segunda-feira, 14 de junho de 2010

Bianca


E entre desventuras e dissabores, aqui estou. Afogada em amarguras. Entre essas cartas, de tantas cores, de tantos tamanhos. De tantas palavras. Formatos e formatações e épocas distintas. Mas a mesma grafia miúda. Em meio a essas folhas de letras já mortas espalhadas como um vitral sobre a cama. Fico de pé, eu: a tecelã desesperada. Diante de uma ruína que exerce um tipo magnético de fascinação. Meus olhos se estatelam de estupor. Mesmo já morto, o acervo. Mesmo tendo seu conteúdo extirpado pela mentira. Era isso o que eram: mentiras, e só! Extensão de uma alma que imprime sua fugacidade na escrita. E eu de pé, na tentativa de remendar aquelas migalhas do tempo de minha vida. Os cacos de vidro. Como, se eu nem sequer conseguia tocá-las? Então me dobro sobre a nuca e pendulo os olhos da cama para o teto. Para que as lágrimas resvalem pelas bordas, sem tocar os lábios. E no cárcere do silêncio eu me calo de boca aberta, mas me ocorrem lembranças...


Era um poeta em sua essência de ser, o Roberto. E se não houvesse um veículo para escrever seu turbilhão de ideias, recorrente em demasia, ele recitava ao mundo, ainda que meio a esmo. Numa faceirice... No modo de falar era trovador, vozeirão grave. Espécime raro de prógnato. Imponente em sua aparência esguia e por pouco mais baixa que a minha. Debates e debates e debates, até esgotar a fonte etérea de seus argumentos. E empurrava os óculos de aro pobre encimando o nariz. Irritado com a futilidade de nossa juventude e seus ídolos de barro. Lastimado pela supervalorização das aparências nos diversos julgamentos das pessoas, e se empertigava até com os mais silenciosos. Até nos olhares furtivos. Decerto sabia bem de sua pequenez como mero homem, mas elevava-se mesmo sem intenção. E queria mudanças. Também poeta pelo amor, que surgia em erupção em cada singelo afeto. Nos mimos diários, no telefonema preocupado quando eu me atrasava de propósito. Quando assentia compreensivo a cada tropeço meu, nos ciúmes e carências de mulher. Poeta pela vida: ao sorrir pro céu, pras crianças na rua. Ao chorar o desamparo da mendicância. Como eu queria esquecer essa benevolência toda! Seria injusto, mas que Deus me desse espaço para a injustiça! Ele me dizia ser “a” musa – e se negava a dizer “minha”, por maior que fosse meu esforço -, e eu não conseguia conter o rubor das têmporas. É bem verdade que em sua presença o que mais dava em mim era ficar vermelha! É o vermelho a cor do amor? Ou a dor dele que é? Pois permaneço.


A modéstia me impede de ir muito além, mas sou musicista. O que talvez me faz melódica até a raiz da palavra. E da forma como minha desenvoltura diminuta permitia, eis meu sorvedouro: amava-o em cada sibilar de nota, muito embora me incomodava dividir esse calor com o amigo violino. Queria algo que fosse inteiramente meu, nos enleios de minha falsa candura. Que existisse em minha função. Minha. Se devaneei, agora retorno a mirar a cama. Com a incisão de quem quer respostas.


Pra isso preciso recolocar os fatos.


A cidade entrou numa grande balburdia quando uma missão artística estrangeira viera selecionar alguns jovens para o aprendizado na Europa. Adolescentes ensaiavam apresentações perfeitas e sonhavam os ares de fora. E lá fomos nós, um alicerçando a auto-estima do outro. Sem fazer planos. Sem exigir nada. Ele com sua literatura e eu com minha música. Passei no teste e recusei a proposta, resoluta. Aleguei um motivo não de todo uma mentira: a superproteção de minha mãe. Não por isso.


E sobre o teste dele. Vejo-o diante de mim, quase brilhando, numa cópia de brochurão que me fizera da poesia que apresentaria a julgamento. Inspirado na musa... E minha inspiração, a de ar mesmo, é longa, para que eu possa abrir a folha mais uma vez:


Da temperança de meu torpor me faço súdito


Tresloucado na aquiescência de seus lábios tão perjuros


E na cadência de cara respiração prometo auroras


Com meu suspiro rente a pele – singelo profuso!



E pra sorver a sua essência interpelo lágrimas


Ao repisar e destoar os bálsamos de dor


E alquebrado me exorcizo dos fáceis júbilos


Me recolhendo ao cerne de meu labor:



Tu és a boêmia musa de meus sonhos resolutos,


Meu amor!


Aos soluços agora crescendo aos vômitos, de eco em eco, retomo quase titubeando: Roberto se apresentou aos juízes e foi reprovado. Foi o que me dissera, com uma postura de complacência que me fez ruir inteira em dó. Mas no fundo não importava tanto: aqueles versos eram para mim. Passando ou não no teste que fosse, nasceram pra homenagear a minha existência. E se eu o acariciava com afagos de piedade, por dentro eu era só gargalhada. Aos frêmitos em minha crisálida de ignorância. E me sinto idiota só de lembrar.


