cinzentos, a ausência de cor e calor em imensidões sem vida. A estação em que não há frutos ou folhas, onde paira o manto etéreo da morte. Sentia-se nu, como se todas as suas verdades já fossem do conhecimento de todos. Os músculos cediam, frouxos, e era invadido de arrepios sucessivos. Tremores quentes. Estava completamente à vontade. Ao seu lado, paspalho, o irmão vivia uma evidente erupção de orgulho. Invejava-o por não invejá-la, e sentiu pena por ele não possuir algum tipo de talento comparável. E pena de si mesmo.


- Incrível, né? – cochichou.

- Sim, admito! Qual é o nome dela?

- Liz. Ela é irmã só por parte de mãe... – migalhas de frustração eram fáceis de serem notadas, mas Pedro ignorou.


De feição rígida, impenetrável, a garota que devia ser no máximo dois anos superior aos seus dezessete empunhava o arco como uma guerreira com sua espada. A face pontiaguda ora sorria e ora se enrijecia, como se ela mesma fosse vítima da magia que sua arte conjurava. Os cabelos ruivos dançavam. O vestido de seda púrpura levitava em senóides sucessivas. Mas não ventava. No fim daquela luta que ela travara e vencera, todos levantaram. Muitos aplausos. Pedro se viu incontrolável em sua euforia. O silêncio pareceu um pesadelo. Diego cortou-o.


- Vamos lá, quero que ela te conheça!


Liz exibiu um sorriso travesso ao vê-los, já na rua defronte ao colégio. Tremia, exibindo sorrisinhos tímidos muito semelhantes aos de seu meio irmão. Em contraposição à postura firme de outrora, ostentava uma doçura quase palpável, e fez Pedro rir de sua insegurança.

- Fui bem, meninos?

- Claro mana, foi perfeita como sempre!

- Eu também gostei muito.

- Você! Você é o Pedrinho que meu irmão tanto comenta? – totalmente desconcertado, o garoto paralisou-se de boca aberta. Pedrinho? Diego pareceu entendê-lo.

- É ele mesmo! Tem como você dar uma carona pra ele até ali perto do parque ecológico?

- Claro, claro, entra aí!


Falaram muito durante o percurso. Sobre música, sobre ciência. Até sobre desenhos animados. Sentiu-se totalmente bem, não conseguindo evitar a curiosidade que seus olhos palpitantes possuíam diante da motorista ao seu lado. Liz lhe parecia perfeita; Diego, nunca tão tolerável.

- Nesse fim de semana posso te visitar, então? – se impressionou com a naturalidade com a qual as palavras vieram ao ar.

- Tá marcado!

- Até lá, amigo do maninho.


Um aceno sincero de despedida. Girou o calcanhar, rodou a chave. Ao adentrar, escutou uma voz feminina desconhecida.


- Filho!


segunda-feira, 19 de abril de 2010

Murilo


O trepidar dos passos de um adulto é bem distinto aos de uma criança – isso é, se elas chegam a fazer algum barulho quando andam. Afinal, a maioria pula e corre com os pés nus... Os que usam chinelos, que se dobram em movimentos ritmados de mede-palmos, produzem um som abafado de plástico numa arritmia que denuncia a lógica tão ilógica da infância. Já o sapateado senil, de frequência inviolável, carrega a mácula da artificialidade.

Calçados novos são piores. E o preto, devidamente lustrado, contrastava com a leveza da vestimenta alva. O estatelar faiscava no firmamento marmóreo da escadaria do hospital. Horácio, cuja feição pétrea se suavizava ao longo de inúmeros suspiros, mergulhava os dedos pálidos na cabeleira grisalha como se pudesse, assim, organizar os pensamentos. As lufadas de vento erguiam o jaleco acima do quadril. Fitou a massa de um cinza escuro logo acima de si: certamente choveria.

- Doutor Horácio?

Ancorado no muro que cerceava o quarteirão, uma silhueta deplorável se entortava ao longo da extensão de uma cadeira de rodas. Mergulhados num sebo pastoso, os fios muito extensos de cabelo desciam em cascata ocultando parcialmente as órbitas profundas, margeadas por um roxo doentio. Sem se impressionar, o médico ergueu as sobrancelhas.

