terça-feira, 27 de abril de 2010

Pedro e Liz - Parte I


As perninhas não o sustentavam. Aos risos, caia e retomava a empreitada. Modelado numa massa rósea e perfeitamente lisa, Pedro ainda era um bebê quando a mãe revelara suas duas outras famílias. A criança, diante disso, persistia em seu movimento amebóide, no qual, através do tato virgem, descobria o calor, o frio, a pressão e a dor. A visão, redonda e maligna, se unia à audição submissa e fotografavam juntas o pai aos berros, esmurrando paredes ao sabor da raiva. Vanda, a mãe, fugira.

Na boca ágil dos vizinhos: uma hecatombe sem precedentes. Na construção do arquétipo do garoto, porém, o incidente parecia refletir pouco. Dotado de uma polidez maquinal, exibia seus dentes perfeitamente cuidados em todas as situações em que sua etiqueta natural mandava fazê-lo. Manipulando um estrondoso acervo léxico, ressuscitava palavras em desuso e citava autores pouco conhecidos, lapidando intelectualmente seu caráter. Livros pelo tamanho. Discos pela velhice do músico. Firmou-se uma carola bondade esculpida numa exímia educação, vista com antipatia pela maioria. A presença familiar era nula. O pai, ranzinza em sua essência deplorável de traído, embebedava-se todos os dias, vomitando ofensas normalmente incisivas e invertendo os papéis dentro do casebre solitário. Ainda assim, nunca brigavam - Pedro era incapaz de enfrentá-lo. Ou de enfrentar a si mesmo.


Diante disso, numa fuga que ele mesmo não reconhecia, criou um apreço pelo ambiente escolar. A construção de alvenaria que se instalava ao longo de um barranco e vez ou outra entrava em paralisação por semanas era onde aprendia, além do conhecimento científico, o básico das relações interpessoais. Crianças geralmente se unem ao bel do acaso, para saciar as peripécias e atingir um determinado nível de auto-afirmação. Na juventude, as amizades alicerçam-se pelos gostos. Formam-se grupos. E ter uma realidade compatível à de Pedro era incomum. Excluía-se. Acostumou-se, então, a ter convivências rápidas e coleguismos efêmeros, enraizando a funesta retórica em que as pessoas se unem por mera conveniência.


Em certa ocasião, Diego, que lhe ilustrava perfeitamente o perfil de um sujeito extremamente débil e pegajoso, surgiu no colégio com uma ferida no braço esquerdo. Uma nódoa escarlate parecia polida por um medicamento branco, que mergulhava nas marcas profundas que supôs terem sido trabalhadas pela mandíbula de um animal feroz. A simples aproximação do colega o desconcertava.


- Veja, Pedro! Meu cão me mordeu... – murmurou, mas parecendo mais feliz do que triste com o incidente.

- Legal... – não o encarava, mirando um ponto qualquer no quadro negro.

- Ele é grande, todo peludo. Pus o nome de Simba. Vai lá em casa pra você conhecer!

- Costumo passar muito tempo estudando... – propositalmente, deixou que o silêncio pairasse para atenuar o efeito das palavras que seguiriam. – E você sabe disso, embora viva chamando...

- Estuda nos sábados e nos domingos? Duvido! – como Pedro se calou, continuou na ofensiva. – Você passa muito tempo sozinho, isso faz mal! Já te contei que eu tenho uma irmã?

- No mínimo dezesseis vezes essa semana.

- Ela toca violino muito bem. Hoje ela vai apresentar no anfiteatro pra escola toda e você, querendo ou não, a conhecerá!


Girou o pescoço e focalizou Diego, deixando-se levar por uma comoção repentina. Ele mostrava se preocupar. Isso o amedrontava... Por mais fastidioso que fosse, o talvez único amigo não parecia se importar com seu temperamento seco, vestindo sem nenhuma vergonha a carapaça de um bobo. Quando o sentimentalismo se esvaia, enxergava um ser humano grotesco diante de si, que em sua ignorância o enojava. Não se sentia imundo por se considerar superior.


