segunda-feira, 12 de julho de 2010

Guardanapos - Parte I


A cabeça se inclinava para a janela. Preguiçosa. A fumaça do cigarro se misturava ao vapor inebriante do café quente. E embaçava. Mas não tinha o que olhar do outro lado do vidro. Seus olhos, também de vidro - de cacos de vidro – se limitavam a observar a mancha fosca se alastrando em seus tentáculos. Os cabelos de um loiro quase branco estavam eriçados de um jeito pouco feminino. Rebeldes. Lábios róseos, levemente crispados. Rosto pontudo, maçãs sobressalentes. Olheiras profundas... Ela e a janela: foscas. E pela analogia que ela mesma fizera sobre tal semelhança, desprendeu-se um longo e triste suspiro. Voltou-se a xícara, esfriando o café em sacudidelas circulares. Do outro lado da vidraça não era possível dizer se era noite ou início de dia. Do outro lado de Gabriela, encontrava-se alívio ou simplesmente...

Dor?

Havia uma melodia calma que se repetia aos fundos do bar, já que ninguém estava ali para trocá-la. Que se alternava do grave ao agudo como se acompanhasse a velocidade dos pensamentos daquela mulher. Não saberia dizer a quanto tempo estava sentada ali, na última fileira de aposentos, com as pernas diagonalmente cruzadas. Mas tinha passado o suficiente para que a música se impregnasse em sua mente de tal maneira que era capaz de ignorá-la por completo. Como se tivesse sido elaborada unicamente para ser a trilha sonora de seu mais profundo íntimo. Uma canção fúnebre, sem voz.

Espalhados sobre a mesa, restavam seis cigarros. Apenas seis. Eles eram seu relógio, cuja iminência do fim despertava-lhe um medo feliz, capaz de dar vida a um sorriso de dentes à mostra. Qualquer sensação, até mesmo esse medo voraz, era completamente bem vinda. Ela poderia se sentir viva, afinal. Não que se importasse tanto assim. Ao galgar o pescoço de um lado para o outro como uma notívaga, submergia na crua indiferença dos assassinos e fazia daquele mesmo sorriso uma expressão sem vida. Vida, morte, amor, ódio... Já não eram símbolos que ela considerava fundamentais. Interessava o que era fugaz, transitório e prazeroso. Tudo se resumia ao presente momento, pois não existia conforto no passado. Resumia-se ao som que silenciava ainda mais o silêncio. E calava seu peito. Ao tempo. Aos cigarros que desapareciam sem ela ao menos perceber.

Àquele homem...

Uma silhueta que surgiu ao sabor do repentino. Embora parecesse fazer parte intrínseca daquele cenário desde o início. Foi apenas uma troca de olhares, mas Gabriela pôde ver com clareza aquela feição que destoava por completo de todas que já vira. Um rosto ofídico, de nariz puntiforme. Onde dois olhos enevoados faziam cratera. E fremiam de um lado para o outro da órbita como se estivessem sendo traídos. O semblante de um traidor. Ou de um traído.

A dúvida pareceu-lhe sufocante. Com a ponta da língua, molhou seus lábios secos mostrando-o o sorvedouro de sua sensualidade. Uma sedução salpicada de azedume e mergulhada em amargura. E um risinho de meio lábio – falsa provocação. Falso desdém. E dois longos segundos para se sentir completamente patética. Mas que passaram – até a autopiedade era falsa. No terceiro ela ouviu, pela primeira vez, aquela voz que a marcaria por definitivo:

- Posso?

De eco em eco, os fonemas retiniram em seus ouvidos. Acenando em afirmativo, viu-o colocar-se diante de si. Não o fitou. Bebeu mais um gole de café, o último gole, com a face retesada para a mesa e suas cinzas acumuladas. E tudo pareceu prendê-la. Um homem desconhecido, numa hora desconhecida. Num momento onde nem ela mesma se conhecia. Encarcerada nos próprios enleios, arrependeu-se impaciente por provocá-lo outrora. E ele com as sobrancelhas descansando tão calmas... Parecia confortável, quando pegou os guardanapos. Gabriela recebeu dele um, com uma caneta tirada de um bolso de sua jaqueta. Ele detinha o próprio par dos mesmos objetos. Sem entender, mas ao dissabor do tédio diante daquela atitude para ela tão piegas, esboçou um gemido de questionamento.

- Escreva qual é o seu problema aí, nessa folha. E trocaremos os papéis.

Atônita, viu-o curvar-se sem cerimônia para redigir. Aqueles olhos miúdos conseguiram perpassar a sua alma translúcida? Não entendia se ele estava de fato preocupado ou com o mero objetivo de exibir suas próprias cicatrizes. Poderia ser simplesmente louco, também. Mas não aparentava... Ao contrário, seu arquétipo era decerto familiar. Sendo isso ou aquilo, a possibilidade de evasão daquele torpor a fulminou como um choque.

Escreveu, sem controle. Os dedos tremiam numa excitação ácida. Era apenas uma frase. Apenas uma. Mas que a libertava da crisálida em que se alojara. Mesmo que apenas para uma pessoa. O retângulo branco, por segundos, foi como uma dimensão onde ela seria Deus. Que vai criando e recriando histórias e falsas verdades. Que pode apagar o que lhe machuca para desenhar casinhas simples e flores ao lado. Poderia inventar, causar a impressão que quisesse. Estava farta, porém. Diria a verdade. Mancharia de azul aquela superfície com a mais pura verdade da mentira que ela era por completo. O seu resquício de existência seria pintado ali. As consequências de pintá-lo - não importavam. Há muito abandonou as razões da consciência para abraçar o ilógico. O fosco, de contornos abstratos. O que tinha razão de ser, abandonaria. Como abandonou. E regurgitou: essa é a segunda gravidez que aborto.