- Pois não?
- É que... – respirava forte, levando a mão direita ao peito como quem reúne o último fôlego restante – o controle automático da minha cadeira não está funcionando. Eu só precisava de alguém que me levasse até minha casa, que é bem ali pertinho.
- Claro, sem dúvidas. – Horácio se viu vítima de seu comumente altruísmo antes mesmo de ponderar a situação. Chegaria atrasado em casa, mas ele era o único a quem devia satisfações. Decidiu que acataria o papel social.
- Que maravilha! – dardejou, e os dentes muito grandes se abriram num sorriso de estampada melancolia. – Siga a avenida principal e eu vou te orientando. Em minutos estaremos lá.

A brisa gélida queimava a nuca. Folhetos espiralavam no ar, rasgando-o em zunidos que por sua vez rasgavam o silêncio. O lixo do dia seguinte já se acumulava. As lojas tentavam resistir. Sentiu com amargura a nostalgia que todo fim de tarde lhe trazia. Os dedos esguios conduziam com certa velocidade a cadeira motorizada pelo passeio lateral. Tantos olhares curiosos, alarmados, amedrontados, familiares... De súbito, uma pequena cratera no assoalho se pôs no trajeto, engolfando uma das rodas e quase chocando o doente ao chão. O ortopedista, num ato de exímio reflexo, segurou-o antes que caísse e acomodou-o com muita minúcia.

- Quanta falta de atenção... Mil perdões! Senhor...?
- Murilo. Não se preocupe com isso, já estatelei no chão inúmeras vezes...
- Hoje estou tão cansado que mal consigo raciocinar. Enfim, que tipo de problema você teve, Murilo?
- Poliomielite, como costumam chamar por aqui. Paralisou quase todo o meu corpo.
- Há quanto tempo?
- Doze anos.
- Hum... Mas você sabe que a vida de um cadeirante, atualmente, quase se equipara socialmente à um cidadão comum, certo?
- Não me interprete mal, doutor... Não reclamei de nada até agora e não quero uma consulta. Sou uma pessoa muito feliz, só estou louco para chegar em casa e abraçar meus filhos. A propósito, lá na próxima direita quero que você vire.

Assentiu, manobrando-o para um extenso beco. Horácio se perguntou como podia existir um lugar como aquele, tão próximo de onde trabalhava, mas que nunca vira na vida! Os entulhos se acumulavam em meio aos farrapos que os mendigos usavam para dormir, construindo um cenário que o estapeava em sua condição elevada, revelando uma realidade que ele inconscientemente ignorava. Excretas, sujeiras... Procurou desviar o olhar tímido e covarde. Viu a mão direita do portador de necessidades especiais esticando-se, solicitando em silêncio que parasse.

- Doutor... Deixe-me te perguntar uma coisinha: em sua profissão de médico você já presenciou milagres? – o tom de voz mudara, agora carregado de uma agressividade lasciva e, sobretudo, amedrontadora.
- Ah... Sou cético com essas coisas. Nunca.
- Não se preocupe, agora eu lhe concederei a honra!

Levantou-se lentamente, saboreando cada contração muscular. Boquiaberto e com as pupilas violentamente dilatadas, o médico observou atônito o desconhecido equilibrar-se sobre os dois pés como quem possuía total habilidade sobre o próprio corpo. Estralava o pescoço, gargalhando profundamente. As vibrações retumbavam no muro chapiscado e avançavam para o silêncio. Ninguém ouviria.

- O que está acontecendo? Isso por acaso é uma brincadeira? – esbravejou.
- Brincadeira, Doutor Horácio Guedes Paiva? Vou contar o que é brincadeira... Aliás! Vou contar o que é uma completa peça de teatro! Por acaso a vossa senhoria se lembra de uma paciente que veio a falecer no corredor do hospital por falta de atendimento?
- Do que você está falando? Isso não aconteceu! Ficou louco?
- LOUCO? Ela era a mãe de meus quatro filhos! Por acaso essa cadeira que eu roubei do SEU hospital parece uma miragem? – a etiqueta no estofado comprovava a verossimilhança do que Murilo dizia. – Agora eu venho, através de um julgamento abençoado por Deus, aplicar-lhe a punição que cada um daquele INFERNO de lugar merece. Que você sirva de exemplo!

Estupefato, cogitou por alguns segundos a possibilidade de estar num pesadelo. Um pesadelo onde um homem randômico empunhava uma arma, cravando em cada uma de suas pernas balas que fulguravam uma dor alucinante. Os berros estridentes de agonia e medo não condiziam com um sonho, mas ele ainda tinha fé. A fé descomunal que os céticos manifestam na iminência de morte.

