quinta-feira, 10 de junho de 2010

Marina

E quando das volúpias abrasadoras restaram apenas as brasas, fez-se silêncio. Não que fôssemos de muita conversa. Bastava ela abrir a porta e partíamos logo para as vias de fato. Porém, naquele momento em que cada um se vira para um lado da cama para contemplar a fugacidade do sexo, a atmosfera ganhava um ar lúgubre quase palpável. Clamava pelo decoro da verbalização. Embora talvez um pouco hermético, sou um bom samaritano... Abriria, embora não sem desprazer, as cortinas para o diálogo. E só isso bastava: ela o manteria sem exigir interlocução.

- Acha que isso está certo? Nós...

Fácil. Já era capaz de senti-la se munindo de argumentos. Pigarreou, erguendo o lençol numa austeridade de fêmea ressentida. A simples interrogativa que eu dissera ocultava um acervo de julgamentos silenciosos que, se outrora tecia um palco pecaminoso propício para a consumação daquele erro, agora era apenas sujeira a enfiar por baixo dos tapetes já imundos. Fingi um bocejo despreocupado. Marina sustentava de pé a nudeza desavergonhada. Fitou-me de soslaio por cima dos ombros e, a passos barulhentos, dirigiu-se ao banheiro no aposento ao lado. Podia imaginá-la defronte ao espelho, buscando o amor próprio tão ausente nos traidores. Depois reunindo conchas de água fria para reavivar a face. E para enfim galgar em si mesma e dizer:

- Nem comece com esse papinho, Gustavo. Esse moralismo todo não funciona comigo, você sabe disso. – como eu haveria de saber? Dela eu só conhecia os gemidos entrecortados, a respiração falha e essa falta de pudor bem mascarada. Até nas palavras! – Não estou te segurando aqui...

Sem fechar a porta, ligou o chuveiro. O som de chuva fraca me desfez do dever de pensar em algo pra falar. E em pensamentos sobre não ter o que pensar, acabei por me perder na pequena trégua que o tempo dava. A falsa chuva então se reduziu a um gotejo e outro. Pensei nela como uma cadela e ri. Algumas cadelas feridas latem, furiosas; outras choram. Mas sempre voltam para o dono. Ela latira e voltava para vestir-se. O cenho todo contraído e as sobrancelhas em finos arcos de ironia cravados na testa. Espreguicei-me em sua cama, ao som de outro bocejo - agora longo e sincero. Eu não poderia me levantar e ir embora, assim de supetão. Era fácil de prever os vômitos de chantagens torpes e as pragas, as maldições. Ela se contorcendo em prantos fingidos como se representasse a vítima de um engodo maligno do qual eu seria o articulador. O único. Não... Preferia suportá-la mais uns minutos (já que poucos minutos se passariam até que ela se convencesse de sua pureza) a sentir o gosto enjoativo da exacerbada emotividade feminina. Ou talvez eu não partiria pois sei que, sem muita cerimônia, desejaria voltar a possuí-la em breve. Naquele instante me parecia uma proposição insólita, mas há muito compreendi as engrenagens da carne.

- Eu não nego que sou pecadora: aceito. – continuou, com azedume, esfarelando um pó meio róseo sobre as maçãs do rosto para amenizar a aparência de notívaga. – Não vou ficar me crucificando por ser, antes de qualquer coisa, humana. O pecado é humano. E se na criação de Deus há espaço para o pecado, irei viver com ele e suportarei as consequências.

Quanta erudição! Mas não cabia me deixar seduzir pelo arranjo dessa desenvoltura na oratória. É bem verdade que essa ornamentação toda, ao sabor do meu julgamento, expunha com clareza uma fragilidade latente. Que pulsava. E só encontrava em discursos fantasiosos a anestesia para a dor viscerosa. E muito embora isto não comumente se sucede entre amantes: tive uma réstia de piedade.

- Mas você realmente ama o Gabriel?

- Claro que amo! – vociferou, num rompante teatral – Até no ato de trair eu estou manifestando meu amor por ele, você não consegue ver?

Ora, é evidente que amava! Não amá-lo significaria rever uma série de escolhas feitas ao longo da vida. E se admitir fracassado exige muita força. Exige dissecar cada proposta recusada e projetá-la num futuro que nunca virá. E se for belo: frustra. Exige lembrar das promessas poéticas de amor eterno e as juras tão bem ensaiadas. E se tudo se mostra muito efêmero: frustra. E os frustrados não se importam com o próprio caráter. Ou melhor, se acomodam pela incapacidade de libertação. Eis o ciclo: a traição era apenas um trecho sinuoso.

- Manifestando com mentiras? – pontifiquei, estranhamente protegendo meu irmão.

- Vê se tira essas viseiras, Gustavo! – e se ela estivesse tentando ser intelectual com essas metáforas, só conseguia me soar mais patética – Nessas mentiras que eu revelo o desejo de protegê-lo, não percebe? As histórias de amor da vida real são diferentes dos contos de fadas. Se não o amasse caía fora do casamento há muito tempo, nem precisaria mentir!

