sábado, 5 de novembro de 2011

Caricatura

Eu porventura acordo com os olhos fervendo esperando a mudança de tudo. Pois os dias ainda deságuam na repetição imbricada de sempre – essa coisa de eu levantar e distribuir as partes de mim incompletas e quebradas para silhuetas igualmente desconhecidas, e então me afogar no etéreo gosto da pequenez disfarçada. A que ignora a fugacidade de tudo, a inconstância das pessoas, a inveja recoberta pelas cortinas da polidez, a violência que turbilhona o cosmos passando na frente dos olhos que insistem em piscar na hora exata. Qual a origem dessa carência abissal? E quando sento e fito a solidão – eis um encontro comigo mesmo, mais fugidio do que ansiado –, fico assustado por ter me desligado tanto de minhas bases. Já que me fizeram acreditar em bases, estou mais trôpego a cada manhã. E quando me pergunto quem eu sou, buscando-as, ouço a respiração arfada revolvendo a garganta e saindo pela boca, e nada mais. Ou talvez algum sentimento indecifrável no estômago, um tamborilo confuso e gelado. Não sou o que eu descrevo, nem o que sou descrito. Nem isso. Sou tudo como uma soma que diminui os montes empilhados ao vazio interno do pó, um ator exímio numa peça nômade, repartindo a atuação pelos cenários tantos. Começo a jornada um amontoado de matéria reciclada que vai descobrindo uma habilidade qualquer que retumba voz no crânio, que ensina: a morte é mais certa que o abraço amigo em noites de lágrima, sua importância para o mundo é equiparável a um grão de qualquer coisa, e que a certeza dos sentimentos de quem se ama de forma imprecisa é tão imprecisa quanto um dado lançado no chão liso. E tão logo essa certeza se enraíza, a fuga começa entre o que fora germinado. O espaço além, o vácuo preenchível somente por mentiras. E aqui é tão mais agradável, tão mais povoado! Penso que a racionalidade carrega consigo a maldição de não se saber lidar com o abstrato. O que há dentro da casca não é visto ou compreendido, a beleza do acaso genético ou sua ausência descrevem tudo o que um sujeito é. O destino então existe. Tudo mais são adereços, a roda da fortuna é um rosto belo que se desfaz no tempo. Porque precisamos dar forma a tudo para que a segurança frágil se complete. Dar forma a insegurança só poderia ser numa carcaça dos restos de nós. Frágil, pois essa forma só são os outros, uns mais ou menos afortunados, que trocam expectativas inalcançáveis porque as palavras não sobem. Ou sobem outras palavras, deformadas pela subjetividade inexprimível. Descompasso que sempre culmina num dia de tristeza, da qual todos correremos a passos largos. Esse fatídico fruto dos campos da veracidade. Não queremos aprender com ela, mas ela insistirá. Então, que compromisso eu haveria de ter com a coerência? Estou constantemente sentindo falta dessas palavras que não foram criadas, de órgãos sensoriais que não tenho, imaginando encontros improváveis e criando formatos de mim esculpidos pela vaidade. A mostrar ao outro algo que nunca fui, nunca serei, para então no universo em que mando eu, onde só eu moro, fingir que sou. Nisso o mundo roda, o verdadeiro. Essa briga com Deus pela unidade limitada em que me fez vai digerindo meus minutos. Queria ser vitral de todas as coisas, orgânicas ou não. Maldito é esse espaço pouco que eu ocupo, e portanto esse significado parco. Esse zodíaco previsível que gira com os planetas: os de pouco assoalho familiar se rodeiam de numerosos amigos de sorrisos fáceis e afagos fracos. Quem é traído quer vingança, quem se machuca um dia ataca, quem não tem fé se acha sábio. A identidade comum é inaceitável. Compremos fantasias! Mas quando a noite nasce, os esforços são em vão – no fim da jornada vamos dormir para experimentar um pouco da morte, em que as lembranças nada mais são do que retalhos disformes e sem significado em paisagens aleatórias. Quando acordamos, esquecemos a lição.

3 comentários:

  1. Muito bomm!!
    Resumiu muita indignação minha e me alertou pra más tendências que tenho.
    parabéns brow

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  2. Gostei muito desse conto. A forma que foi escrita direta que confunde nas palavras o sentimento do personagem. Muitos pensamentos e reflexões que certamente só você saberia fazer *-*
    Quando me pego lendo alguns dos seus contos vejo reflexões tão óbvias, mas tão difíceis de chegar nelas e você chega alcança e ultrapassa todas.
    Essa visão de mundo confuso, refletir sobre nossa existência é algo que certamente todos nós já tentamos e paramos para tentar chegar a uma resposta inatingível. A máscara que somos para os outros, para nós mesmos.
    "A mostrar ao outro algo que nunca fui, nunca serei, para então no universo em que mando eu, onde só eu moro, fingir que sou".
    EEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEE
    adorei!!! Seu blog merece o mundo lele heeh
    continua escrevendo!!
    abraçãoooooo

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  3. ... e eu NUNCA vou me contentar com cascas!
    Eu amo quando você fala sobre o que parece impossível: a alma, o tempo, o eu.
    Ótimo texto, mesmo.

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