domingo, 10 de julho de 2011

Escapismo - Vêda Castellamare


Era de um tecido tão fino, parecia seda! O paradoxo de uma seda metálica. Pendia sobre minhas mãos como se desistisse da própria existência. Bordada sobre si, caracóis disformes, verdes na essência, criavam redemoinhos que viajavam em todas as cores por sua extensão, e preenchiam o que seriam minhas têmporas – tão cansadas têmporas! A superfície bege sofria o dissabor do tempo ancestral que crepitava minha alma fugidia num fogo azul e vermelho, de inverno a verão. Eterno. E era pouco observado naquele caleidoscópio de cores vivas que o transformavam numa abóbada de falsa riqueza, falsa alegria, falso poder. E os redemoinhos banhados num macerado brilhante precipitavam ao redor das narinas, onde pequenos furos me permitiriam a dádiva do respirar. O abismo maior, circundado pela ideia de meus lábios estreitos, não era nada além de uma abertura para o vazio. O vazio de minhas palavras de dor inexprimível, ou de destino insosso, ou até de uma desgraça de sobremaneira, gélida e sem razão. A razão, tão aclamada, mas nada bem vinda nesses tempos. Os olhos permaneceriam em cárcere, haveriam de enxergar por entre as fibras daquele pano, o que não era tão difícil quanto parecia. A imagem da justiça cega, justamente o detalhe que me fazia uma figura tão imponente na corte. E tão frágil na solidão do próprio leito.

Eis minha geniosa máscara! Minha única fonte de liberdade que me salva do pavor absoluto que é ser eu mesma. Fui ao seu encontro, como que oferecendo um beijo, e ela ocluiu cada poro em resposta, colando em mim como um membro que reconhece sua verdadeira gênese. Senti meu cabelo padecendo ao resvalar do vento que zunia pela janela pouco aberta. Os fios de cobre, tão longos quanto as cortinas brancas, debatiam sobre si mesmos. Temendo aos arrepios a previsível mudança de comportamento. Sentada na cama, vislumbrei as montanhas forradas por neve que emergiam no horizonte. O emanar da tranquilidade, tão perto. E intocável. Alguns segundos se passaram... Meu rosto, outrora gélido, agora já podia sentir o rubor da pele que não respira. Era o sinal do dever que chama. Preenchi os pulmões com os ares daquelas montanhas, a única porção delas que eu poderia obter. Levantei-me na imposição de minha alcunha: a impiedosa e justa Rainha Mascarada.

- Cornélia, Liz, Arlene!

Tão logo a voz ecoou no primeiro anteparo, as três fidalgas, identicamente decoradas num longo e denso vestido azul escuro entremeado por fiapos de prata, surgiram com os semblantes pétreos numa reverência deveras teatral. Na face externa da porta, admirei o brasão – o castelo esculpido em mármore e o mar tentando desfazê-lo. A fortaleza que resiste às ondas gigantes, às intempéries. A qualquer coisa! Um nome que perpassa gerações... E vários fardos que morrem com elas.

Das três, que nada mais eram do que qualquer coisa entre a estupidez e a falta de beleza, apenas Arlene me interessava naquela noite. No silêncio salgado na boca que envolve quem manda e quem serve, as empregadas iniciaram seus fazeres noturnos sem delongas. O jantar na corte exigia um preparo minucioso para minha apresentação, sempre tardia, que trazia consigo as desejadas expectativas. Liz, que já empunhava o pente fino em cabo de madeira, alisava meus cabelos com uma força suspeita, segurando o couro cabeludo na altura da nuca. Sentada numa cadeira de mogno defronte ao espelho, eu podia ver seu rosto contrair em cada energia gasta, e aquilo me alimentava num amargo lascivo. Embora não soubesse ao certo que sentimento inundava o coração da tosca moça, podia até sorrir por trás do manto em resposta ao estranho prazer. Mas na honra que ela deveria sentir por ser fidalga pessoal da rainha, se percebia qualquer reação, recolhia-se sabiamente na mesquinhez de si mesma. Eu não precisei proferir uma sílaba sequer, e Liz sabia: reuniu quase todos os fios num coque horizontal, e deixou que em quatro pontos, exatamente simétricos em torno do centro, eles pendulassem livres, chegando à altura da cintura. Apenas um olhar em direção a porta e ela se retirou, não antes de reverenciar-me novamente.

Cornélia trouxe o vinho real, especialmente dedicado a mim, encheu dois cálices fitando-os como quem sente o paladar ser inundado por saliva seca e o gosto só no plano etéreo e fugaz da imaginação. Reverência. Foi-se.

Restou Arlene, negra e de seios mais fartos que os meus. Que os de qualquer uma. Lábios profusos. Olhos, bocas e cabelo também muito pigmentados. Meu antônimo perfeito. Prostrada a alguns centímetros, eu podia sentir o cheiro sujo de seu suor. Nojento.

