segunda-feira, 19 de abril de 2010

Murilo


O trepidar dos passos de um adulto é bem distinto aos de uma criança – isso é, se elas chegam a fazer algum barulho quando andam. Afinal, a maioria pula e corre com os pés nus... Os que usam chinelos, que se dobram em movimentos ritmados de mede-palmos, produzem um som abafado de plástico numa arritmia que denuncia a lógica tão ilógica da infância. Já o sapateado senil, de frequência inviolável, carrega a mácula da artificialidade.

Calçados novos são piores. E o preto, devidamente lustrado, contrastava com a leveza da vestimenta alva. O estatelar faiscava no firmamento marmóreo da escadaria do hospital. Horácio, cuja feição pétrea se suavizava ao longo de inúmeros suspiros, mergulhava os dedos pálidos na cabeleira grisalha como se pudesse, assim, organizar os pensamentos. As lufadas de vento erguiam o jaleco acima do quadril. Fitou a massa de um cinza escuro logo acima de si: certamente choveria.

- Doutor Horácio?

Ancorado no muro que cerceava o quarteirão, uma silhueta deplorável se entortava ao longo da extensão de uma cadeira de rodas. Mergulhados num sebo pastoso, os fios muito extensos de cabelo desciam em cascata ocultando parcialmente as órbitas profundas, margeadas por um roxo doentio. Sem se impressionar, o médico ergueu as sobrancelhas.

- Pois não?
- É que... – respirava forte, levando a mão direita ao peito como quem reúne o último fôlego restante – o controle automático da minha cadeira não está funcionando. Eu só precisava de alguém que me levasse até minha casa, que é bem ali pertinho.
- Claro, sem dúvidas. – Horácio se viu vítima de seu comumente altruísmo antes mesmo de ponderar a situação. Chegaria atrasado em casa, mas ele era o único a quem devia satisfações. Decidiu que acataria o papel social.
- Que maravilha! – dardejou, e os dentes muito grandes se abriram num sorriso de estampada melancolia. – Siga a avenida principal e eu vou te orientando. Em minutos estaremos lá.

A brisa gélida queimava a nuca. Folhetos espiralavam no ar, rasgando-o em zunidos que por sua vez rasgavam o silêncio. O lixo do dia seguinte já se acumulava. As lojas tentavam resistir. Sentiu com amargura a nostalgia que todo fim de tarde lhe trazia. Os dedos esguios conduziam com certa velocidade a cadeira motorizada pelo passeio lateral. Tantos olhares curiosos, alarmados, amedrontados, familiares... De súbito, uma pequena cratera no assoalho se pôs no trajeto, engolfando uma das rodas e quase chocando o doente ao chão. O ortopedista, num ato de exímio reflexo, segurou-o antes que caísse e acomodou-o com muita minúcia.

- Quanta falta de atenção... Mil perdões! Senhor...?
- Murilo. Não se preocupe com isso, já estatelei no chão inúmeras vezes...
- Hoje estou tão cansado que mal consigo raciocinar. Enfim, que tipo de problema você teve, Murilo?
- Poliomielite, como costumam chamar por aqui. Paralisou quase todo o meu corpo.
- Há quanto tempo?
- Doze anos.
- Hum... Mas você sabe que a vida de um cadeirante, atualmente, quase se equipara socialmente à um cidadão comum, certo?
- Não me interprete mal, doutor... Não reclamei de nada até agora e não quero uma consulta. Sou uma pessoa muito feliz, só estou louco para chegar em casa e abraçar meus filhos. A propósito, lá na próxima direita quero que você vire.

Assentiu, manobrando-o para um extenso beco. Horácio se perguntou como podia existir um lugar como aquele, tão próximo de onde trabalhava, mas que nunca vira na vida! Os entulhos se acumulavam em meio aos farrapos que os mendigos usavam para dormir, construindo um cenário que o estapeava em sua condição elevada, revelando uma realidade que ele inconscientemente ignorava. Excretas, sujeiras... Procurou desviar o olhar tímido e covarde. Viu a mão direita do portador de necessidades especiais esticando-se, solicitando em silêncio que parasse.

- Doutor... Deixe-me te perguntar uma coisinha: em sua profissão de médico você já presenciou milagres? – o tom de voz mudara, agora carregado de uma agressividade lasciva e, sobretudo, amedrontadora.
- Ah... Sou cético com essas coisas. Nunca.
- Não se preocupe, agora eu lhe concederei a honra!

