sábado, 26 de junho de 2010

Samanta



É amanhã, o dia do ultimato. Ela virá amanhã. A dona de meus devaneios virtuais virá amanhã. Samanta...

O singelo deslocamento de algumas centenas de quilômetros que ela faria bastava para configurar aquela noite como palco do mais patético teatro de horrores. Sentado na cama, eu, com as mãos sobre os joelhos, penso em algo para pensar. As luzes já estavam apagadas, o pijama colocado. Recolocado. Mas deitar significaria um completo rompimento com a data presente para mergulhar na posterior. Quantos meses eu esperei? Quatro ou cinco... Quatro ou cinco meses de jejum sincero dos envolvimentos carnais. O banquete viria amanhã. E eu me imaginava degustando-o com uma voracidade lenta, como um esfomeado que tem pouco. Por ser pouco. Seria tudo tão mais simples se fosse questão apenas do corpo! No coração, a arritmia de um peregrino desconcertado. E mentiroso. Menti suficientemente bem para viver na mente momentos que eu sabia serem puramente ilusórios. Minhas fotos, minha profissão, meu peso, meu salário. E da sinceridade dessas tantas mentiras que eu me vi escravo. Queria aquele romance, idealizado nas várias juras de eternidade e proteção, e acreditava. Veemente. Deito, de olhos abertos. Há uma única fresta de luz que desenha um raio na parede.

Passo o cobertor por cima da cabeça. Sem de fato enxergar, vejo na escuridão daquele casulo manchas coloridas vagando pra lá e pra cá. De dentro dos meus olhos. Havia ali, e em mim, um clamor por ar puro – que latejava. E pisco, viro, estico os braços, dobro as pernas. O que eu faria com a doçura daquela mulher? Nas poucas vezes que nos falamos por telefone, sentia, em arrepios mornos, a suavidade de sua voz suspirada. Gargalhava sem maldade de sua inocência. Nem sabia como comprar as passagens... Ora, meu sentimento era sincero! Pensava nela, em presentes, em viagens. Na textura dos beijos. Eu distorcia os fatos para concretizar o nosso relacionamento que seria distorcido de qualquer maneira. Pela distância, por Deus ou pelo acaso. Reguei as terras do nosso amor com falsas verdades. E a paixão germinou. E tanto, que sinto medo. A pulsação me incomoda na orelha... Quero ar! Empurro a coberta para o lado. O risco de luz na parede...

E era sempre ela que ligava. Mandava mensagens aos montes. Acordava no meio da madrugada querendo ouvir minha voz. E aquele mel que escorria de sua meiguice me saciava. Era ela, sempre ela... Uma abelha sem ferrão. E foi ela que tocou na palavra amor pela primeira vez, com uma timidez preguiçosa. Amor? Mudo de posição. Ouço um gotejo tímido na cozinha. E me chamava de lindo, de príncipe, de tesão. E como ator principal vesti a indumentária de cavalheiro que eu não era, de uma maneira tão exímia que eu mesmo passava a duvidar – o que eu era, afinal? Mas há um espelho, cruel em sua realidade, logo em frente à cama. Eu o miro, e ele me vê: uma massa disforme de gordura. Uma quase esfera, amebóide. Patética. E goteja, e goteja. Se era amor, poderia ela entender essa fragilidade? Decerto, eu não aceitaria se ela fosse, na realidade, metade do que eu sou. Essa paixão egoísta, minha amargura. Era a esperança que sondava furtiva as minhas lancinantes conjecturas, a esperança que ela perpassasse minha aparência. E o que tinha depois? Uma mentira. Uma gorda e asquerosa mentira. Não queria chegar ali, na verdade despida, e só ali conseguia ficar. Está frio, e suo por todos os poros. Fome. E goteja. E goteja.

A torneira estava devidamente fechada. Como já estava na cozinha, aproveito para comer mais dois pedaços de pizza. E durmo.

18 comentários:

  1. Porra, isso ficou muito foda mesmo! Final inesperado, adoro isso :D

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  2. Admirável jogo de palavras, digno de vossa complexidade, meu caro amigo =D.
    Como de se esperar, um texto impressionante, adoro sua escrita. Belo final, angonizante a colocação de vosso personagem, contudo agonia encontra-se de forma corriqueira na vida de muitos.

    Sede de seus textos!

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  3. Adorei Guilherme, na minha mente, eu calculei pela imagem no começo que o fim da história seriá ao contrário. Surpreendente este fim! Parabéns!

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  4. Bravo! Bravo! Como sempre muito bom!

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  5. Gosto da forma que vc divide e liga os parágrafos. Fica incrivelmente bem descrita toda as sensações e sentimentos do personagem. Vc consegue fazer com que o leitor sinta um pouco de tudo que se passa nas vidas do conto. Foda bagarai.

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  6. Esperava um outro final. Adoro quando isso acontece! Mostra a genialidade do autor superior a minha.

    Sua escrita me lembra Graciliano Ramos, já falei? Ele é meu guru.

    Abraço.

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  7. Surpreendente final.
    Gosto muito de suas histórias. Faz um dia um texto 'Maria'? rs

    Obrigada pela presença em meu espaço. Volte, sim?

    Beijos doces

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  8. que INUSITADOO!

    eu bem pensaando outros finais pra historia

    que BÁRBARO gui!
    ameei, adoro me surpreender, tem nda
    melhoooor !

    beijooooooooooo

    *to esperando algum chamado laiza sab..* rs

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  9. muuuuito bom Guilherme!
    Fico até acanhado de comentar no seu blog.
    Tô sempre aqui lendo, mas é a primeira vez que comento.
    Não encontro adjetivos a altura, seus textos são simplesmente magníficos!

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  10. Muito bom o conto prost!
    e acabei relacionando com o filme Preciosa, que acabei de ver uahhuahuahuauhauh
    mais um texto fantastico!!!!!!
    nao sei como tira ideias tao profunda sobre coisas tao simples!
    as mensagens por de tras dos seus contos, que nos fazem refletir nao sao clichês! e acho q eh uma das coisas q mais me impressiona
    parabens!
    =************

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  11. Que importa se o que escreves é conto? crônica? poesia? teatro?...importa-me que que li do começo ao fim num ímpeto, e, que delícia de post...
    Abçs!

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  12. Criando finais inimagináveis. São esses os mais comuns, na nossa vida, já pensou?

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  13. Fala Guilherme! Deixei um Selo pra você no meu Blog, da uma conferida lá! Abraços!

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  14. eu me encanto cada vez mais com suas crônicas!

    beijo

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  15. Guilherme é o poeta das cores, o mestre das sinestesias. Suas palavras parecem metamorfoses de pensamentos, é algo excêntrico que varia de um romântico antigo para voz da modernidade, feito em pinceladas de Michelangelo

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