Desfaleceu-se sobre a cadeira de rodas - que agora seria sua - observando o caldo escarlate se misturar à água da chuva, gotejando calmo. A silhueta de seu algoz se reduzia lentamente naquele beco infinito... Rezou para que estivesse sonhando. Mas seus passos nunca mais emitiram som.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Valquíria - Parte I



Uma aglutinação cor de barro floculava numa escarpa, pintando com seu vermelho desbotado aquele relevo íngreme e muito acidentado. Tão longe do centro da cidade... Assim era o vale do Tijolinho que, sem acesso decente às estradas, honrava o nome cedido pelos próprios moradores com suas casas de arquitetura simples e deveras frágil. Ao olhar de alguém distante, não se podia precisar se um espaço vazio era uma porta, uma janela, um beco ou um rombo. Tampouco identificar onde começava uma residência e terminava a outra. Sem pavimento. Essas regalias de privacidade do mundo moderno não cabiam ali - região fadada à exclusão.

Entretanto, o estereótipo que os marginais comumente possuem não permitia a realização de um julgamento verossímil de alguns residentes. Valquíria, um relâmpago negro que cujo caráter delicado se cristalizava numa carcaça de beleza, não exibia em seus gestos nenhum sinal de submissão diante das intempéries de uma vida dificultada pelo acaso. Os dentes grandes, de um branco perolado brilhante, revelavam juntamente com sua pele a ancestralidade africana. Estava sempre sorrindo. As linhas pontiagudas do cabelo se espiralavam num coque preso pouco acima do bulbo. Gostava de todos os sons, de todos os sabores, de todos os seres viventes... Gostava de cada detalhezinho e se admirava com a mais simplória manifestação de afeto. Só não gostava da noite.

Mas era dia. Quatro horas da manhã. Recusou o café e partiu logo para a limpeza. Tudo havia de estar limpo e organizado, mas as manchas escuras insistiam em se alastrar pelas paredes. Quando uma nova rachadura se instalava, suspirava e entristecia-se por segundos. Logo, agradecia pela existência de um lugar para morar e continuava. Limpava, mesmo com pouca água. Mesmo sem pano. Mesmo sem balde. Mas havia uma panela, e ela usaria para buscar mais. Pelos vãos, caminhos de terra, e porventura precisando perpassar pelos casebres alheios, chegara numa cisterna onde um amontoado de pessoas aguardava.

- Oi Val!

- Val, vou mandar meu filho para você hoje, hein?

- Que linda que você tá! Roupa bonita... Dona mãe ta querendo te ver sabia?

- Vê se não falta na igreja domingo minha filha... Sonhei coisa ruim!

Murmúrios quentes naquela manhã fria. Ela se aquecia. Cerca de um quarto do vasilhame enferrujado já era o suficiente. Voltou e ferveu-a - comedida, para que não muita água virasse vapor. O cheiro vertiginoso do café engolfava o estômago. Pela janela: o sol a zênite... Recusou também o almoço, agora já exibindo o tão usado vestido com os borrões coloridos de tinta. Um de seus alunos o fizera num momento de abstração profundamente criativa. Valquíria muitas vezes se pegava tentando enxergar cogumelos, chapéus e nuvens naquele mosaico disforme.

Exímia professora. Acomodava as crianças, ensinava-as o pouco que sabia rabiscando com um tijolo o único muro cimentado do lote. Mas havia pouco espaço e, também, pouco elas queriam aprender... Iam mesmo pela comida, por um biscoito e pelo café. Ou talvez ali era um bom refúgio.

- Tia! Tem leite?

- Podemos brincar de pega-pega?

- Tia Vaval! Mamãe ontem disse que a gente é pobre porque a gente é preto. Como faço pra ser branco?

- Tava com tanta fome ontem que até uns tijolinhos eu comi! Por que eu tenho esse barrigão se eu não como nada de nada?

Como amava as crianças! Não tinha leite, não tinha espaço, não tinha justiça, não tinha verdade. Nem mesmo saúde! E elas riam, gargalhavam com as mais singelas piadas. Brincadeiras de roda, paródias inventadas pela improvisação ou um simples “corre cutia” já marejavam aqueles pequeninos olhares com estrelas iluminadas da mais pura felicidade. Valquíria compartilhava daquele êxtase e por algumas horas reconstruía a experiência da infância. Abraçava-os em punhos fortes de grilhões de aço!