E trocaram, sem ao menos dobrá-los.

Ao ler o guardanapo dele, foi tomada pela descrença. Na humanidade. E mais ainda nela. Por sua falta de humanidade. Pois foi incapaz de sentir medo ou piedade ou comoção ou até mesmo fúria ao ler: matei meu próprio irmão.

27 comentários:

  1. Nossa, completou o 30º conto com o mesmo brilhantismo do começo. É incrível como consegue descrever o interior dos personagens detalhando o ambiente. Parabéns! Você é fera! Continue sempre assim!

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  2. POR FAVOR, escreva a continuação o quanto antes!
    Sempre soberbo, oni. Está amadurecendo e evoluindo notavelmente na escrita, o que me deixa orgulhosa de você, virgo. <3

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Condene-os ou os absolvam. Estou mui ansiosa! rs

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. que incrível. Mesclei totalmente meus sentidos.. é boa a imagem com o texto, toda conexãao. Adorei Gui, vc me enche de orgulho, sempre ! beijo <3

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  7. "que incrível. Mesclei totalmente meus sentidos." 2.

    Fazia um tempo que não passava por aqui e fui presenteada com esse post MAGNÍFICO! Sério, fiquei arrepiada, o imaginei sendo lido por uma voz seca, grossa, fria, como a narração do Lavoura Arcaica (já viu o filme? veja!).

    A narrativa está primorosa e o enredo me interessou DEMAIS. Muito original, quero ler logo a continuação!

    =*

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  8. nossa... adoreiiiiiii...
    me prendeu de uma forma incrível...

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  9. Guilherme, viajei aqui.
    Que textoooo.....
    (tava com saudade de passar aqui)!

    Voltarei pra me prender de novo!A continuação!

    Te abraço!

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  10. Nossa!
    eu estou sem palavras, de verdade.
    pra mim este foi o melhor conto, e nem sei explicar exatamente o por quê!
    nao consigo tirar apenas uma coisa que me chamou a atençao ou uma detalhe q gostei apenas.
    o conjunto todo foi perfeito, sincronizado, harmonioso do inicio ao fim. impecavel.
    ainda estou estupefata!
    meus mais sinceros parabens!

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  11. Me envolveu de uma maneira inexplicável.

    Continue.

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  12. Muito bom, Guilherme!
    Agradeço a visita ao meu blog e o comentário feito. Com certeza espero nunca parar de escrever.

    Grande abraço

    PS.: já que vc curte e escreve contos, tem um amigo q compartilha desse gosto, o blog dele é:
    http://para-grafos.blogspot.com

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  13. O que era de se esperar do meu grande amigo ! Conto fabuloso Guizão, excitante, envolvente e misterioso. O final é surpreendente. Já disse que iremos fazer um livro com seus contos né? rs Adoro o mistério de seus textos, grande abraço !

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  14. Escreves muito bem, parabéns, gostei muito. Segunindo aqui.

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  15. Oba.
    Andava meio preguiçoso de procurar espaços novos com reais imaginários agradáveis. Valeu pela visita, estou retribuindo e me prendendo. Pode contar: vou ler cada linha daqui.
    ...
    Ah, pra não deixar de expor: gosto muito de sua forma de expressar... interiores. Assim como admiro a forma de Marinho em suas poetadas. Quem sabe, eu lendo um pouco do que vocês fazem, eu consigo deixar de ser esse curto e grosso soco direto no estômago?
    A seguir, cenas do próximo murro.

    Até mais, Guilherme! (Interessante, acho que é uma das poucas vezes que escrevi esse nome. Espero repetir mais vezes, em parabéns, e em obigados).

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  16. ¬¬
    "ObRigados".
    Foi sem querer, claro. Só corrijo porque ficou fofo demais. Alguém poderia me entender mal.

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  17. Vindo aqui para o feedback.

    Valeu a visita e e fique a vontade para outras visitas, qualquer relação entre blogs também é bem vinda

    Gostei do texto e estou lendo os outros, grande talento, grande visão

    abraço

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  18. Muito bom. Vou dar uma volta por esta banda, ler mais. Abraço.

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  19. Muito talento aqui, vou dispensar mais meu tempo pra ler você.

    Beijos.

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  20. riqueza de detalhes e uma alma fascinante...Gui..sou teu fã!!! Muito mais do que um conjunto de letras, seus contos sao criticas, romances, suspenses tudo isso em uma literatura incrivel!!! Parabens!

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  21. Parabéns, Guilherme!
    Quanta habilidade!
    Tornei-me teu seguidor.
    Visite o meu blog:
    www.litterateversus.blogspot.com
    Abraços Insulares!

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  22. Sabe ao que isso me remete? Folhetins. Publicado em partes, em capítulos. Sempre me arrepio quando leio narrativas desse tipo.

    E me empolgo quando começo a ler e percebo que já estou esperando pela próxima parte. Seus leitores estão ansiosos.

    Você não é um escritor-blogueiro qualquer, cara. Pense nisso.

    Abraço.

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  23. É impresionante seu talento na escrita. Devorei todos os seus textos, e ao final de todos eles, senti-me com ainda mais ansseios de outros. Espero ansiosamente por novos textos. Parabéns cara! Você tem muito talento!

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