quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Singular



TERCEIRA PESSOA

João e Maria entraram na casa de supetão. As mãos do homem envolviam a nuca da mulher enquanto a língua percorria cada ranhura do pescoço ávido. Os dedos contraídos numa empunhadura maculada. Calafrios imobilizavam todo o corpo da fêmea, os poros abertos, a respiração arfante, a volúpia escorrendo pelo lábio como um líquido fresco que o predador encontra de surpresa.

Colocou-a na parede, força desmedida. Ela não sentiu dor: gemeu. No momento em que sua cabeleira caiu defronte à face e ocultou seus olhos, Maria tomou uma postura mais agressiva. Fera. Agora eram as suas mãos que vasculhavam o terreno do outro corpo. Unhas se tornaram garras. Os botões foram despregados com força e dois foram lançados pelo aposento, libertos da costura. O peito exibido entre as janelas da camisa azul era o convite à nudez. Arranhou o tórax do parceiro e as fronteiras da dor e do prazer foram imiscuídas num caldo ácido em que ambos se mergulhavam. Ela mais.

Virou-se, revelando o dorso do tórax, moreno e brilhante. Os próprios seios outrora quentes agora em contato com a parede gélida. Ainda quentes. Insinuou a pelve para trás para que ele a pressionasse, mas naquele momento João cravejou toda a sua força na nuca da parceira, que gritou em angústia. Investiu a cabeça de Maria para o lado esquerdo, jogando-a ferozmente no assoalho. Atabalhoada, a jovem mulher lançou-o um olhar de reprovação e desespero, as pupilas tremendo na órbita. Ele riu, malicioso, e uma gargalhada suspirosa ecoou nas paredes e no firmamento. Um segundo depois a sua feição tornou-se de pavor, algo que ela interpretou como arrependimento. Sustentar o olhar de Maria, naquele instante, parecia pesado demais para o agressor.

Diante disso, deu as costas e deixou a casa.

PRIMEIRA PESSOA

Eu com certeza amava Maria. Quando irrompemos em sua casa de campo como um casal redescobrindo a intimidade, nada mais eu poderia dizer a não ser sobre a felicidade e o embasbacado sabor da paixão, que me envolvia em completude. Seu corpo era como uma extensão do meu próprio, o antegosto de todas as imperfeições que eu detinha. Eu o segurava, meu cálice de vinho, com a delicadeza que acariciamos as mais belas aves, no desamparo que o tempo pouco nos traz. Ela me dirigiu um sorriso entredentes, e eu percebi que éramos cúmplices de um silêncio peremptório, que não permitiria que firulas engolissem os segundos, apenas esses longos grasnidos de tesão.

Enquanto os tatos ralhavam o atrito da combustão de nós, eu provava com o paladar o seu gosto tão somente agridoce. O paradoxo de mulher que era - um receptáculo de diversos personagens. Como me encantava a forma como ela se desvencilhava entre todas as possibilidades de sua alma artística para ser uma surpresa a cada encontro! Frágil e instável, portanto facilmente minha.

Poucos pensamentos perpassam a mente nesses momentos em que somos animais, na busca pela completude anatômica e espiritual com outra pessoa. Mas quando ela se colocou de costas para mim, a cabeça colada em perfil na parede, risível e de olhos semicerrados, toda a automaticidade daquele instante foi tomada por uma lembrança, a única que eu deveria confinar no arcabouço mais obscuro.

Ela, deitada sobre o sofá, com o dorso exposto, cantando qualquer cantiga infantil enquanto me convidava para a avaria, com a língua saltando por entre os lábios a respingar. Lábios adultos e pálidos. Também se chamava Maria, outra... O antônimo em essência. Ou talvez nós sempre busquemos por alguém que carregue consigo um pouco de nossa perdição. Outra Maria: o cabelo emplastrado do desmazelo de quem peca em afabilidade. O sorriso amarelado e rançoso. Ela deveria apenas zelar por mim, era minha cuidadora! Jogava algumas ameaças e chantagens nos meus ouvidos, os ouvidos sem defesa de uma criança. Eu atendia, sem entender, passos trêmulos e escorregadios. Se ela porventura gritasse comigo eu perderia o único porto seguro, a única âncora possível, e eu não entendia nada sobre malícias, sobre o ser humano. Ela apenas pedia para que eu deitasse sobre ela, e me posicionava mais ou menos na altura das partes mais úmidas de suas costas. Ela continuava cantando “o bom menino o bom menino o bom menino obedece, obedece, obedece...” enquanto se movia como uma centopeia com sua ninharia, me fazendo deslizar na extensão de sua anca. Estalava a língua emitindo sons que eu não compreendia. Eu não compreendia nada. Apenas permanecia ali. Minha primeira lembrança de vida. Meu primeiro pesadelo.

De alguma forma eu me senti dotado de força, essa estupidez adulta de pensar que se pode trilhar o próprio caminho, força que poderia me fazer mudar a experiência do passado borrado. Ambas, Marias. Do belo cenário fez-se a névoa, aerando-se no terreno fácil da raiva. Se elas tivessem algo em comum, ainda que o mísero desejo de possuir algo de mim, agora eu poderia impedir porque eu já me livrara do maior fardo: da inocência. Maria, sua desgraçada! Irrompi sobre ela com a força de um homem completamente bestificado, e pude sentir o verdadeiro prazer quando sua pupila se dilatou em pavor. Suas costas agora não ficariam viradas para mim, mas para o assoalho, para o inferno, para a dor!

Agredi a Maria errada. E então, sustentar o seu olhar esmaecido e puntiforme, que no passado foi o meu olhar infantil, era suportar o seu fardo de inocência ainda intacta. E eu sabia que não seria capaz. 

Enveredei pelo cômodo, a tristeza transubstanciada num estranho sentimento de superação.

2 comentários:

  1. Começou bem o ano. Muito bom. Ler seus textos é aprender um pouco mais sobre o ser humano.

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  2. Estou chocada, impressionada e semiestática, ainda estou cá nos meus pensamentos tentando absorver tudo que acabei de ler. Quantas sensações vivi nessas linhas, meu caro desconhecido. Nos primeiros parágrafos me deleitei com a cena de paixão descrita, pensando quão bom deveria estar aquele momento íntimo, logo em seguida me vi com raiva daquele homem que transformou aquele momento de prazer em dor, e vendo o outro lado da história ( por sinal, que sacada genial, essa da 3ª e 1ª pessoa, amei!) me vi abatida e triste por aquela criança que sofreu horrores na sua inocência, e por fim me veio a pena daquela criança crescida que queria se vingar, e acabou por ferir-se mais uma vez. Belo e inspirador texto, Guilherme!
    Abraço.

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