Ela se debruçou na janela do seu quarto, que foi esculpida a
frente da janela do meu quarto, como a esperança do beijo impossível. Ela se
debruçou, enquanto eu fitava o seu olhar e pude ver que não havia nenhum lugar
onde eu pudesse me refletir. Ela vagava com a cabeça de um lado para o outro,
cantarolando minúcias sobre as aventuras vividas com um rapaz que acabara de
conhecer. Ela, Simone. Simone sofre da contenção de afeto.
Ela dizia sobre o cheiro dele, almiscarado cheiro do
paraíso, e como ele conseguia mandar mensagens nos menores intervalos que o
tempo tem. Como ele era gentil e diferente de todos os homens porque a chamava
de princesa desde o primeiro dia que a conheceu. Como ele lhe dera as mais belas
flores, lindas orquídeas, quase imortais. Como ele era bonito, casto, justo...
Quase um santo! Ela tão logo disse, trouxe o celular ao punho, acariciando-o
com o dedo – acariciando-o. Ela exibia algo de uma inocência treva, ao tecer
elogios aleatórios para a figura que conhecera outrora. Ah, como eu odiava essa
inocência! Não apenas pelo desejo pulsante que me corre, mas porque havia algo
de tão fugaz em seus amores de piscares que me mostrava que a experiência de
viver não é nada além de um eterno facear com inícios, que trás o facear com os
fins. Não gosto de facear com os fins. Então me agarro a ela, mesmo que apenas nos
meus mais solitários devaneios, mas ainda assim contrapondo-a. Encontrei no meu
amor a solução para o meu ódio. Que se diluiu em detalhes, no meu sorriso
evidentemente enojado, nos suspiros que viajavam nas paredes do prédio. Eu
estendi minha mão, o indicador apontando para qualquer coisa que se punha entre
nós. Ela sequer notou.
.
Convidei-a para que descêssemos.
Há algo de triste nos ventos de quarta-feira... Afinal, onde é que o
vento nasce? Uma melancolia crepitava no quadro que a tinta cinza das nuvens pintava
nas ruas e nos becos que fomos caminhando, um passo por segundo, um segundo em
cada passo. Com o pescoço inclinado ao chão, me perdi entre as assimetrias das
arquiteturas porcas, entre os farelos de alimentos lançados aos pombos e seus dejetos, entre
os sapatos dos outros compondo músicas efêmeras, entremeadas pelo som das
buzinas, das vozes, da alegria de Simone que trovejava sobre quão exímio ator o
seu homem era. Ela também, se equilibrando sobre os cacos de si, do vitral que era e se esfarelava ao longo de sua existência. Seus pés sangravam, ela já
comprou todo o desdém do mundo. Ela nunca gostou de atores. Essa frase, ansiosa para se
fazer voz, foi impedida pelos meus dentes e o lábio mordido. Qualquer mínima
ofensa, mesmo uma onda sonora levemente impetuosa, e ela se esfarelaria por
completo. E eu quem deveria segurá-la em minhas mãos, entre os meus dedos, a
apertar até a mais doce agonia. Ela enfim se dirigiu a mim, ela não sabia onde
estávamos indo.
Eu não sei quem me habita, quem gera o automatismo da minha
violência apaixonada. Mas eu lhe agradeço. Pois ali, embalado pelo ruflar gelado de uma
chuva grossa, vendo o corpo de Simone todo pétreo, atirada ao chão molhado, a
face estupefata, lagrimas... Ali eu pude nascer pela primeira vez. Amarrei seus
membros contra os próprios membros e tapei sua boca com minhas duas mãos
calejadas. Temporariamente - gosto daqueles lábios de damasco crispados pelo
pavor. Pude vê-la se debatendo até a exaustão, como um casulo incompleto e assustado.
Eu disse que era o seu facilitador, o advogado de sua metamorfose, o embagador da sua ira, e que ela
não precisaria se preocupar. Não fez efeito. Movido por pulsos desconhecidos,
derramei o meu escarro mais sujo sob sua face e observei-a se contorcer, meu gozo
infinito ao ver o nosso desgosto agora equalizado. Ela era linda... E seu
tronco se revirava, incapaz de conter todos os gritos que reverberavam ao lado
do coração. Havia amor naquela região, eu bem sabia. No fim, o curso dos meus
pensamentos, mesmo girando em trilhas tortuosas, me levava sempre ao mesmo
destino execrável: Simone era uma mulher patética. Como era patética! Se a vida
dela fosse objeto de arte, seria exatamente aquela montagem que exibi ali. Eu
lhe dei o presente divino da revelação. Porque eu a conheci muito além dela
mesmo ou de seu homem. Eu a possuí. Eu era o maestro final de sua performance. Bati sinceras palmas
pra Simone. E até lhe arremessaria uma flor. Uma orquídea morta.
Quando eu me virei a encarar as ruas mais uma vez, vi borboletas de asas azuis contornando um poste desligado e senti um
peso nas maçãs do rosto. Constrição no peito, respiração arfada. Continuar caminhando... É preciso continuar caminhando. Nada me resta. E pude entender que esse era o destino do primeiro aborto do destino.
FINO! Excelente como sempre. Surpreendendo até o fim.
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