Idiota, sim. Ele foi. Primeiramente ele me dissera sobre a mentira, redimindo-se. Disse que era o sonho dele aspirar os ares de outras culturas e que preferia dizer a verdade a simplesmente desaparecer. Irada, contraí em ódio, em frenesi pela infidelidade. Pior: por ser desleal a mim. E mesmo que ele dissesse a verdade: ele não poderia ir, ele não poderia nem sequer pensar nisso. Pediu para que eu compreendesse, que me amava muito, mas era o mais lógico a se fazer, naquele momento. Lógico? Quem ousa falar de lógica aos apaixonados? Então gritei, completamente histérica (o que despertou um olhar de piedade que jamais esquecerei) para que fosse logo, o mais cedo possível. E que nunca voltasse!


No fim, virei as costas para ele e para mim. Suas últimas palavras, ditas com uma doçura cruel “É uma pena, Bianca, queria muito que viesse comigo...”, pareceram ricochetear pela eternidade, de quina em quina, parede em parede. Do passado ao futuro. O intervalo exato para que todas as imagens de momentos perfeitos me viessem à mente. Fiquei paralisada por minutos do tamanho de séculos, como estou agora, estupefata, desejando no abismo do meu âmago rasgar essas cartas. Queimar.


Mas elas eram minha única fonte de vitalidade. Ali estava minha bonança mesmo que atrelada ao passado. Não importa. Não vejo muita diferença entre minhas elaboradas ilusões e esses amores de chamas curtas. No fim, somos apenas eu, minha cama e minhas amadas cartas.

13 comentários:

  1. mto bom o conto!
    eu n sei pq, n gosto mto de cartas, quando as leio, me dah um sentimento ruim, mas que n sei explicar.
    enfim, o conto todo tem seu ápice no momento em que se lê o poema. eu fiquei realmente mtooo surpresa, as palavras, o conjunto, os significados me deixam com falta de ar.
    incrivelmente tocante.

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  2. Gui que lindo!
    Como eu disse, eu preciso sempre de um dicionario pq nunca entendo suas palavras dificeis NUH
    vc além de inteligente eh super culto
    OWN, c naum fosse meu melhor amigo ja eraa fI KKKKK
    te amo demais e como eu disse, vc vai escrever um livro que vai ser indicado pra ler pra fazer prova da ufmg *____*

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  3. ah, que lindo aqui.

    gostei dos títulos de seus posts :)
    obrigada pela visita querido.


    seja muito bem-vindo ao meu reino.
    um beijo!

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  4. Incrível sua capacidade de enredo!!
    fascinou-me na primeira frase...encantou-me com sua forma vibrante de descrever...

    Espero poder voltar e me deixar aqui por horas a fio bebendo em suas fontes mais profundas!!!

    Um carinho!
    Mell

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  5. Guilherme, sempre surpreende em seus contos.
    São tão lindos!!!!

    Um abraço grande!

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  6. POdes parecer nada haver, mas senti vontade de dizer isso!
    Eu as vezes queria ser como uma Bianca, gostaria que um homem escrevesse como quisesse que eu fosse...
    sei que isso parece um tanto egoísta da minha parte, ou até mesmo falta de reconhecimento da personalidade, mas assim que me sinto na maioria das vezes, quero que alguem comande meu interior, manda em mim e no que eu sinto.

    as vezes dói ficar sozinha, mas a dor da solidão me torna cada vez mais fiel a mim mesma.
    desculpa o desabafo, tive que fazer isso!

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  7. Belo Conto!
    Fiquei a imaginar o seu poeta...

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  8. Estou quase na metade do livro Um sopro de vida, da Clarice Lispector. Admito que é um livro de leitura difícil, contudo, bonita, como ela mesmo diz: ler cada palavra é como chegar ao climax.
    O que ela disse cabe perfeitamente nesse texto, pra você. Ler você foi delirante, Guilherme.
    E olha que sou dessas leitoras chatas e rabugentas, dessas que quando não gosta do que lê nem se dá ao trabalho de comentar.
    A leitura foi longa, mas não foi enfadonha. É isso, textos bem escritos, mesmo que contenham bastante linhas dão prazer de ler.
    Em nenhum momento senti vontade de parar. Isso é um excelente sinal.

    O prazer foi meu.

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  9. Concordo com a Dica. Foi um texto longo, mas não prolixo. Excelente para quem aprecia tua leitura.
    Parabéns, cara.
    O prazer foi nosso.
    Abraço.

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  10. Lindo teu blog...cara vc escreve muitoo...Parabéns...
    seguindo...
    um abraço...
    =D

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  11. O orgulho toma conta de mim.....

    Isso expressa tudo que sinto quando leio seus contos. Parabenizá-lo de novo pelos belos contos é insignificante diante da sua grande sensibilidade para escrever.

    Mas mesmo assim vou parabenizá-lo sempre =]

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  12. Lindo, muito bom o texto!
    Seu blog, assim como esse post, é incrível, recheado de talento!
    Parabéns!
    :*

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  13. As melhores crônicas que leio.
    Sabes o quanto aprecio vossa escrita, certo meu caro?
    Continue com isso.

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