sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Arte?

Quando bateram na porta eu estava fazendo qualquer coisa muito humana. A última coisa humana. Meus olhos não puderam evitar o esbugalhar estupefato quando me deparei com um extraterrestre bem verdinho, com antenas pendulares e um sorriso simpático. Através de uma conexão cósmica sobrenatural, entendi suas palavras como se saíssem da minha boca e reverberassem nela mesma:

Você foi escolhida para me provar que eu não devo destruir a humanidade. Com licença...

Anuí – o que mais poderia fazer? Meu agora hóspede raspou os pés (de três dedos apenas) no tapete sujo, com uma polidez galante. A sala de estar que dava para a porta de entrada não poderia estar mais balburdiada, com todas aquelas roupas amarrotadas reunidas aos montes no sofá. Brinquedos das crianças em todos os cantos e migalhas da janta de ontem salpicando as quinas. Suas órbitas amarelas giravam em todas as direções daquela decoração atípica e meu estômago gelava. Não era um cartão postal nobre sobre as maravilhas da humanidade.

Eu acabei de preparar o café, você aceita?

Sim.

Bebeu através de um sugador que nasceu onde deveria ser a boca, algo que me lembrou um desentupidor de pia. Quando o café mergulhou nele pela primeira vez, foi como se uma corrente elétrica tímida caminhasse pelo seu rosto. E veio depois um esboço de sorriso. Tentei não encará-lo, concentrando-me nas xícaras vazias da pia, mas ele parecia bastante à vontade. Arredou-me com seu quadril largo, lavou toda a louça e repetiu o café até não haver mais café. E então lavou tudo novamente.

Logo devo começar a fazer o almoço, se você quiser me ajudar a preparar...

Não posso. Já estou de saída...

De saída? Mas... Você avaliou a sobrevivência do mundo nessa visita tão rápida?

Claro que não! Esse é só um encontro de rotina, voltarei quando a senhora estiver dormindo.

E ele então desapareceu numa constrição completa do seu corpo até mais nada existir, uma implosão silenciosa.

Busquei os filhos na creche para que pudessem sujar toda a casa com a janta requentada. Então vieram para dormir na minha cama, a meu chamado. Não era costumeiro, embora elas sempre insistissem, todos as noites, incansavelmente. Mas a candura das crianças poderia significar clemência e essa covardia toda poderia ser minha salvaguarda.

E quando o gosto melado e ébrio do sonho escorreu pelo canto da boca e fez poça no travesseiro, ele estava lá, sentado numa cadeira tosca sobre a maior planície e a mais verde da Terra, com esse enorme cobertor de gramíneas que irritava os pés sonâmbulos. Quase camuflava, o E.T, enquanto acariciava as próprias antenas numa despreocupação turista. Um punhado de mil ou dois mil pássaros brancos de todas as espécies sobrevoava nossas cabeças como espectadores aflitos. Tampavam o céu. E os dedos do sol, os que não morriam ali, escapavam por frestas mínimas entre as ranhuras das aves, desenhando círculos esparsos no firmamento. Plumas choviam sobre o mundo e eu podia senti-las arrepiando meu corpo notívago.

Bem, é agora. Prove o valor dos homens.

E algo dentro da minha mente já sabia o que fazer, um processamento de comandos e ritmos e movimentos que talvez estivessem gravados em mim desde o meu nascimento para que eu executasse ali, naquele momento fatídico. Onde o destino seria subjugado.

Acomodei-me na minha cadeira igualmente tosca e materializei uma harpa, a maior que eu consegui. E quando ela surgiu sua beleza paralisou tudo. O universo cravejou ali seus olhos. De sua ponta mais distante duas grandes asas de cobre planavam, e as plumas pararam de precipitar, medrosas. Suas curvas eram de simetria perfeita, marmórea e de brilho tilintando. Apologética. As quarenta e seis cordas paralelas eram delgadas beirando o invisível. Uma bela criação humana, ele haveria de perceber. Talvez a única, a arte. Todo o resto corrompe essências. Portanto eu me faria ser ouvida pela expressão do que eu era em tons desordenados. Os raios solares encontraram espaço e se acomodaram como ouvintes educados. Mergulhei no vazio de mim.

