quinta-feira, 3 de abril de 2014

Ela


Ela se debruçou na janela do seu quarto, que foi esculpida a frente da janela do meu quarto, como a esperança do beijo impossível. Ela se debruçou, enquanto eu fitava o seu olhar e pude ver que não havia nenhum lugar onde eu pudesse me refletir. Ela vagava com a cabeça de um lado para o outro, cantarolando minúcias sobre as aventuras vividas com um rapaz que acabara de conhecer. Ela, Simone. Simone sofre da contenção de afeto.

Ela dizia sobre o cheiro dele, almiscarado cheiro do paraíso, e como ele conseguia mandar mensagens nos menores intervalos que o tempo tem. Como ele era gentil e diferente de todos os homens porque a chamava de princesa desde o primeiro dia que a conheceu. Como ele lhe dera as mais belas flores, lindas orquídeas, quase imortais. Como ele era bonito, casto, justo... Quase um santo! Ela tão logo disse, trouxe o celular ao punho, acariciando-o com o dedo – acariciando-o. Ela exibia algo de uma inocência treva, ao tecer elogios aleatórios para a figura que conhecera outrora. Ah, como eu odiava essa inocência! Não apenas pelo desejo pulsante que me corre, mas porque havia algo de tão fugaz em seus amores de piscares que me mostrava que a experiência de viver não é nada além de um eterno facear com inícios, que trás o facear com os fins. Não gosto de facear com os fins. Então me agarro a ela, mesmo que apenas nos meus mais solitários devaneios, mas ainda assim contrapondo-a. Encontrei no meu amor a solução para o meu ódio. Que se diluiu em detalhes, no meu sorriso evidentemente enojado, nos suspiros que viajavam nas paredes do prédio. Eu estendi minha mão, o indicador apontando para qualquer coisa que se punha entre nós. Ela sequer notou.
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Convidei-a para que descêssemos.

Há algo de triste nos ventos de quarta-feira... Afinal, onde é que o vento nasce? Uma melancolia crepitava no quadro que a tinta cinza das nuvens pintava nas ruas e nos becos que fomos caminhando, um passo por segundo, um segundo em cada passo. Com o pescoço inclinado ao chão, me perdi entre as assimetrias das arquiteturas porcas, entre os farelos de alimentos lançados aos pombos e seus dejetos, entre os sapatos dos outros compondo músicas efêmeras, entremeadas pelo som das buzinas, das vozes, da alegria de Simone que trovejava sobre quão exímio ator o seu homem era. Ela também, se equilibrando sobre os cacos de si, do vitral que era e se esfarelava ao longo de sua existência. Seus pés sangravam, ela já comprou todo o desdém do mundo. Ela nunca gostou de atores. Essa frase, ansiosa para se fazer voz, foi impedida pelos meus dentes e o lábio mordido. Qualquer mínima ofensa, mesmo uma onda sonora levemente impetuosa, e ela se esfarelaria por completo. E eu quem deveria segurá-la em minhas mãos, entre os meus dedos, a apertar até a mais doce agonia. Ela enfim se dirigiu a mim, ela não sabia onde estávamos indo.

Eu não sei quem me habita, quem gera o automatismo da minha violência apaixonada. Mas eu lhe agradeço. Pois ali, embalado pelo ruflar gelado de uma chuva grossa, vendo o corpo de Simone todo pétreo, atirada ao chão molhado, a face estupefata, lagrimas... Ali eu pude nascer pela primeira vez. Amarrei seus membros contra os próprios membros e tapei sua boca com minhas duas mãos calejadas. Temporariamente - gosto daqueles lábios de damasco crispados pelo pavor. Pude vê-la se debatendo até a exaustão, como um casulo incompleto e assustado. Eu disse que era o seu facilitador, o advogado de sua metamorfose, o embagador da sua ira, e que ela não precisaria se preocupar. Não fez efeito. Movido por pulsos desconhecidos, derramei o meu escarro mais sujo sob sua face e observei-a se contorcer, meu gozo infinito ao ver o nosso desgosto agora equalizado. Ela era linda... E seu tronco se revirava, incapaz de conter todos os gritos que reverberavam ao lado do coração. Havia amor naquela região, eu bem sabia. No fim, o curso dos meus pensamentos, mesmo girando em trilhas tortuosas, me levava sempre ao mesmo destino execrável: Simone era uma mulher patética. Como era patética! Se a vida dela fosse objeto de arte, seria exatamente aquela montagem que exibi ali. Eu lhe dei o presente divino da revelação. Porque eu a conheci muito além dela mesmo ou de seu homem. Eu a possuí. Eu era o maestro final de sua performance. Bati sinceras palmas pra Simone. E até lhe arremessaria uma flor. Uma orquídea morta.

Quando eu me virei a encarar as ruas mais uma vez, vi borboletas de asas azuis contornando um poste desligado e senti um peso nas maçãs do rosto. Constrição no peito, respiração arfada. Continuar caminhando... É preciso continuar caminhando. Nada me resta. E pude entender que esse era o destino do primeiro aborto do destino. 

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