quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Julia

E era exatamente dessa forma a grafia, sem o acento agudo. No colégio, os garotos insistiam em pronunciar o nome de maneira errada para irritá-la. Franzia a testa e suspirava, num ritual que mascarava seu desprezo pelos colegas e para si mesmo. Na verdade sentia-se bem os desprezando. Para o bom convívio social do mundo adolescente, porém, preferia considerar-se um ser humano com suficiente piedade alheia. Superficialmente, era a típica menina de traços finos. Exageradamente finos. Lábios de pouca carne, muito róseos, desenhados numa face de maçãs sobressalentes que davam um aspecto escultural para aquele rosto. Os cabelos eram exuberantes, de um bronze opaco que ganhava um tom escarlate debaixo do manto solar. Toda a sua personalidade se atrelava à aparência que, como as esculturas (mesmo as mais admiradas), eventualmente vinham a ruir ou perdiam pedaços continentes.

Vale ressaltar que tivera uma infância cheia de brilho, festas e fotos. Nascera numa família que não era de elite, mas se esforçava para viver a vida mergulhada em regalias materiais. Hoje já não existem famílias numerosas que se agrupam em comemorações exuberantes, mas uns dois ou três tios por ano traziam seus filhos únicos para jantares cheios de polidez e palavras rasas. O brilho era de um amarelo pálido; as festas, de uma monotonia maculada; e as fotos costumavam sumir nas gavetas de mármore. O amor dos pais, protetor às vezes em demasia, ora ou outra irritava. Cresceu se questionando se era amada e protegida por ser Julia Monteiro ou por simplesmente exercer o papel de filha. Estava clara a resposta: a segunda tese. Construiu, portanto, a personalidade da não-personalidade. Julgava-se capaz de agir da forma que quisesse, dependendo da exigência das situações. Não passava de falta de autoconhecimento, entretanto.

As crises familiares se davam em gritos baixos, perfídias silenciosas e jantares teatrais. Numerosas empregadas domésticas iam e vinham. As amigas sempre elogiavam a beleza de sua mãe e da casa, ambas de fato impecáveis. Sorria e suspirava. Era quase que uma mania, essa coisa de suspirar. A neblina que porventura oculta a realidade dos olhos das crianças se dissipava com o tempo. A verdade ficava irritantemente diáfana. Ganhou o costume de criar em sua mente situações de conflito, em que dizia as palavras mais abissais, gritava para os pais como o amor deles por ela era falso e cheio de contratos. Um ódio indevassável. Nas viagens imagéticas mais longas, agredia-os com tapas furiosos. Imaginava-se quebrando os móveis, usando drogas e levando homens para casa. Pelo menos, pensava, seria podre para os olhos de todos que quisessem ver. Na prática, embora os olhos se marejassem, apenas suspirava. Hábito amaldiçoado...

Num momento da vida onde os impulsos corporais sobrepujavam a lógica, entregou-se cruamente ao primeiro amor. Como uma flor de vida perene, abriu-se sem critérios. Expôs o âmago. Afinal, Hector personificava a beleza, o divino. A esperança! Os encontros eram sempre de poucas palavras e muito toque. O tato que encontrava em seu corpo o gozo mais profundo enchia seus sonhos das atitudes mais libidinosas. Dormia fora de casa, habituou-se à família do namorado (tão mais natural e simpática) e amou. Amou sem conhecê-lo. Que não lhe perguntassem a cor preferida do rapaz, ou seu gosto musical; ela não saberia responder. Quando se sentia enjoada de romances e flores, traía, numa tentativa de descobrir o que havia de mais sórdido em si mesma. Era o ensejo puro de se conhecer. Mas permanecia no relacionamento, e mais neblina se dissipava ao longo dos anos.

Mudou-se, e procurava notícias dos pais - agora divorciados - apenas em datas específicas ou quando a situação monetária se mostrava complicada. Ignorava as chantagens da mãe e desligava peremptória quando se prolongavam demais em diálogos fúteis. Sua nova meta era construir uma família que fosse diferente, repleta de amor e sinceridade. Hector concordava, como sempre fazia. As volúpias da vida íntima sem a preservação eram estonteantes, mas não obtiveram resultado. Culminou num sentimento pétreo de martírio que ambos do casal compartilharam. Mais tentativas falhas levaram-nos a um médico especializado.

Eis que a imunologia paradoxalmente se pôs contra a fecundação. A análise clínica demonstrara que o sistema imune de Julia criava anticorpos contra os gametas do parceiro. Não que fosse infértil, mas pra ter um filho com o cônjuge necessitaria de um procedimento laboratorial muito caro. Ele estava determinado. Só ele. Suspirou.

Conheceu outros modelos. Variedade da anatomia masculina! Sua silhueta mudava drasticamente de forma. A boca estava sempre manchada com batom vermelho e os cabelos não passavam da altura dos ombros. O quadril se alargou, preparando o envoltório da fertilidade. O excessivo sentimento de independência a transformou numa futura mãe solteira.

Levou os pais ao primeiro exame pré-natal, numa tentativa fracassada de criação de um ambiente familiar. As palavras preenchiam o ar como previamente ensaiado. Os sorrisos, sempre acompanhados de risadas curtas. Risadas que só se ceifaram quando a doutora comunicou, após uma cariotipagem, que o bebê era macho, e nasceria com a trissomia do 21. Mais conhecida como Síndrome de Down.

O diafragma se contraiu num profundo suspiro.

3 comentários:

  1. Personagens tão marcantes, tão crus, tão imperfeitos, tão humanos. Amei.

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  2. A Amanda disse tudo no primeiro comentário. Eu gostei da forma que terminou o texto da Júlia, não que eu tenha achado justo. Gui escreve o texto Julia II ? HEOHOUEOHO fiquei curioso agora rs muito bom *-*

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  3. usa um nome tao bunito como Julia para uma personagem tao retardada mental, azarada, puta e fria! humf u_u
    e Hector eh nome d cachorro.
    vc podia ter se esforçado mais nesse conto!
    tsc tsc
    mas deixando isso d lado, este eh outro conto mto bem escrito, parabens!
    =******

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