- Seu marido veio?

Ela assentiu. Arqueei levemente as sobrancelhas como quem ordena a retirada. Ela assentiu. E apenas quando chegou ao limite da porta, virou-se para uma reverência que foi até a metade de altura das outras duas. Fechou a porta, que em menos de dois segundos foi novamente aberta.

O homem que surgiu, de meia idade, de meia altura, cabelos meio grisalhos e alma totalmente corrompida, entrou aos passos tímidos - embora frequentasse sempre aquele quarto. Levantei-me e fui ao seu encontro. Retirei a máscara e senti quase de imediato o toque de suas mãos ásperas analisando meu rosto. No vício e ao mesmo tempo reféns do silêncio, trocávamos nossa intimidade travestida na urgência do tempo que era pouco. As paredes de fato ouvem, haveria mesmo de ser daquela forma. O homem então calculava a textura, os traços, as curvas. Os dedos viajaram por tudo que residia acima do meu pescoço e por onde caminhavam devolviam a vivacidade e o rubor para o meu todo de palidez. E o sorriso quase risível que se desenhava em sua feição alongava-se gradativamente. Como quem perde a inibição num supetão de falsa intimidade, bebeu do vinho que sobrenadava no cálice dourado e vi seus olhos fechados como o convite do paraíso. Aproximei-me o suficiente para que só coubessem beijos ou palavras. Vieram palavras:

- Parece que tudo vai bem, minha rainha! Um resultado notório, além do esperado, eu diria... – a voz morosa num suspiro rouco, excitava-me por trás de minha realeza de obelisco, e eu resistia – Mas continuarei te visitando, se isso não for problema para Vossa Majestade.

Parei de resistir. Despi-me, num ritual costumeiro no nosso pacto particular, e fiquei nua para que ele me moldasse da forma que bem entendesse. Que me tocasse. E vieram os beijos, apascentados em pressa. Virou-me e, por trás, envolveu-me num vestido totalmente dourado, que ondulava sobre si mesmo e no assoalho. O busto escasso bem oculto. Eivado. E soprou ao meu ouvido que eu lhe lembrava o sol, o visitante mais raro. Mas eram beijos frios, que talvez só encontravam calor no terreno quente e desmesurado que Arlene deveria ser.

Antes de Hector me deixar, resguardou um último olhar, silente. Devassada pela névoa de seus olhos opacos, coloquei-me à deriva de um sentimento que eu traduzira como o mais tenro desgosto. Talvez eu não fosse a sua experiência oportuna e primorosa. Encarcerada naquele invólucro de pele. No meio do bramido da porta se fechando na sua cruel despedida, ouvi sua voz de terra infértil pela última vez naquela noite.

- Não esqueça sua máscara.

Sem reverência.

29 comentários:

  1. Eu simplesmente amo o modo como você coloca extremos no mesmo patamar. Essa característica deixa os personagens humanizado (e é difícil encontrar quem faça isso decentemente), então o conto se concretiza na nossa memória como se fosse um fato verídico que ocorreu diante dos nossos olhos. A sua escrita consegue nos dar uma visão que se assemelha bastante com a que Deus tem de nós.
    Quanto à temática, realeza e peble e sentimentos sempre resultam em histórias irresistíveis! Aguardo ansiosamente pela próxima parte.

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  2. Cada parte extremamente cativante, do início ao fim, os personagens vão se construindo na minha mente em fragmentos desenhados por completo. Não preciso ver fotos pra saber do rosto das personagens pq suas características mais marcantes já são descritas perfeitamente.
    Viciante, aguardo muuuuuuuuito tb a próxima parte >< hhuhuhuhuhuhuuhu
    e como sempre.. algumas imagens do texto me surpreendem de tão criativas como as do buraco do nariz hehe MUIIITO FOOOOOODA!
    te admiro mtu.. continua escrevendo bastante!!!
    eeeeeeeeeeeeeeee

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  3. vc escreve tão bem que quase não noto que to lendo. parece fato real. incontestável.

    E outra coisa. Por mais que os textos sejam pequenos, vc consegue otimizar o máximo de informação possível, sem ficar caótico, de forma que fique simetricamente perfeito. Como se um conto valesse um livro de 100 paginas. Não só pelo conteúdo, mas pela sua capacidade de instigar quem lê.

    Apesar das descrições serem muito detalhadas, vc não subestima o leitor, faz sempre figuras criativas.

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  4. Você é tão veemente na escrita que ao te ler me perco só pra te encontrar, sua escrita é tão real que chego a duvidar do que é "induvidavel".
    O detalhismo me deixou ofegante, extasiada, emocionada, praticamente sob efeito alucinógeno.

    Sua escrita é perfeita,
    (nunca me dei o prazer de dizer isso a alguém antes, não tinha pra quem dizer, agora eu tenho)

    Beijo, querido.

