segunda-feira, 28 de abril de 2014

Sobre cutucar casquinhas


Eu cutuquei a casquinha e imediatamente a ferida se mostrou: latejante, circunscrita num poço mais ou menos delimitado por bordas de pele rasgada num fundo róseo. Ela olhou pra mim com aquele costumeiro ziguezaguear de lábios, uma mistura de preocupação retida e constrangimento profissional velado.

- Como foi que se machucou?

Não gostava daquela neutralidade. As pernas cruzadas na grande poltrona vermelha. Apenas um tapete a afastava de mim numa distância menor que dois passos. Ela parecia flutuar. Como se estivesse meditando e algum poderoso monge a ordenasse para responder o que eu precisasse. O cabelo louro escorrido num caracol que terminava abaixo do pescoço era tão organizado que coçava o pedaço mole de pele entre o polegar e o indicador. Viajando em ondas perfeitas, fios paralelamente alinhados, perfeitos, perfeitos demais, ah! Por um momento imaginei algo muito pesado colidindo contra o firmamento daquele cômodo (um vaso de plantas, talvez) e ela se assustando, emitindo um grunhido esbaforido qualquer, como uma pequena galinha assustada, levando as mãos à cabeça e levando a desgrenha àquele penteado plástico e tosco. Ela se recomporia em segundos e não teria vergonha em me alinhar aos seus olhos de neblina, lançando mais uma de suas inúmeras interrogações.

- Eu me cortei com a gilete, me barbeando.

- Ah, sim... E como estão as coisas com a Olga?

- Nós terminamos.

Um esgar vermelho pintou sua pupila ao final da minha sentença. O silêncio se fez, e o silêncio dentro dele, e eu. Abaixei a cabeça para contemplar meus dedos que brincavam entre si, quase violentamente. Eu não responderia a nada que ela não verbalizasse, por mais tangível que a pergunta fosse. Ela pareceu entender isso.

- Onde comprou essa aliança?

- Ah, num lugar qualquer perto do centro. É uma aliança barata, tentei me desfazer dela ontem mas de alguma forma está travada no meu dedo.

- Entendo. E como se sente usando-a sem estar com a Olga.

- Normal...

- Como foi o término?

- Ela queria passar o Natal em Fortaleza. Eu agradeci o convite, mas disse que não poderia sair da cidade. Foi assim.

- Ela não o questionou?

- Sim, milhões de vezes...

- E o que você disse?

- Nada.

- E o que você gostaria de dizer?

- Você sabe.

- Não, não sei.

- Não, não, não! De novo, doutora? Você sabe! Que insistência em me fazer repetir esse assunto toda bendita vez que eu venho aqui... O que eu gostaria de dizer!? Gostaria de dizer que tenho uma irmã esquizofrênica que está perdida pelas ruas e que ainda tenho esperanças de revê-la. Gostaria de dizer que eu tenho medo de gastar dinheiro e um dia minha irmã precisar. Gostaria de dizer que não posso contar com os meus pais para me dar nenhum tipo de auxílio e, muito menos, para amparar minha irmã. Gostaria de dizer que eu também tenho medo de delirar e toda porra de voz que eu escuto eu fico pensando que pode ser alucinação. Gostaria de dizer tudo isso, assim bem gritado, entende? Está feliz, agora?

- Você está?

- Falar ou não falar isso, pra mim, tanto faz.

- Então por que você me disse?

- Porque é seu trabalho me ouvir. É pra isso que eu te pago.

Não surtira efeito. Ela apenas transportou o par de mãos cruzadas para o outro braço do aposento. Curvou o tronco, inclinou-se até mim, ajustou os óculos de armação retangular na origem do nariz e crispou os lábios. Eu nem sequer tinha tempo para sentir remorso, mas ela podia me ler como a um livro escancarado. Parecia aceitar meu pedido de desculpas inerte nas partículas da minha mente cuspidas pelos meus olhos.

- Você não pretende se relacionar com nenhuma mulher?

- Tenho me relacionado. Com várias. Eu vou levando dessa forma, é como eu vejo que é possível lidar.

- E, pelo visto, está lidando muito bem...

Meus punhos cerraram como se tivessem vida própria. Levantei-me, num supetão desordenado que quase me presenteou ao assoalho, mas ainda capaz de dirigi-la meu olhar mais odioso.

- Qual é, doutora. Ironia? Que artimanha mesquinha, mesmo pra você! Eu achei que seu objetivo aqui era me ajudar. É assim que vai ser? Eu sento nessa merda de cadeira, abro o meu coração, despejo meus problemas e tudo que eu recebo em troca é sarcasmo e indiferença?

Ela era capaz de falar sem mover qualquer célula, suspeito.

- Eu não estou aqui para te dar o que você quer, Tarcísio. Eu estou aqui para fazer com que você veja o que você precisa. E o tempo está acabando para você.

- Eu preciso que você cale a sua boca, só isso!

Quando deixei o aposento, dediquei meu último adeus, fitando-a por trás do ombro sem saber se eu sorria ou mantinha a raiva. Acho que fiz qualquer coisa do espectro do ridículo. Em algum lugar ela parecia triste, afinal...

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