segunda-feira, 22 de março de 2010

André - Parte I


Quando a depravação da minha alma sobrepujou meus valores morais, roubei seu diário. Tal qual sua face de traços simples, mas de perfeita simetria, as letras ocupavam todo o espaço, como se dependessem dele para o completo vômito daqueles segredos que fervilhavam em seu interior.

Querido Diário,

Escrevo com o peito estufado, em chamas. A grafia sairá tropeçando em si mesma. O fato é que talvez eu tenha encontrado a fonte de toda a felicidade, a maneira certa de conduzir a vida magicamente. Insisto em escrever dessa forma talvez muito ornamentada para que eu me lembre no futuro da excitação que, agora, ao mesmo tempo em que me inunda de suspiros quentes e profundamente confortáveis, aprisiona meu ser na iminência de um vício intangível. Sem mais rodeios: mamãe, em seu ensejo indomável de consumo, precisou dos meus braços para carregar as inúmeras sacolas que adquiria nas lojas de roupa do centro da cidade. Num momento em que andávamos e ela regurgitava suas futilidades, consegui me desvencilhar de seu pulso de gancho forte e pedi para que me encontrasse no centro da praça, quando terminasse as compras. Sentei-me num banco de madeira e vislumbrei a arquitetura de um gótico moderno que me rodeava. Uma igreja suntuosa, há pouco reestruturada, erguia majestosa circundada de árvores de copas largas, provavelmente até mais antigas. Um cenário muito bonito bem no miolo do complexo comercial. Mas aquilo não era novidade para mim, então logo deixei meu pensamento vagar em outros assuntos quaisquer. Adentrei num destes momentos em que o olhar se cansa de fixar pessoas e objetos e você se permite brincar de focar e esmiuçar as coisas, se esquecer delas e transformá-las em meros borrões coloridos. Permaneci naquele torpor por longos minutos. De súbito me retesei, atônita, precisando pressionar o encosto do assento pra suportar a perplexidade que me abatia. Havia uma silhueta que parecia ter se materializado a partir do ar, bem em frente à escadaria da basílica. Brotou ali, do vazio, como que anunciando a aurora do anoitecer. Naquele instante um elo se formava entre nós, ainda que só eu estivesse verdadeiramente acorrentada...

Sei que não sou a vítima (embora eu me enxergue assim nas minhas reflexões de autopiedade), mas há um conjunto de fatores que alicerçam meu furto. Para total compreensão, devo relatar – ainda que com uma linearidade duvidosa – os fatos desde o ponto de partida.

Thaís, objeto de meu amor puro e fatalmente corrosivo, era uma garota suave. Em tudo era completamente suave. Insisto nesse adjetivo porque Deus o criou com a única intenção de designá-la. Seus fios de cabelo, que atingiam a altura da bacia, flutuavam em perfeitos caracóis, nem sempre acompanhando a direção dos ventos. Olhos pequenos, de um castanho comum. A pele era levemente morena, oriunda da miscelânea de raças efetuada pela genética de seus pais, e salpicada de pequenas pintas aqui e ali. Dentes brancos, grandes. Mas raramente se abriam num sorriso. Preferia fazê-lo apenas com o lábio, suavemente...

Só se destacava pelo excelente desempenho no colégio, mas não gostava de todo o alarde que os professores faziam a seu respeito. Falava baixo, num requinte de educação que, naquele primeiro dia que nos falamos, logo me chamou a atenção. Estávamos num ônibus, e eu nem sequer reparei na sua silhueta quando a vi sentada ao meu lado.

- Com licença... – não era necessariamente tímida, mas não olhava na linha de meus olhos.
- Claro! Senta aí. Você que é a Thaís, certo?
- Eu mesma. Aposto que algum mela saco de professor andou falando de mim na sua classe, né? –
e nem falando daquela maneira ela conseguia soar agressiva.
- Algo do tipo... – sorri com sinceridade.

Sua naturalidade me encantava. Era como se uma jóia raríssima estivesse ali o tempo todo e eu não notara. A partir daquele momento, procurei me aproximar cada vez mais de sua pessoa. Finalmente me olhava nos olhos. Foi fácil, já que era de convivência harmoniosa. Sempre preocupada, parecia que urgia dentro de seu âmago uma necessidade crucial de entender as pessoas. Quando eu aparecia com um mísero corte feito por uma folha de papel, ela já se eletrizava em sua preocupação e logo queria saber todos os detalhes do incidente. Eu gargalhava, feliz e apaixonado, de sua euforia em momentos assim. Aquela atenção especial me cativou, e também me tornou um completo mal acostumado.

Criamos um laço de amizade forte. Muito forte. Os sentimentos passaram a se confundir. Existe uma linha tênue entre amizade e o amor puro de intenções conjugais. Até que - e lendo a folha de diário novamente parece que uma faca me dilacera a carne ao reviver aqueles fatos na memória -, ela conheceu um pintor no centro da cidade...

2 comentários:

  1. hihihi acho q jah sei o q vai acontecer!
    to anciosa para ler o resto *-*
    novamente, amei as palavras q vc usou!
    quero aprender a escrever assim T_T
    consigo ateh sentir a nostalgia e o peso no peito do narrador!
    parabens mais uma vez *-*
    e ve se posta a outra parte logo!!!!
    =****************

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  2. Então,as vezes, procuro palavras minuciosas para comentar em tuas criações.. isso porque me fascina perceber que um mesmo texto pode despertar infinitos ângulos, olhares, pontos de vista.
    É incrivel perceber conexões, e misturas
    de um mundo nada longe do real e ao mesmo
    tempo tão perto de ser surreal. Nossa, vou lê-lo mais e mais vezes, gosteei desse, em ambas partes. Muito bonito. Se eu pudesse um dia, escolher alguém que pudesse escrever um conto, na qual eu o pudesse vivenciá-lo, escolheria vc pra escrever.

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