Inverno, Antônio Vivaldi. Todas as cadeiras do pequeno teatro da escola abrigavam, maravilhados, os alunos de diferentes faixas etárias, mas igualmente surpreendidos. Mesmo diante da falta de estrutura para uma apresentação decente, o som do violino trabalhado em ébano ricocheteava no firmamento e nas pilastras calcárias atingindo com precisão o âmago dos ouvintes. Cada nota entoada dava continuidade infinita há uma série de sentimentos que emergiam das entranhas, impossíveis de serem contidos. A racionalidade de Pedro não o deteve de pensar que aquela música deveria ser destinada a sua pessoa. Imaginou paisagens gélidas, campos cinzentos, a ausência de cor e calor em imensidões sem vida. A estação em que não há frutos ou folhas, onde paira o manto etéreo da morte. Sentia-se nu, como se todas as suas verdades já fossem do conhecimento de todos. Os músculos cediam, frouxos, e era invadido de arrepios sucessivos. Tremores quentes. Estava completamente à vontade. Ao seu lado, paspalho, o irmão vivia uma evidente erupção de orgulho. Invejava-o por não invejá-la, e sentiu pena por ele não possuir algum tipo de talento comparável. E pena de si mesmo.


- Incrível, né? – cochichou.

- Sim, admito! Qual é o nome dela?

- Liz. Ela é irmã só por parte de mãe... – migalhas de frustração eram fáceis de serem notadas, mas Pedro ignorou.


De feição rígida, impenetrável, a garota que devia ser no máximo dois anos superior aos seus dezessete empunhava o arco como uma guerreira com sua espada. A face pontiaguda ora sorria e ora se enrijecia, como se ela mesma fosse vítima da magia que sua arte conjurava. Os cabelos ruivos dançavam. O vestido de seda púrpura levitava em senóides sucessivas. Mas não ventava. No fim daquela luta que ela travara e vencera, todos levantaram. Muitos aplausos. Pedro se viu incontrolável em sua euforia. O silêncio pareceu um pesadelo. Diego cortou-o.


- Vamos lá, quero que ela te conheça!


Liz exibiu um sorriso travesso ao vê-los, já na rua defronte ao colégio. Tremia, exibindo sorrisinhos tímidos muito semelhantes aos de seu meio irmão. Em contraposição à postura firme de outrora, ostentava uma doçura quase palpável, e fez Pedro rir de sua insegurança.

- Fui bem, meninos?

- Claro mana, foi perfeita como sempre!

- Eu também gostei muito.

- Você! Você é o Pedrinho que meu irmão tanto comenta? – totalmente desconcertado, o garoto paralisou-se de boca aberta. Pedrinho? Diego pareceu entendê-lo.

- É ele mesmo! Tem como você dar uma carona pra ele até ali perto do parque ecológico?

- Claro, claro, entra aí!


Falaram muito durante o percurso. Sobre música, sobre ciência. Até sobre desenhos animados. Sentiu-se totalmente bem, não conseguindo evitar a curiosidade que seus olhos palpitantes possuíam diante da motorista ao seu lado. Liz lhe parecia perfeita; Diego, nunca tão tolerável.

- Nesse fim de semana posso te visitar, então? – se impressionou com a naturalidade com a qual as palavras vieram ao ar.

- Tá marcado!

- Até lá, amigo do maninho.


Um aceno sincero de despedida. Girou o calcanhar, rodou a chave. Ao adentrar, escutou uma voz feminina desconhecida.


- Filho!


7 comentários:

  1. uhuuuuuul!
    mais um texto com continuaçao!
    *-*
    adoreeeei!
    apesar q deve ser mto tirste, viver sem amigos, soh para os estudos, e ser tao fechado assim!
    fico imaginando se eh possivel uma pessoas assim d fato existir.
    ainda fico absmada com as palavras q vc usa! daqui a pouco vou ter q ler seus contos com um dicionario do lado! *burra*
    parabeeeeeeeeens gui!
    posso jurar q por segundos ouvi o violino!
    =*********

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  2. Ah Gui está tão foda...*louca pra ler o resto*
    Hey,concordo suas palavras são ótimas,você sabe se expressar muito bem....
    ah Muito bom...
    Parabéns,Bjos

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  3. Nossa, ficou perfeito... adoro seus textos,e mais ainda quando eles tem continuação, mesmo que fique bem anciosa pra ler, e abra o seu blog todos os dias pra ver se já atuoalizou haha.
    Parabéns, beijos.

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  4. Esse promete MUITO! Quando Pedro fica entorpecido pela música de Liz foi tão natural que parece que fiquei entorpecida também...

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  5. Ain Gui. inspiradíssima
    essa historia hein?

    táa perfeita.
    Estou ansiosa para continuações.
    beijooooo

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  6. Ah sua vaca ._. escreve um livro, sério.

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