sábado, 26 de janeiro de 2013

Hoje não escreverei sobre você.




Hoje não escreverei sobre você.

Ao invés disso, escreverei sobre as famílias. As famílias e suas estruturas tão distintas. Há quem ouse dizer alguma coisa sobre “família estruturada”. Quem pode? Há quem diga que a família é a base de tudo, o porto seguro, a mão cálida que te segura quando ninguém mais está por perto. Outra corrente aposta no oposto: a família está sempre estragando nossa personalidade com seus julgamentos deturpados e relações mal estabelecidas. Escreverei sobre os traumas de mães ausentes, pais violentos e irmãos prodígios. Escreverei sobre as várias brigas que presenciei em casa, tampando os ouvidos com o travesseiro e implorando para que os sons dos gritos acabassem. Escreverei sobre a fúria de uma mão que me marcou a face, que me levou ao chão. Escreverei sobre sangue e sobre gritos. E sobre como fui até você ao telefone, aos prantos, procurando remédio na sua voz firme e protetora. Você me pediu para te esperar na rua, e em menos de cinco minutos te vi tentando disfarçar a felicidade de me encontrar depois de tanto tempo – rir naquele momento seria zombar da minha tragédia. E rimos juntos.

Não, hoje não posso escrever sobre você.

Então escreverei sobre viagens. Sobre meu espírito aventureiro, alma inquieta, arredia e furiosa. As paisagens de praia, cachoeira e floresta. Como o cheiro do mar me evocava lembranças de infância que eu nunca tive, imagens silenciosas na minha mente de situações não vividas, que logo são esquecidas quando me bate o vento gelado da noite. Escreverei sobre os solitários passeios na rua. As pessoas estranhas perambulando na calçada, elas e suas vidas completamente desconhecidas. São tantas pessoas, tantos destinos. Tantas linhas que se cruzam e se divergem todos os dias, as mãos atadas, as mãos em tapas. Escreverei sobre como o cheiro da dama da noite me faz pensar em morte, mas sem desespero. Como se o aroma me abraçasse e eu me permitisse. E tão logo me viessem esses pensamentos, me lembrava de você, que ficaria com a face retesada e diria que eu não poderia ir embora e te deixar só. Toda beleza do mundo que eu não compartilhasse com você era a mais crua solidão. Dessa forma eu tirava foto de todas as coisas, tentando registrar todos os segundos, e quando esse tempo presente virasse tempo passado eu o mostraria e então seria também o seu passado. Você estaria mais ali que todos esses homens e mulheres e seus diálogos randômicos. Eles caminham na areia mas é você quem deixa marcas.

Não! Hoje me recuso a escrever sobre você.

Vou pegar um papel e desenhar pessoas e hospitais. Escreverei através dessas linhas sobre como as pessoas são diferentes em hospitais. E como eu gosto desses ambientes de uma forma estranha. Eles revelam com facilidade os avessos dos indivíduos, as qualidades que muitos insistem em reprimir. As paredes de cores frias, um cheiro sempre gelado que nos toca lá no estômago. Os parentes reunidos, os olhares cúmplices e a preocupação que por muito foi renegada agora estampada em faces carrancudas e lágrimas não economizadas. Sobre como tudo é tão branco, tão esterilizado que me faz pensar no paraíso. O coração na iminência de parar, membros perdidos e os poucos meses de vida. O peito que infla no susto da nossa maior certeza, mas nosso assunto menos tocado. E então escreverei sobre a morte. E assim não poderei escrever sobre você já que me representa totalmente o oposto, tudo que tem cor, tudo que é quente e acolhedor. E por vezes você me representa o inferno, o culminar dos pecados, meus pensamentos voluptuosos. Você me faz ir da lápide ao sacro, do preto ao branco. Conheci o meu avesso do seu lado e você sorriu pra mim, segurou minha mão com força. E quando nossos dedos se cruzavam numa empunhadura só, por alguns segundos eu ficava em dúvida de quais deles eram realmente meus. Acho que isso é reflexo da pura aceitação que nos colocou de frente.

Já disse: hoje não é sobre você que escreverei.

Decidido, então, escreverei sobre deitar na grama e olhar para as estrelas. Interessante como eu faço isso algumas vezes na minha própria casa, onde as luzes da cidade ofuscam o brilho do céu noturno, mas ainda assim, quando fito com força, consigo ver o universo engolindo a Terra. Quantas coisas ao nosso redor seríamos capazes de perceber se nos concentrássemos um pouco mais? Posso escrever sobre como todos nós estamos interligados por uma força misteriosa, de um diálogo entre a astronomia, a astrologia e toda a fé da humanidade, que nos molda no mesmo destino. Somos todos poeira da mesma poeira, matéria da mesma matéria. Difícil não acreditar numa resolução divina ou esotérica. E então aquela estrela pode então ser eu, eu numa constelação qualquer cumprindo um papel qualquer. Emitindo um brilho tímido que por vezes é ofuscado por outro brilho ou por outro astro. E me vem uma estrela cadente. Espero que não seja você. E quando uma daquelas estrelas se apagar, nenhuma se lembrará, e ela terá se apagado na mesma esteira do tempo que me acorda todos os dias, o esquecimento inegável. Você, não, não. Jamais te esquecerei... Sobretudo do dia em que foi no repouso da minha barriga que você viu esse mesmo quadro. Um sorriso tímido no rosto, o silêncio sepulcral mais adequado que qualquer barulho. A cumplicidade verdadeira não é palavra, é não-som. Quando os corações se sincronizam e os pensamentos se tornam um só. A expectativa de uma fusão corpórea e etérea. Não sei onde eu começo e você termina. Quando a frase é minha ou se veio de algum lugar da sua mente.

Deve ser por isso que não dá: sempre estou escrevendo sobre você.

5 comentários:

  1. Absolutamente lindo! Como esse tipo de sentimento me toca fundo! Cada impressão trazida pelo mundo se convertendo na lembrança do personagem enraizado na nossa mente. Uma fuga ineficaz: tudo que não é você é você.

    Você acabou de escrever um conto que entrou pros meus favoritos! Incrível (:

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  2. Tenho que concordar com a Júlia, um texto lindo! com um sentimento que toca por ser tão profundo. Como se a pessoa amada estivesse ocupando o interior do personagem até nos momentos mais indevidos. Em cada trecho é ele se afunda, mas repentinamente volta à superfície que é esse amor tão presente.
    Um arrazo! hehe

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  3. É sempre bom desapegar-se um pouco.
    Dar importancia a outras coisas além dele.

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  4. Muito bom o seu texto. Profundo com uma "pitada" de suspense. Perfeito. Real. Poeta Irineu Baroni.

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