quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Memórias Amargas


- Você não vai ver seu pai, Matheus?

Que chá amargo! Como um rio furioso que dissolve suas margens - minha garganta. Esse chá amargo. Portanto bebo-o devagar. Um gole, três ou quatro pensamentos. Tem muito chá nessa xícara gorda! Poucos pensamentos, na mente vazia. Então os mesmos se repetem. E se repetem... Duas bolachas de queijo. Beberico, mordisco. Queijo enjoativo!

- Todos os seus parentes estarão lá...

Levanto-me num supetão desengonçado. Precisava de música! Uma frequência qualquer numa rádio qualquer. Samba? Até que está bom... Poderia sorver aquele som ao mesmo tempo em que respirava. Inspirava, expirava. O diafragma se contraindo descontroladamente. Sinto como se a quentura do chá amargo fosse incapaz de desfazer a gélida sensação que preenchia meu interior. E que fazia até o chá parecer frio. Além de mim. Tombo a cabeça ao assoalho. Pendulo no eixo encarando meus próprios pés. E pendulo... O samba no clímax. Dois passos pra lá, um passo para cá. Em qual mês mesmo foi o desfile das escolas de samba? Quem venceu? E os passos me levam à janela. E me debruço.

- Vão perguntar por você. Acho melhor desligar o celular.

Lá na rua poucos transeuntes. Há uma mulher com uma sacola grande. Meio verde... Penso que são frutas. Toda em forma de ameba, ela. E atravessa... O sinal também verde, mas não há carros. Nem mesmo um barulho de cidade. Apenas o samba. O cabelo encrespado num coque, posso vê-lo agora que ela vira a esquina rebolando. Seriam mesmo frutas? Vou até a mesa e desligo o celular. Apenas hoje não quero a voz de ninguém. Nada de parentes me aborrecendo. Nada de amigos. Nunca os tive e agora eles aparecem...

- Não vai demorar muito até que venham até aqui...

Mas que merda! Não entendo essa mania de me perseguir! Todos fazem o que querem, no momento que querem. Quem são para me julgar? Meu irmão não dá as caras há anos. A irmã, fugiu o quanto antes para o exterior... Quem são eles para falarem qualquer coisa que seja comigo? Eu já nem ouço mais o samba... Esse ódio fulminante retumbando no crânio. Dor de cabeça... Desgraçadas, essas normas de boa conduta. Volto ao chá. Amargo!

- Mas você passou tanto tempo com ele!

Alguém cala essa voz! Não adianta balançar a cabeça, esmurrar a parede. Já tentei... Por favor, alguém a cale! Imploro! Eu sei que passei muito tempo com ele. Lembro-me muito bem: horas e horas fitando aquelas paredes brancas carcomidas pelo tempo. O assoalho de porcelana refletindo qualquer coisa. Sentava-me na cadeira branca, a olhar para qualquer coisa. Já não tinham revistas antigas que eu já não as tivesse lido por inteiro. E meu irmão cuidando de sua familiazinha de etiqueta. A caçula usurpando algum otário por aí. E eu lá... Meses e meses a fio.

- Tenho certeza que ele gostava tanto de você!

Cale a boca! Cale! Já fazia mais de um ano que ele nem sequer olhava-me no rosto. Não sabia quem eu era. Chamava-me pelo nome de meu tio, de meu irmão. Até pelo nome de minha mãe! Quando as complicações mais sérias surgiam, ele dizia que eu não cuidava bem dele. Que eu era um estorvo, uma despesa que deveria ter sido abortada. Eu olhava resignado, no esforço de não tampar os ouvidos. Com o olhar cético de um resignado complacente. E como aquilo doía! Todos os dias, ao acordar, rezava – mesmo sem Deus e sem fé e sem amor – para que ele ao menos pudesse me abraçar em sinceridade. E eu perdoaria tudo. Bastaria um abraço... Apenas um.

- Essas complicações acontecem...

