A verdade é que a medicina surgiu pra mim como uma
indumentária de compensação. Eu queria usá-la como um tampão para mimetizar de alguma
forma meus pecados, pecados que hoje não vejo com os mesmos olhos daquela
época - tão assustados e enojados. Ora, eu, apenas uma criança... Que
maturidade tem um jovem para decidir um futuro profissional inteiro? O rumo de
uma vida? Claro que o que fazemos é utilizar como argumentação nossas mais
abissais angústias, nossos mais assustadores pesadelos. Porque sobre minha
cabeça havia apenas um desejo gigantesco de me impor, mostrar minha capacidade
através do intelecto. Pelas palavras eu não seria capaz. Já haviam palavras
demais vindas de todas as direções, ondas de todos os tipos, tantas opiniões
fortes e personalidades já estabelecidas. E não percebia nenhum talento em mim.
Eu era apenas um casulo! E quanto eu me pegava me questionando “quem sou eu?”
experimentava uma das mais estranhas e vazias sensações. Ainda me sinto assim. Eu
não conseguiria gritar, implorar por ajuda ou deitar a cabeça pesada no colo da
Mãe e chorar aos soluços. No lugar, eu cerraria os punhos, a fronte. Estudaria
com um grumo seco na garganta e certo de que, se tudo desse certo e no melhor
dos cenários, eu só teria uma leve analgesia para um futuro certamente
deplorável. Em que eu decepcionaria as pessoas próximas, arrancaria tristeza
das figuras mais queridas e envelheceria completamente sozinho. Minguando.
As pessoas não entendem bem a homossexualidade nessa
sociedade e falam disso de forma muito leviana, como se fosse uma escolha
pessoal. Quando falam do assunto não se permitem alguns segundos para uma
reflexão profunda, de empatia verdadeira. Existe um asco desmedido que é o óleo
que faz girar as engrenagens desse roteiro tão mórbido. Sobre ser uma escolha -
bom, uma escolha consciente não poderia ser, e inconsciente eu também acredito
que não. Não há escolha no inconsciente, no fundo do oceano que a gente não
alcança com essas boias baratas que usamos pra navegar. Como eu, na inocência
tão bonita dos dez ou onze anos, poderia escolher sentir uma ereção totalmente
involuntária pelos coleguinhas homens? Isso era tão absurdo como a chuva sair
do solo em direção ao céu, tão absurdo quanto o fogo molhar a água. E nesse
momento existe uma cisão primordial entre o desejo e o prazer que vincula o
gozo à culpa, e sendo o gozo a nossa busca execrável enquanto vivos, no fim
estabelecemos um contrato inexorável com a incompletude e a infelicidade. Afinal,
que possibilidade existe de sermos correspondidos com qualquer migalha de amor?
Cada tremor de excitação vem acompanhado pelo ácido toque da culpa. Cada
masturbação antes de dormir não tinha o caráter principal de autoconhecimento,
mas era sim um terror absoluto com o coração acelerado como se eu fosse o autor da morte de alguém, ou de uma família. Por que diabos eu nasci com
essa maldição? Por que eu jamais poderia ser amado pelo que eu era? E os
pensamentos de morte me sondavam, sim. E não estava apenas preocupado com a
correspondência de um amor carnal, na verdade essa sempre foi a menor das
problemáticas, mas principalmente pela não reciprocidade das relações
familiares, de amizade e coleguismo. Decerto eu seria uma decepção, não importa
o quanto eu adiasse isso. E não há espelho melhor para nossos anseios do que os
olhos dos outros. O nosso reflexo são os olhos dos outros, existimos pelo olhar
do outro. É uma ingenuidade tremenda achar que nos delimitamos por nós mesmos,
que somos seres independentes de julgamentos... Por isso há tanto peso na
opressão. A opressão nos desenha, e nos desenha com cicatrizes. Ou melhor, com
feridas que nunca cicatrizam. Porque eu precisei anestesiar qualquer
possibilidade de vivenciar o amor e toda relação eu transformava em profundas e
complexas amizades. Entre alguns heterossexuais curiosos (que hoje se protegem
com discursos de ódio) e outros homossexuais igualmente tristes, eu coletava
algumas migalhas de afeto pra eu poder divagar mais tarde sobre futuros felizes
que nunca, nunca aconteceriam. Meu espaço na vida das pessoas era sempre o de “amigo-psicólogo”, conselheiro, alguém que ocupava uma posição importante e
privilegiada mas numa via unilateral que nunca vinha na minha direção. Lembro
bem: nessa época eu tinha muita inveja da liberdade das nuvens...
Parecia simples a possibilidade de suprimir todos os meus
desejos e estabelecer algum vínculo heterossexual para arrancar sorrisos e
abraços com os três-tapinhas que carimbam o glorioso cumprimento das
expectativas. Casar com uma mulher, ter filhos com ela. Hoje julgo isso tão
absurdo, leviano, mas era o mundo pra mim naqueles tempos. Outra ingenuidade.