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  5. Acho que é a primeira vez que venho no teu blog, e confesso, fiquei encantada. Há tempos que não lia um texto do começo ao fim (entusiasmada). Tenho que concordar com o primeiro comentário; os detalhes são teu ponto forte (em algumas partes me lembrei até do clássico O Primo Basílio- um dos meus livros preferidos)

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  6. Demorei porque estava apreciando o blog, o template, as imagens, lendo cuidadosamente as palavras...

    Faço minha as palavras da Rubi: é a primeira vez que venho aqui e também me encantei...

    Me encantei com tudo, principalmente pelo português impecável(o que é cada vez mais raro na maioria dos blogs que leio hoje em dia)...

    Parabéns de verdade!

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  7. Gostei muito do seu blog, e você escreve muito bem parabéns

    http://www.blogtatudodominado.blogspot.com/

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  8. Fazer o leitor criar uma imagem sinestésica tão precisa dos detalhes encanta! Adoro esbarrar com leituras assim.. seu texto é perfeito neste contexto!

    ;D

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  9. Gosto tanto da maneira como vc constroi seus personagens! Todos tao reais, cheio de defeitos e medos como todo ser humano, e ainda sim ter um toque lúdico! Fantástico! Parabéns!

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  10. Ótimo texto ta de parabens

    estou seguindo

    comenta e segue o meu:

    http://espacoxboxbr.blogspot.com/

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  11. Lembra-me “As Brumas de Avalon”!A protagonista me parece tão orgulhosa quanto Morgana le Fay
    Mesmo não apresentando nada de fantástico,mistico,acabo colocando em minha mente nessa categoria. Parece um conto de fadas bem contado;acho que pelas palavras delicadas para expressar todos os tipos de sentimentos que rivalizam-se em um só personagem sem picos.
    Mas todos os rituais femininos,que talvez para mim tenham um ponto mágico,espatifaram-se quando o meio homem entrou...ai deixou de ser um conto de fadas.A principio ela me pareceu muito grande e quando o ultimo personagem apresenta-se e tudo do fim transcorre ela não perde nada que construiu mas fica pequena de certa forma...ao mesmo tempo.
    Concordo com tudo que comentaram acima.
    Parabéns,é sempre bom ler algo com minucias tão bem trabalhadas.

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  12. Descritivo e instigante! Transforme este conto num livro, garoto!

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  13. Hehe! Tive que me afastar por um tempo... Mas, tudo bem por aqui! :D E por ai como andam as coisas? Literatura boa se encontra aqui! Nos teus textos que parecem mais um mar de poesia! Parabéns!

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  14. lindo lindo liindo!!!!
    adoro sua riqueza em detalhes!
    foora q vc é o PROPRIO Aurélio ambulante!
    NÉE PUSSIVEEEL...

    arrasou Gui.
    Tudo é muito real, humano, sensível.
    vc é o cara.
    beijoooo

    Laiza!

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  15. Este comentário foi removido pelo autor.

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  16. favoritas já, como o cara disse assima
    escreve bem demais
    visite aqui tbm http://coisaspequenassimples.blogspot.com/2011/07/amor-de-muito.html

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  17. Falar o q se td já foi dito???
    Seguindo vc............

    bjos

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  18. Gostei muito do seu blog, suas postagens são otimas, tou seguindo se poder retribuir ficarei feliz :)

    http://blogtatudodominado.blogspot.com/

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  19. Não conhecia o blog... Muito interessante! Textos intensos, permeados por histórias instigantes e muito bem costurados... Parabéns pelo trabalho e obrigada pela visita!!!

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  20. Um texto assim,mesmo grande dá vontade de ler mais.

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  21. Tu não cansa de me deixar sem palavras após ficar hipnotizado por tal obra, não?

    Conseguiu mais uma vez, com louvor.

    adoraria conversr contigo qualquer hora dessa.

    Abraço!

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  22. Bom dia Guilherme!?
    Primeiro que saibas que você continuas o mesmo, senão ainda melhor!
    E, muito obrigada pelo seu comentário. Realmente eu estava precisando de uma intimada! rss Por não acreditar em mim mesma, às vezes eu me esqueço de como é bom estar por entre as letras.

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  23. Por uma frase me lembrou a argumentação de Kierkegaard, aliás, por algumas passagens. Gostei de como a angústia de em ser foi explorada...embora o detalhismo que, de certa forma, tange o simbolismo de Proust, não seja meu tipo de prosa favorita.

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  24. Surpreendeu-me o modo como você escreve. As palavras são reais, sensíveis... espetaculares. A história se move cativante.
    Sensacional! :)
    (Ah, estou seguindo)

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  25. Cara.. muitoo bom seu blog... parabens!
    Siga-me tambem, ok!
    http://www.komentandoo.blogspot.com/

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