E o abraço nunca veio! Não conseguia se mover, nem esboçar qualquer reação diante do mundo. Nenhuma lágrima fluiu de meus olhos, eu simplesmente sentava e pegava uma revista. Fingia que lia. De meia em meia hora olhava-o, desconfiado. Esperava uma reação milagrosa. E ao mesmo tempo preferia-o quieto. Em primeiro plano, que a memória retornasse! Os enfermeiros entravam e saiam trocando olhares comprimidos, um ou dois suspiros. Larguei o emprego, a dedicação precisava ser integral.

- E você não queria...

Evidente que não! Quem quer desprender horas e horas de seu tempo para cuidar em vão de uma peça humana que se reluta em morrer de uma vez? E todo momento em que penso nisso, um silêncio tenebroso envolve-me como um manto. Fúnebre em toda a sua extensão. Mas ele era um cadáver vivo, e nada mais.

- Você desejou.

E não posso vê-lo nesse velório, sabendo disso. Ele não me deu um simples abraço que tanto esperei. E eu não o verei. Afundo em amargura, apodreço em azedume. Esse fardo é eterno. Mas, enquanto houve tempo, eu fiz o que pude. E sei que ninguém jamais reconhecerá.

- Tudo bem. Sente-se. Beba outro gole de chá.

16 comentários:

  1. Magnífico texto! =)

    Acho que sei o que é ter alguém apenas com o rótulo de pai. Infelizmente.
    Feliz dia dos Pais pros Pais de Verdade!

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  2. Que lindo.
    Deu um nó na garganta.

    Gostei.
    Bjs, Fernand's

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  3. CONTO BELISSIMO *-*
    adorei a criatividade!
    a culpa pesa tanto que passa a ter mais voz que o proprio individuo.
    muito bom mesmo!
    continue assim!
    melhor blog que jah li ^^
    =**************

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  4. Obrigada pela visita!!!
    E parabéns pela arte das palavras escritas.
    =)

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  5. Mas, enquanto houve tempo, eu fiz o que pude. E sei que ninguém jamais reconhecerá.

    Esse trecho me pegou..

    Lindo!

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  6. A realidade é tão mais fácil de ser vista pelos cliques absortos de um teclado fronte ao monitor... Uma pena que a maioria de nós partilhe de experiêcias tão viscerais, sem dar a devida importância, fortuniamente não é seu caso, parabéns .

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  7. que INCRIIIVEEL !
    como tem tempo que não venho por aki..
    me senti surpreendida com tuas palavras.
    Muito tocante esse texto..penso
    que deve ser doloroso todo esse fardoo , sei la.
    mt realista..
    belissimo.
    ameii .!

    super bjo

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  8. Engraçado como as pessoas fazem as coisas e realmente, não é reconhecido nenhum ato, nada do que foi feito, mas sempre as criticas estão abertas a novas opções!
    E por mais q vc faça tudo oq vc pode, sempre terá algo de ruim nas suas atitudes, incrivelmente verdadeiro!
    Super lindo Gui, e pensar q tem tanta gente sentindo a mesma coisa hoje em dia não é mesmo?
    Beijooo da Sabrina ;D

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  9. Só li esse e já virei seguidor. Sinto que teremos figurinhas para trocar... Grande abraço

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  10. que texto belo e sincero.
    vc me elogiou e tenho que dizer que a admiração é recíproca.
    acompanharei tuas belas palavras.

    beijos

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  11. Cara... sua escrita é imprevisível; é espetacular.
    Algo no seu texto me fez lembrar da genialidade de Graciliano Ramos. Já leu o livro de contos dele, chamado Insônia? Se não, leia.
    Você deveria escrever todo dia.

    Abraço.

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  12. Um texto sincero que apresenta a realidade de muitos de nós. Lindas palavras.

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  13. Gosto como coloca as palavras. A fluência do texto é ótima.
    Grande abraço, Guilherme.

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  14. Flui tão fácil seus textos. Penso que na conversa deve fazer o mesmo, e me dá uma vontade absurda de conversar com você, só pra confirmar.

    E pensar que tantas pessoas vivenciam isso de fato, enquanto você escreve e nos dá a felicidade de um texto bem contruído e lindo, outros sofrem com o que achamos bonito.

    beijo.

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  15. Cara, as vezes não se trata dele, mas sim de nós fazermos o que precisamos fazer...

    Fique com Deus, menino Guilherme Navarro.
    Um abraço.

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