Mas a noite sempre chega. E com ela os pesadelos... Os tão vivos pesadelos.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Ana

- Eu nem me importaria se meu cabelo fosse ruim, ia deixar crescer. Não ia cortar de jeito nenhum! Nenhum mesmo...

- Você vai ter tempo pra isso...


Sentia uma veia próxima ao ouvido pulsar freneticamente. Aquelas palavras, entoadas num dramático tom de falso galicismo poético, conseguiam com êxito me fazer tremer. Raiva! Não precisava de toda aquela encenação se tudo acabou bem! As minhas expressões faciais eram tão falsamente plásticas que ele só não notava minha indisposição porque sua mania de autopiedade as interpretava como tristeza. Ainda assim, não o fitava no olho. A testa sempre franzida em três grossas linhas. Folheava a revista fingindo me distrair com as belas paisagens.


- Engraçado Ana... Nenhum palhaço veio aqui esses dias todos.

- Palhaço?

- É! Dizem que eles vêm fazer brincadeiras com quem tem câncer.

- Talvez você não tenha ficado tempo o suficiente para que um deles aparecesse.


Câncer! Adorava pronunciar bem devagar cada fonema dessa mácula que ele transformava em triunfo, mesmo após tê-la vencido com o advento da dor e preocupação de vários parentes e amigos. Eu mesma criei manchas púrpuras ao redor dos olhos - não sei se devido às lágrimas ou à insônia. Após essa luta sua silhueta parecia mais fraca, não como a costumeira humildade digna de um vencedor orienta. Não o condeno pela ausência de cabelos ou pela pele exageradamente pálida, mas pela postura que perdera a convicção de um homem e dera lugar a uma criança que vomitava chantagens ininterruptamente.


- Estou com sede...

- Tem água bem aí do seu lado.


Se aquela era uma tentativa para que eu erguesse o olhar – o que me veio na mente ao notar que ele não se movia para alcançar o copo -, não funcionou. Não daria o braço a torcer. Uma luta havia se instalado: ele me forçava a adulá-lo ou eu me mantinha fiel a minha personalidade. Deitei a cabeça no estofado e fechei os olhos. Tanto cansaço! Podia senti-lo em cada membro do meu corpo. Seus pais estavam tão alegres... Quando apareceram de manhã, quase me senti doente por estar tão mal humorada numa situação tão propensa à euforia. Talvez eu não estivesse ali por ele, mas para provar a mim mesma que sou uma boa amiga...


Um estridente despedaçar de vidros me fez interromper estupefata os poucos segundos de meditação. Em síncope, gritei a enfermeira e pedi que recolhesse os estilhaços, sem sequer me lembrar de como me levantara da cadeira.


- Eu não sei o que houve, é como se eu tivesse perdido o movimento da mão por um segundo! Será que não estou totalmente recuperado?

- Você está bem, não fique imaginando coisas! Palavras negativas atraem energia negativa. Devia estar é feliz por deixar o hospital, e não se lamuriando como se fosse o fim do mundo! Já não basta o monte de pessoas que sofreu por sua causa? Seja menos mimado e encare os fatos!


Sua reação de surpresa foi como um tapa seco na minha face. Uma nódoa esverdeada escorria pelas narinas. Respirava pela boca, ofegando profundamente. Pedras de gelo inundaram meu estômago ao imaginar que ele poderia ter uma convulsão ou algo igualmente sério. No entanto, seus olhos esbugalhados se alinhavam na direção de outra pessoa: sua mãe, que estava em pé atrás de mim, atônita. Saí em passos rápidos pelos corredores brancos, justificando minha violência verbal em pensamentos confusos - num mesmo gesto de pena e preservação de imagem que eu mesma condenara anteriormente.


Demorei a perceber que gostava muito dele. Não queria aceitar seu sofrimento. Covarde, evitava as palavras para que sua dor não fosse realidade. Ignorar era uma forma de me isolar numa bolha de mentiras confortáveis. O que era pra ser um belo sentimento se transfigurou numa resistência que, alimentada pela falta de diálogo, chegara ao ápice e me fizera perder uma das pessoas mais importantes.


O câncer voltou, dois anos depois, mais agressivo. Entrou em metástase rapidamente. Perdi uma das pessoas mais importantes.