Quando os dedos dançaram nas cerdas e vergastaram toda a sua extensão, o silêncio foi brutalmente rasgado, docilmente substituído. A canção era de um lúgubre agitado, como uma cachoeira que ferve. Retumbando em pedras grandes e turbilhonando por onde passa. Era imperfeita, como eu e todos. Um vitral com peças faltantes. Tropeçava e levantava em harmonias mais fortes e por vezes trovejava, sem calma, naquela planície desertada. Para enfim convergir numa brisa litorânea e perene. O alienígena nunca tinha visto cachoeiras ferventes e tinha medo de descargas luminosas, eu podia ver na sua feição. A música era aquela respiração contida da pessoa que ama, mas teme, porque respirar é permitir que o tempo passe. E depois dele vem o fim... O fim que está em tudo, renegado pelos amantes. Que leva as mãos de tragédia a tampar nariz e boca.

E quando todas as incertezas humanas combinadas foram canalizadas e aspergidas ao instrumento, horas se passaram demoradas, e minhas mãos resistiam pouco naquela luta pra provar o eterno. Alguns filetes vermelhos pintaram o antes quase invisível, eis a pele frágil. E o sangue tingia tudo e o plumeiro era agora escarlate e caía novamente de terror. Mas os dedos se mantinham. Árvores vermelhas germinaram e tão logo germinaram suas folhas padeceram, e outras germinaram. Sulcos e fendas abriram no assoalho em direção ao infinito e os tremores abissais modelavam vales e montanhas e cumeeiras. Tudo era uma viagem ao caos, e depois um retorno ao nada para começar de novo. Rumo ao silêncio das coisas planas. E ele sentado ali.

As notas exauridas, dissecadas e retorcidas, dramatizadas pelo meu âmago que nada tem a ver com o que é simples, eternizaram-se no longínquo poder da memória, núcleo dos homens e dos pesares.

O sonho terminou de rompante, como os sonhos fazem. No fim, ele voltou no dia seguinte e pediu mais café, fez sua última implosão, voltando satisfeito para seu planeta.

domingo, 23 de outubro de 2011

Fugacidade


Naquele átimo impenetrável, em que tudo que existe se dissolve nos limites redundantes que separam dois caminhos. Ele quis tocar o queixo de sua donzela, mas tudo o que fez não foi mais que um sorriso estupidificado sem contornos, a emitir grunhidos.

Você é tão linda...

As têmporas eram gradualmente preenchidas pelo borrão escarlate da vergonha, tais palavras em vômitos assim atropeladas... Os pés da moça costuravam círculos trêmulos no firmamento gramíneo. Do outro lado, ela nada ouvia. Havia ali um pouco de uma sujeira bonita, barro puro que a ungia no execrável da beleza temível de se aproximar. Por isso ele grunhia tanto! Seu peito por onde fazia caminho aquela flâmula irritada era não menos um cárcere que o acorrentava em respirações rápidas, ofegos interrompidos e piscadelas de sustos entrecortados. Era como adoecer para se curar e então adoecer no instante seguinte.

Se me dedicasse ao menos um segundo dos seus...

Adoeceu desde a primeira vez que a viu através do vidro da floricultura, ela embebida em candura cantando baixo para as orquídeas de plástico. O sintoma primordial foram os ponteiros paralisados. Ficou ali, extasiado pelas sensações novas que se dissolviam em suas artérias, ouvindo o coração bombeá-las num tamborilo em frenesi macerando a racionalidade pouca. Lá dentro, tão longe, tão perto, a moça estava sempre dançando ao ritmo das notas do silêncio. Seus movimentos não tocavam nada, tampouco o assoalho. Eram repetidas flutuações delicadas, como o beijo de uma violeta que abraça a morte. Era também qualquer coisa acima da dança, da arte e da humanidade. Carregava consigo a origem de todas as pétalas. O púrpura violento que era a cor de seus olhos por vezes encontrava o marrom plácido e triste do rapaz, em descargas tempestuosas que o faziam sentir um vento vindo de qualquer lugar, revolvendo pêlos e eriçando nucas e beijando-lhe a face seca tão secamente. Nas laterais da boca da bela jardineira por vezes irrompia o rascunho do nascimento de um sorriso. Mas então a quase certa ilusão se perdia nos abismos tantos da memória tendenciosa de um doente.

Voltarei todos os dias, e em todos eles repetirei. Eu juro.