Não existe nenhuma forma de silenciarmos por completo nosso desejo. E não
podemos exigir isso de ninguém! Na verdade, não deveríamos ser submetidos a
nenhuma tentativa nessa direção. Mesmo não tendo nenhum vínculo religioso
importante e sendo criado com completa liberdade nesse sentido, é inegável como
nesse cenário a demonização cristã do gozo aparecia de forma quase palpável. Ingenuidade.
Ingenuidade... O desejo é uma entidade. Viva, pulsante, mutável dentro de
certas possibilidades. Mas existe uma viscosidade que, ainda que lenta, permite
que ele escorra por qualquer moldura que se tente imobilizá-lo. Era questão de
tempo para que meu corpo se desprendesse dessas correntes que minha mente impôs
(e essa dicotomia corpo e mente também se desconstruía ao mesmo tempo, se
misturando no mesmo caldo que daria forma a qualquer coisa que sou hoje). Mas
se as próprias relações dos adolescentes são inseguras e instáveis sobre os
pretextos da “normalidade”, como imaginar algo saudável e não mutuamente
sôfrego nessas condições tão inférteis? E aí, o que muitas pessoas possuem como
memórias cheias de candura e saudade, se projeta na minha mente como arquivos
que eu gostaria de apagar, se pudesse. E não existe essa possibilidade. Os
casais vão se formando tão cedo na escola, as cobranças quanto às várias formas
de virgindade se esgueirando pelos comentários mais inocentes. De forma que ano
após ano eu comprava novas armaduras, me travestia de novas mentiras. Eu já
estava acostumado a ser uma mentira com pernas. E se você é capaz de ler isso
com algo além dos próprios olhos, vai sentir no fundo da garganta o quanto isso
é profundamente triste. Dia após dia me levantar para novas farsas. Noite após
noite me preparar para novas lágrimas...
Então não, não me venham com falácias. Ouço pessoas
enchendo a boca para vangloriar-se de não ter preconceito nenhum e que entendem
a situação e isso não é uma verdade, por mais bem intencionadas que elas possam
ser. E mesmo nessas horas o egocentrismo é tão colossal que há mais uma
preocupação em não levar o rótulo da homofobia do que em entender
verdadeiramente a situação que a outra pessoa passou. Desconstruir-se de verdade.
Não é verdade porque todo esse pano de fundo é impossível de ser visualizado
com a empatia supérflua que somos ensinados a dedicar ao próximo. Não é uma
questão individual. Mas do sistema, fruto coletivo e estrutural. Não pode ser
verdade porque uma pessoa heterossexual, classicamente, por mais esclarecida
que seja, não precisa olhar por quatro cantos com medo de apanhar enquanto anda
de mão dada com a pessoa que ama. E eventualmente apanha e sente dor e sangra e
morre! Não precisa viver com o manto da culpa, com o manto do “mas”, de ter que
se provar, reprovar, de ter que se destacar de outras formas porque essa ponta
solta arranha demais. Não deixa de ser chamada para sair com os colegas porque
talvez as outras pessoas sejam incapazes de aceitá-las como são. Porque talvez
os outros amigos não entendam. Não precisam passar noites de olhos abertos
imaginando como os familiares e amigos mais queridos reagirão ao saberem a
verdade sobre quem são. Mãe, preciso te contar uma coisa muito séria: sou
heterossexual! Tsc. Não ouvem dos religiosos como sua existência é simplesmente
errada, suja e pecaminosa, mesmo Jesus Cristo sendo escrito como um homem que
abraçou os oprimidos, de prostitutas à leprosos. Eu tremia de medo ao dormir porque eu tinha medo de ser levado pelo capeta, porque meu destino seria ao lado de satanás, já que eu não conseguia lutar contra aquilo. Religiosos que vociferam prontamente
os versículos mais escondidos da bíblia, mas não sabem amar o próximo e
abraçá-lo como é, acabando, por fim, de nos retirar o direito até de
experimentar verdadeiramente a fé. Podem sofrer vários dilemas próprios da
atualidade, como os frutos da violência urbana, mas não unicamente por serem
heterossexuais. E essas pequenas vivências dolorosas acontecem todos os dias,
em quaisquer situações, durante toda uma vida. E sobre as tristes expressões
como “opção sexual” e “ideologia de gênero” escondem a premissa básica e um
erro fundamental de achar que no fundo toda essa tristeza é uma questão de
escolha. Isso é absurdo! E quando vejo de outra forma, uma mais distante, de
cima, os caminhos que a minha vida desenhou: percebo que todas as relações,
destinos, tropeços e vitórias giram em torno dos nós apertados que minha
sexualidade estabeleceu na minha personalidade e psique.