Levantou-se lentamente, saboreando cada contração muscular. Boquiaberto e com as pupilas violentamente dilatadas, o médico observou atônito o desconhecido equilibrar-se sobre os dois pés como quem possuía total habilidade sobre o próprio corpo. Estralava o pescoço, gargalhando profundamente. As vibrações retumbavam no muro chapiscado e avançavam para o silêncio. Ninguém ouviria.

- O que está acontecendo? Isso por acaso é uma brincadeira? – esbravejou.
- Brincadeira, Doutor Horácio Guedes Paiva? Vou contar o que é brincadeira... Aliás! Vou contar o que é uma completa peça de teatro! Por acaso a vossa senhoria se lembra de uma paciente que veio a falecer no corredor do hospital por falta de atendimento?
- Do que você está falando? Isso não aconteceu! Ficou louco?
- LOUCO? Ela era a mãe de meus quatro filhos! Por acaso essa cadeira que eu roubei do SEU hospital parece uma miragem? – a etiqueta no estofado comprovava a verossimilhança do que Murilo dizia. – Agora eu venho, através de um julgamento abençoado por Deus, aplicar-lhe a punição que cada um daquele INFERNO de lugar merece. Que você sirva de exemplo!

Estupefato, cogitou por alguns segundos a possibilidade de estar num pesadelo. Um pesadelo onde um homem randômico empunhava uma arma, cravando em cada uma de suas pernas balas que fulguravam uma dor alucinante. Os berros estridentes de agonia e medo não condiziam com um sonho, mas ele ainda tinha fé. A fé descomunal que os céticos manifestam na iminência de morte.

Desfaleceu-se sobre a cadeira de rodas - que agora seria sua - observando o caldo escarlate se misturar à água da chuva, gotejando calmo. A silhueta de seu algoz se reduzia lentamente naquele beco infinito... Rezou para que estivesse sonhando. Mas seus passos nunca mais emitiram som.

14 comentários:

  1. Esse Murilo é do mal ein (:<

    Muito foda.

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  2. perfeito!!!!!

    nossa, adorei...quero continuação desse tbm!!!!

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  3. UAU. Simplismente, o melhor até hoje.
    Na verdade, seus contos são tão magníficos, que a cada novo que leio, tenho essa impressão..
    um vai superando o outro, e superando..e assim sucessivamente.
    Mas esse daí, poxa. PERFEITO.

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  4. Eu não li os outros (ainda) pra dizer que ese é o melhor, mas adorei! E que fantástico esse blog, adorei. Já coloquei entre minhas brisas. Apareça para um chá.

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  5. Cara, esse foi um dos melhores contos!
    Eu realmente amei...eu imagino a cara do médico na hora q ele levantou ow
    Fiz toda uma cena na minha cabeça, vc nem tem noção...
    Gui vc eh o melhor
    Qdo vc tiver fazendo seus best seller (se eh que eh assim q escreve) eu vou estar lá te apoiando e mostrando pra todos o qto vc batalhou e mereceu!
    te amo

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  6. *-*~~
    MELHOR CONTO DE TODOS!
    vc super se superou!
    AMEI
    quando o cara levantou da cadeira eu fiquei tipo " =O " n esperava, MESMO!
    e veja soh quanta descriçao q vc conseguiu atribuir aos passos simples q damos todos pos dias!
    eh pegar aquilo q nem liga ou se preocupa e dar aquele tom d importancia e beleza!
    amei demais!
    parabeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeens *-*

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  7. É curioso, e até mesmo um pouco ousado, declarar incerteza quanto ao gênero que assume nas obras e artigos que escreve. Se crônicas ou se contos, convenhamos, jovem Guilherme, simples resposta esta.
    Será também, sem sombra de dúvida, um prazer acompanhá-lo nestas empreitadas literárias, e espero um dia dispor de tempo para conversar além de discutir idéias e projetos em andamento. Até breve.

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  8. Parabéns...
    Adorei o Melhor conto...MESMO....

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  9. Cara... Isso foi magnífico!! *0*

    Meu deus, quero saber mais deste algoz Murilo! *-*

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  10. me lembrou o Murilo, professor...
    auhuahu' :)

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