Desaprendeu a caminhar, comer era um mergulho de esquecimento e os sonhos eram caricaturas randômicas. De lá pra cá pareceu largar partes de si porventura intrínsecas enquanto se desmanchava para renascer. Os dias se resumiam nas horas em que se prontificava a observá-la, como uma daquelas plantas, esperando o toque derradeiro que teceria o destino do mundo. Conversava um pouco com o vidro amigo e ignorava a porta sempre aberta. Sempre ali no soslaio, indicando o caminho fácil. Dar as costas era um rasgo de ponta a todas as outras pontas, seguido de muitos olhares por cima do ombro até o horizonte engolir tudo. Mas as margaridas estavam em todos os cantos, margeando tudo! Toda a botânica terrestre se voltava para abraçá-lo. A Terra era verde e outras cores e pensamentos que em segundos germinavam brotavam davam frutos e apodreciam e tudo novamente. Em extensos jardins voluptuosos onde um dia se deitariam. O gosto que desvanecia nos lábios era difícil de identificar. Antes de abraçar o sono com a dificuldade habitual, sempre se perguntava sobre sua origem. Desafio grande, deglutir a felicidade sem temor...

Ela chorava na calçada, a floricultura fechada. Seu semblante de cacos rachados podia ser visto por entre todas as ruas e quarteirões que recortavam a cidade. Tal tragédia que emanava! A lua matutina era um olho ao norte orando por ela, pois dependia dela a sua existência fugaz. Forças de todas as origens, de profundezas oceânicas e vulcões dormentes, ergueram o homem renascido em pernas ágeis num galope arruinado, enquanto poesias de todas as eras se transcreviam nas fibras latejantes: para que servem as flores, quando longe de seus vasos? E a moça e sua tristeza de motivo a saber foram apenas diminuindo, diminuindo, diminuindo, até a ínfima dimensão de uma semente nua e só.

Pois ele corria na direção oposta. Felicidade essa fuga eterna.

sábado, 15 de outubro de 2011

Demência

A janela era um círculo pequeno listrado por finas hastes de aço. Ainda assim, dedos de luz escapavam daquela pequena prisão e chocavam-se na parede branca na maior velocidade permitida por Deus, às vezes ricocheteando na cama de panos também brancos, esquentando meu pé revestido em casca dura. Tudo ali era branco. E há no branco o fogo tímido próprio do que é luminoso, um martírio de cores que turbilhona as águas onde se dissolvem essências revoltas em trevas. Mas como fogo que é e se faz, tímido ou não, queima. Meus olhos dardejavam na órbita em todos os limites das pálpebras em busca de tons diferentes – mas minha pele empalidecia num tecido imberbe e coalhado onde não mais se fazia refúgios. Que saudade do verde das folhas e seu cheiro de qualquer coisa orgânica indecifrável! Quando Maria e eu deitávamos no gramado do sítio pra desenhar nuvens era de verde que nos banhávamos, e havia a inocência sublime dos braços que se levantam para tocar o céu e pedir a bênção do azul. Sinto o gosto de tâmara ocluir a garganta... Suas palavras eram veludo e poesias, pequenos cânticos, odes secretos que apenas eu orquestrava. E nada me interessava saber no mundo senão de seus segredos, de sua intimidade, daquela criptografia alienígena que tecia seus movimentos de corpo e de rompantes de insanidade perfeita em volúpias vermelhas. Aqueles cabelos de topázio líquido...

Agora eram quase pretos. Quando entrou no quarto olhou-me redonda numa desconfiança trôpega e devastada por qualquer coisa que se desenhava no meu rosto. Não quis perguntar, ela geralmente não respondia sem enigmas. Caminhou arqueada nas pernas estranhamente venosas em cordões púrpuras sobre terreno róseo. Ainda possuía a austeridade dos lábios crispados contendo as várias palavras que queriam nascer, porém já germinadas na sua feição toda ângulos.

Você não parece nada bem, João. – sua voz era um trovão eterno. Um lamento triste que ansiou retumbar em cada osso e carne e cartilagem e tudo além. Não havia a umidade da chuva pra precipitar em mim, somente suas lágrimas que pingavam no meu couro cabeludo em goteiras preguiçosas. E um abraço frouxo cheirando sal.

