quarta-feira, 7 de abril de 2010

Valquíria - Parte I



Uma aglutinação cor de barro floculava numa escarpa, pintando com seu vermelho desbotado aquele relevo íngreme e muito acidentado. Tão longe do centro da cidade... Assim era o vale do Tijolinho que, sem acesso decente às estradas, honrava o nome cedido pelos próprios moradores com suas casas de arquitetura simples e deveras frágil. Ao olhar de alguém distante, não se podia precisar se um espaço vazio era uma porta, uma janela, um beco ou um rombo. Tampouco identificar onde começava uma residência e terminava a outra. Sem pavimento. Essas regalias de privacidade do mundo moderno não cabiam ali - região fadada à exclusão.

Entretanto, o estereótipo que os marginais comumente possuem não permitia a realização de um julgamento verossímil de alguns residentes. Valquíria, um relâmpago negro que cujo caráter delicado se cristalizava numa carcaça de beleza, não exibia em seus gestos nenhum sinal de submissão diante das intempéries de uma vida dificultada pelo acaso. Os dentes grandes, de um branco perolado brilhante, revelavam juntamente com sua pele a ancestralidade africana. Estava sempre sorrindo. As linhas pontiagudas do cabelo se espiralavam num coque preso pouco acima do bulbo. Gostava de todos os sons, de todos os sabores, de todos os seres viventes... Gostava de cada detalhezinho e se admirava com a mais simplória manifestação de afeto. Só não gostava da noite.

Mas era dia. Quatro horas da manhã. Recusou o café e partiu logo para a limpeza. Tudo havia de estar limpo e organizado, mas as manchas escuras insistiam em se alastrar pelas paredes. Quando uma nova rachadura se instalava, suspirava e entristecia-se por segundos. Logo, agradecia pela existência de um lugar para morar e continuava. Limpava, mesmo com pouca água. Mesmo sem pano. Mesmo sem balde. Mas havia uma panela, e ela usaria para buscar mais. Pelos vãos, caminhos de terra, e porventura precisando perpassar pelos casebres alheios, chegara numa cisterna onde um amontoado de pessoas aguardava.

- Oi Val!

- Val, vou mandar meu filho para você hoje, hein?

- Que linda que você tá! Roupa bonita... Dona mãe ta querendo te ver sabia?

- Vê se não falta na igreja domingo minha filha... Sonhei coisa ruim!

Murmúrios quentes naquela manhã fria. Ela se aquecia. Cerca de um quarto do vasilhame enferrujado já era o suficiente. Voltou e ferveu-a - comedida, para que não muita água virasse vapor. O cheiro vertiginoso do café engolfava o estômago. Pela janela: o sol a zênite... Recusou também o almoço, agora já exibindo o tão usado vestido com os borrões coloridos de tinta. Um de seus alunos o fizera num momento de abstração profundamente criativa. Valquíria muitas vezes se pegava tentando enxergar cogumelos, chapéus e nuvens naquele mosaico disforme.

Exímia professora. Acomodava as crianças, ensinava-as o pouco que sabia rabiscando com um tijolo o único muro cimentado do lote. Mas havia pouco espaço e, também, pouco elas queriam aprender... Iam mesmo pela comida, por um biscoito e pelo café. Ou talvez ali era um bom refúgio.

- Tia! Tem leite?

- Podemos brincar de pega-pega?

- Tia Vaval! Mamãe ontem disse que a gente é pobre porque a gente é preto. Como faço pra ser branco?

- Tava com tanta fome ontem que até uns tijolinhos eu comi! Por que eu tenho esse barrigão se eu não como nada de nada?

Como amava as crianças! Não tinha leite, não tinha espaço, não tinha justiça, não tinha verdade. Nem mesmo saúde! E elas riam, gargalhavam com as mais singelas piadas. Brincadeiras de roda, paródias inventadas pela improvisação ou um simples “corre cutia” já marejavam aqueles pequeninos olhares com estrelas iluminadas da mais pura felicidade. Valquíria compartilhava daquele êxtase e por algumas horas reconstruía a experiência da infância. Abraçava-os em punhos fortes de grilhões de aço!

Mas a noite sempre chega. E com ela os pesadelos... Os tão vivos pesadelos.

4 comentários:

  1. AMEI
    DE VERDADE!
    quando vc me disse q iria escrever um conto q se passasse na favela, n imaginei q fosse ler o q li, eh uma especie d liçao d vida, nos q temos tanta coisa, reclamamos tanto, e eles q n tem quase nada, riem, brincam.
    ADOREI!
    me surpreendeu bastante!
    continue assim!
    *________________________*

    =**********

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  2. *-----* muito boom !
    Doido para ver a continuação rs

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  3. Uma coisa é fato: quem lê seus contos consegue sentir totalmente os que os personagens sentem.

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  4. Gostei muito deste.
    A proximidade com a realidade foi infinita Gui.
    Acho legal demais vc materializar alguns reflexos da sociedade, em seu talento para escrever.
    Beijoo..

    ôh alegria que eu sinto, de ter um ser humano cm vc, na minha vida !

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