Contraditório, eu. Como poderia julgá-la? Se ela, altaneira, não se utilizava dessa incoerência como argumento, certamente almejava o cessar fogo. E o pescoço se virava para os ponteiros, em desalento, mais rapidamente do que os próprios ponteiros seriam capazes de girar.

- Logo o seu irmão chegará com as crianças. – sei que ele demoraria, ainda. Mas era um convite que ela sabiamente elaborara para uma retirada sem vencedores. Deveras convidativo.

- Bem, eu vou indo, então...

Recolhi as peças de roupa espalhadas aqui e ali, vestindo-as sem delongas. E vi, pelas janelas, os anúncios da noite no céu purpúreo. O pôr do sol, que fazia os pontos luminosos acenderem pouco a pouco pelo horizonte de concreto da cidade, mergulhava o apartamento já escurecido em mais penumbra. Num átimo de segundo, contemplei Marina com sua silhueta espavorida curvada no leito de nossa desventura. De olhos fechados e compressos. Estava ao resvalar da própria podridão. Trocamos olhares abissais: nos entendíamos.

- Quando posso voltar?

- Na terça-feira. Ou na quarta.

- Virei nos dois dias.

E nos despedimos. Rápidos sorrisos de meio lábio.

18 comentários:

  1. A compreensão entre aqueles que se querem intimamente, tarefa dificil porém maginifica.

    Abraço Navarro!

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  2. Fantástico como você escreve, Navarro!Bom demais!Perfeito este diálogo, verdadeiro ...é a vida como ela é!
    Meus parabéns!
    Passo a seguí-lo também!

    "Não amá-lo significaria rever uma série de escolhas feitas ao longo da vida. E se admitir fracassado exige muita força. Exige dissecar cada proposta recusada e projetá-la num futuro que nunca virá. E se for belo: frustra. "

    Uauuuuuuuuuuuuu....quantas verdades....profundas VERDADES!

    meus parabéns!


    Beijocas!

    Bia

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  3. Excelente, vaque!! Que coisa mais real D:

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  4. Um grande texto, gostei, mais vou reler mais duas vezes! Seu nome me é familiar...

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  5. Magnífico....

    Eu já disse e torno a repetir: você tem uma sensibilidade excepcional para escrever.

    Que orgulho de vc Oni x3

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  6. QUE PUTA! prontofalei!
    auhauhuhauhauhuhauhauh
    adoreeeeeeeeeeeeei o conto!
    muito bem escreto, sem duvidas!
    de fato eh dificil de entender a logica na justificatica dela, mas bem, n acho dificil existirem pessoas assim hoje em dia.
    quando eu vi q era com o irmao do marido q ela traia eu fiquei muitoooooo surpresa!
    nao imaginava!
    e vc sabe como eu adoro isso, ser surpreendida nos contos!
    parabens!
    voc~e só têm melhorado!
    =*********

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  7. Dá para sentir vários momentos da minha vida entre tuas linhas. Acho que você tem esta habilidade, de acrescentar imagens de extrema realidade ao texto.

    Fantástico, genial. Lembra um pouco o estilo do Dostoiévski.
    Foi bom te encontrar nesta imensa rede, rapaz.

    Abraço.

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  8. Simplesmente incrível como vc conduz o texto. Suas linhas são envolventes e prendem a nossa atenção. Muito bom mesmo, adorei!

    GigaBjus da menina dos olhos puxados! X***

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  9. Excelente texto, obrigada pelo comentario no meu blog...
    Passei a segui-lo tambem...
    beijos

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  10. Olá, Guilherme
    Obrigado pela visita e pelo comentário.
    Você tem um belo blog também. E teu ritmo é ótimo!
    Adicionei à lista dos blogs do DiVAGANTE.
    Abraço.

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  11. aaa, obrigada Navarr!! volte sempre :D um menino que escreve é sempre bem vindo.

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  12. Bacana saber que minha postagem foi util em alguma coisa...
    Beijos

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  13. adorei aqui, muito bom!
    estou seguindo,

    beiijo
    ")

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  14. Obrigada pela visita. Vou gostar de te ler, quero voltar com calma e devorar teus escritos. posso?

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  15. AMEEEEEEEEEEI !
    estou totalmente
    sem palavras pra este conto Guizudo.
    Que realista, que delícia na verdade..

    eu amei mesmo.
    não me surpreendo mais cm seu talento !
    AUHUEHA.
    se vc for um bom médico tanto quanto
    é perfeito COMO escritor..
    óH Deus, reserve na agenda desde já
    meus horarios contigo !

    =)
    sou apaixonada por vc.
    beijo

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  16. "Acho que você tem esta habilidade, de acrescentar imagens de extrema realidade ao texto." (2)

    Eu curti pacas a estória e o jeito como vc apresentou e explorou os personagens em poucas linhas (sempre acho isso fantástico em contos...). Porém, achei a narrativa muito truncada comparada com seus outros contos, certos trechos pareceram desconexos dentro do próprio paragráfo. Fiquei com essa impressão que a narrativa em certos momentos não pareceu tão natural qto em outros.

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