Como não conseguia falar - lacerações na língua -, tateei. Desenhei na sua cintura, com o indicador em meia unha, caracóis extensos que nasciam em círculo grande e morriam no abismo do ponto. Onde morava seu umbigo grávido ocluído pelo vestido carmesim. Tortuoso, sem jamais embarcar na estrada do reto. Pois são das curvas de quem não vê a si mesmo que ladrilhei meu caminho em direção a desgraça. O torto que representa o falho, o errado, o atroz. Dos farelos celulares que ficaram pelo caminho levando consigo o líquido da memória e da estrutura desgastada que aqui lhe sorri em sangue coagulado. Minha viagem ao vazio era solitária – e a mulher não compreende. Ela construía ao redor do volume que meu corpo ocupava no mundo o contorno de uma identidade que eu não mais possuía, através do teor ácido das lembranças que eu quase podia ver escorrendo por seus poros. O silêncio cheirava a culpa que ela cuspia de soslaio pela expectativa que nunca se cumpria. Vitral sem conserto, eu. Para ela: movimentos randômicos sobrepujados por loucura, e nada mais. E de que adiantariam suas palavras, fossem trovões ou veludos?

Tampouco pupilas que cravejavam em mim toneladas de piedade despertavam alguma faísca da faísca de alguma coisa. Maria... E essas cicatrizes invisíveis, você não vê? Quando foi que seus cabelos ficaram tão escuros?

Verônica e Roberto estão bem, sei que você pensa muito neles. Outro dia a professora de matemática do Beto me disse que ele seria um excelente engenheiro, de tão inteligente que é! Eles sentem muito a sua falta, você sabe... – falava como se tivesse lendo um texto o mais rápido que pudesse, oferecendo para deleite sua nuca, enquanto fingia olhar para além da pequena janela com o nariz em conta gotas.

Desbastado pela tormenta, irrompi na direção da senhora para degolá-la. Brandido em fúria. Seu pescoço, pano a rasgar. Roberto seria seu novo amante? Não poderia... Ela deveria me amar até o seu último suspiro! Essa fora a maldição que concordamos em nos lançar a cada beijo por línguas de fogo e seus nós de bocas unidas debaixo da alvorada de todos os dias. Ah, como é execrável cruzar a barreira do insano! Perdi a compreensão e a manifestação da linguagem que nos mantinha pessoas do mesmo universo. E se não há mais palavras que reclamem à incompreensão, eis a violência que somos todos nós, uns mais ou menos polidos, porém ainda partículas desse cosmo de hecatombes reunidas. Não há mais volta.

Talvez também não a compreendesse bem. O nome Roberto já morava em algum lugar das terras incendiadas de minhas memórias. Irresgatável nesses campos inférteis. Mas estrangulá-la ao som de seus ruídos de dor suspirada, como quem não quer chamar atenção do mundo para a besta, dava-me certa dose de prazer. A pele fina quase rasgando era a minha força provando o amargo sabor de quem olha altaneiro perante a vítima derrotada. Logo ela também cruzaria a fronteira. Larguei-a.

O choro agora era cachoeira vívida tropeçando sobre suas mãos em rocha que apertava as sobrancelhas, como se ali fosse o ponto único, a rede ímpar para agarrar-se a si mesma. Debruada sobre a cama de visitante, consumiu-se em desalento. A desgrenhada cabeleira morena, tão rala quanto conseguia, desprendia-se pelos dedos em punhos semicerrados. Flutuando até o chão numa viagem demorada. Sim - Maria despedaçava-se, deixando partes de si antes de partir. Borracha imprestável no emaranhado de sua fuligem. A verdade raramente se apaga. Mas existe a morte, muito viva em suas preces notívagas, eu bem sabia.

Sua figura inteira se contorceu num rompante ao dissabor da desordem. E ao deixar o quarto, cuspiu com o supetão que espreita o dissabor do descontrole. A nódoa de saliva caminhou gelada nas minhas têmporas.

Até cair na garganta, e ser digerida em doces lembranças.

domingo, 2 de outubro de 2011

Remetente

Meu caro Daniel,

Parece que ela dormiu (ou finge com a triste inocência de boneca que não é), então agora posso vomitar essas letras bravamente contidas nas camadas de mim que quase caem no esquecimento.