E daí que a medicina surgiu como uma compensação. Não era
um sonho de infância, um campo florido com os cachorros travessos envolta dos
filhos felizes e minha roupa branca e casta na busca infinda e altruísta de ajudar o
próximo. Não, nunca foi isso. Era um teste, puramente egoísta, primordialmente
autocentrado, de me estabelecer como pessoa de valor. Porque qualquer possibilidade
disso me foi tirada ao longo da construção da minha identidade. De reconhecer
minhas qualidades e potências, por mais estúpido e mesquinho que isso pareça.
Mesquinho porque se eu pude ter acesso à medicina no ensino superior é porque
tive condições de frequentar boas escolas. Meus pais priorizaram a educação e
eu não precisei trabalhar, como várias crianças precisam. Fui privilegiado em
vários aspectos. Se vivesse numa sociedade sem desigualdade, onde a população
carente e negra tivesse o mesmo acesso e possibilidade que eu, duvido que eu
seria capaz de passar sequer no vestibular. Não tenho a ilusão de muitos
colegas desse estrelismo estúpido. Inclusive, foi na medicina em que conheci as
pessoas mais ignorantes. Mas foi sim a forma que eu encontrei de respirar
fundo, cravar minhas raízes e conseguir proferir com minhas próprias palavras:
é... Eu tenho algum valor. Eu realmente existo.
O pensamento raso e romântico leva a pensar que eu
não gosto do que faço e que serei um profissional frustrado. A direção é outra,
viaja em outro rumo. A escolha foi tomada com os elementos mais intrínsecos do
que eu sou, da fonte de onde vem toda a paixão que porventura foi reprimida ao
longo dos anos. Vem do desejo que eu tinha das pessoas olharem para mim com
mais candura, compaixão, amor. A escolha vem do que eu sou, do âmago de tudo. Do que eu sou! Dessa forma eu estabeleço como princípio me
virar para os pacientes dessa forma, e não sentir a dor apenas
intelectualmente. Estabelecer contato, vínculo sincero. Olhar para a vida de
uma pessoa negra e pobre e deduzir que seus fantasmas jamais me assombraram e
jamais me assombrarão. Entender os dilemas da feminilidade e não me permitir
julgamentos rápidos e interpretações desonestas sobre as mulheres. Não interpretar as vivências
das outras pessoas pelas lentes dos meus privilégios. Que talvez o verdadeiro fantasma
seja uma pessoa na posição em que eu me coloco. E dessa forma busco levar mais
humanidade e silêncio para uma profissão cheia de falas problemáticas,
puramente técnicas e robotizadas, instituídas para que formas mais singelas de
opressão se perpetuem.
Hoje eu entendo todas essas questões com mais maturidade
e encontrei uma forma de experimentar a felicidade partindo de mim mesmo. Não peço
pelo respeito das pessoas quanto a minha orientação sexual: eu exijo. Porque
não acredito que eu tenho que me colocar numa posição de subjugação e clamar
pela compreensão do próximo, pelo mais óbvio e negado fato: eu não tenho culpa
de nada porque não existe nenhum pecado em ser homossexual. Se antigamente eu
olhava com a estranheza as pessoas que se orgulhavam disso, hoje eu compreendo
bem: permitiu por um lado que eu me construísse como alguém muito mais
tolerante, de afeto mais fácil, e que experimenta o amor e o sexo com uma liberdade
parecida com a das nuvens; de outro, me cimentou com uma armadura resistente
aos mais diversos tipos de decepções e ofensas. Não me derrubo fácil. Choro pouco. Mas essa figura acanhada,
triste, que mora nas sombras, cheias de medo e pavor do julgamento alheio ainda
mora em algum lugar, eu não seria idiota nem desleal em ignorá-la. Em algum
canto de olho, em algum abraço apertado, em alguma chateação meio sem razão.
Isso nunca vai me abandonar porque vivemos num mundo absurdamente triste, que
não dá espaço para que as pessoas experimentem e vivenciem sua sexualidade de
forma plena e com a beleza do que é plural.
Mas persisto. Porque existo, e ninguém me tirará minhas
convicções e conquistas, por menores e mais egoístas que elas sejam.
no coments! :o
ResponderExcluirU-A-U. Nunca li algo tão sincero e tão orgânico, tanto sobre o assunto, quanto sobre qualquer outro tema. Você definitivamente tem um dom. Esse texto é sensacional, meus parabéns!
ResponderExcluirVisceral, pungente e pulsante. Sua pluralidade é linda, Gui! Seus amigos/amores/pacientes agradecem.
ResponderExcluirGuilherme, nem sei como cheguei aqui, acaso é que não foi. Somos parentes e vivemos juntos quando vc era bem novinho. Tivemos caminhos bem diferentes, mas sentimentos bem comuns.
ResponderExcluirExiste apenas um pecado nessa vida: ser alguém que não fomos feitos para ser. A identidade é o presente que Deus nos deu, por isso admiro sua coragem de aceitar a si mesmo como Deus te fez. Lindo texto, estou emocionada, parabéns!!! Que Deus ilumine seu caminho sempre!!!