Sobre dormir. Labuta pesarosa como nunca foi! Quando os ponteiros já se cansam de anunciar o arrastar dos segundos e o sono pesa as pálpebras em sarcófagos temporários, Débora evita olhares. Seus túmulos particulares. Caixões negros de detalhes vermelhos em gotas de sangue. Vira-se para a parede e repete, noite após noite, a mesma sinfonia pétrea, calcária e inóspita: a que suspira de seus dedos retinindo incansavelmente na parede. E retinindo e retinindo... Como se escrevesse nas linhas de argamassa as palavras que não ousaria me dizer em costuras incongruentes, indecifráveis. De tecido podre. E eu me torno cúmplice do seu martírio silencioso, tocando seus ombros que me repelem em arrepios. Beijando suas costas de choro corredio. E sei que ela não deseja, que não há desejo, mas são as diligências de um casamento. Eu, o marido - o faço em busca de qualquer coisa que antagonizasse aquele silêncio crepitante de almas, em busca dessas almas talvez inscritas nas ranhuras daquelas quinas que ela desbravava mais que a mim. No fim, meu corpo padece à morte – infelizmente – temporária, temporariamente.

Dois dias atrás percebi na sua silhueta agora esguia e sem vida o impulso desesperador de quem não suporta ver os firmamentos cederem. Agarrou-me com a ferocidade (e o fedor) de um animal e cravejou as unhas longas no meu pescoço. Roçou a língua áspera no meu queixo e eis as primeiras palavras proferidas naquelas noites de tortura: pediu, no tom monocórdio de quem implora, que a penetrasse. Animalesca como nunca outrora. Os pudores são detalhes esquecidos pra quem fora esquecida pelos detalhes. Eu sou menos que isso. Não reagi, observando-a patética na tentativa de se despir, desajeitada, descompassada, fazendo nós nas próprias vestes e irrompendo em lágrimas ao se dar conta de que já não há mais firmamento. Abaixo de nós um abismo que engole tudo, e nada mais. Senão o meu toque frio e indesejado.

O telefone bem próximo ao abajur e não há ninguém do outro lado. Amigos? Nenhum. E essa culpa que ela deposita no arquejo dos meus ombros talvez eu não seja capaz de diluir. Sozinho assim. Nasci de um ventre com pouca vontade, e minha relação com a culpa sempre fora de maiores faíscas. A vida sempre atrelada à culpa de viver. E há na figura masculina essa responsabilidade pela integridade de sua prole, e talvez os gêmeos sucumbiram porque minha essência não era boa o suficiente. Ou pelos pecados dessa vida e de outras, pelo bel azar ou macumba ou olho gordo ou não sei. As respostas são várias e as perguntas, infinitas. É um presente de Deus que eu não compreendia, ousaram me dizer. Podia sentir a pulsação na garganta de Débora pela vontade de esbravejar pros meus ouvidos e para os vizinhos que a razão da hecatombe toda sou eu. Mas esse mesmo Deus de intenções misteriosas pôs no meu quarto essa mulher tão mergulhada na piedade de si mesma! Eu também teria o que vociferar, e ela não estava disposta a ouvir. Esse contrato silencioso nos silenciou.

Essa ideia em tormenta que turbilhona aqui e ali e quer virar verdade, mas é repelida. Inutilmente, pois já é a verdade desde que germinou: não sinto tristeza pelas crianças. Nem escassas fagulhas nos cantos mais obscuros de mim - certeza, pois procurei por longas horas de auto depreciação, durante chuvas extensas salpicando a janela... Sem sucesso. Afinal, morreram antes de existir. Nenhuma dor. Talvez tenhamos poupado aflições tantas! Ou são meros argumentos pra justificar minha mesquinhez? Ainda assim, não encontro no baú de mim lágrimas para homenageá-las. Mas lágrimas por essa solidão intrínseca que devora o mundo e além, lágrimas para os olhares piedosos, que julgam em palavras felpudas e também lascivas. Pelas vontades que evaporaram no poço raso que nos tornamos e por essa figura putrefata que me acompanha como uma maldição nas noites de comum zelo. Parca polidez das ocasiões sociais, segurando a mão dela na união perfeita de casal que não somos e jamais seremos, corrói a sanidade limite com a qual redijo.

Sou um tecelão de poucas linhas, um escrivão de palavras curtas e interrompidas por muitas vírgulas. Minha música é a melodia sem notas que compõe o silêncio e meus episódios de vida são quadros borrados por poucas cores. E cores sem vida. Meu sorriso é na fração inexistente do imediato e a dor é eterna, e a única a me manter firme nos dois pés fraquejados. A crueldade existe, enovelando cada palavra dessa cartilha, e sou eu.

Eu os culpo e os odeio, estes filhos que antes de nascer já tiraram tudo de mim. Escarro feito, assim termino.

Perdoe-me, se for possível.

Daniel.