Eram nos seus lábios de lodo que eu encontrava o sorvedouro daquele torpor. Um torpor de líquido azedo, de gangrena ácida. Que se alastrava por cada palmo de meu corpo. E de tremores extasiados na nuca seca. Naqueles lábios de ranhuras tantas, de digitações tamanhas - como fendas num campo virgem. De carne e carne e deveras carne rósea a ser inflamada pela chama do animal humano. E degustada e sugada até o lúmen da insanidade. Porque não havia mais nada senão aquele momento, aquele instante que alongava os segundos. Mas encurtava a vida. E creio que todos deveriam se voltar para nós dois, observando a proeminência de nossa entrega mútua à essência da qual germinamos. A semente do pecado que nos envolve em sua casca podre, as ramificações do que é errado e circula em nossas veias senis. As raízes do nosso amor que se fazia amor só no silêncio de cada beijo áspero: a traição.Ali, nos prensávamos numa quina de parede. Eu com a mão espalmada. A parede gelada. A cabeça encurvada. E a postura... A postura de completa resignação, de clemência por misericórdia. Misericórdia divina? Mas se há Deus para todos, há para os traidores. Não fora ele quem nos ascendeu ao pecado? Talvez em busca de minha própria misericórdia, então. E crispávamos nosso lábio num só nó, cego, que não avistava o fim da noite. E ainda assim faltava fôlego. Aquela secura na garganta que precede a dor. Afundei a mão direita e puxei-lhe os cabelos desgrenhados para mais desgrenha: pois eu era uma bagunça só. E talvez eu projetasse ali o meu infortúnio. Eu provava do que eu era. Eu afundava nos mares de sua intimidade para me conhecer. Aos meus limites, às feridas tantas que se esconde por sociabilidade e que são proibidas de boiar e respirar. Às cicatrizes mal feitas e latentes. Latejam rente ao ouvido na pulsação eufórica. Quero que a dor passe.
Amor... Quem virá me falar de amor? De amor puro? Quem virá falar de fidelidade para alguém que nunca foi amado de fato? Quem ousa evocar honestidade sem vestir a carapuça que é essa desgraça de corpo e de mente que me encarceram? Pois que julguem! Que gastem toda a saliva para proferir os mil júbilos de má fé! Fingirei que não me importo. Melhor, perderei mais tempo mordiscando essa boca gorda para não pensar nisso. E para provocá-los e me provocar e provocar essa organização turva que alicerça a existência que já nasce morta brincando de viva. Não sei se nasci pra conveniências, pra coisinhas pré-determinadas e regras inquestionáveis. Se um dia eu me atrelei nesses compromissos, hoje me arrependo. O que tenho não é só para uma pessoa. Há força demais dentro de mim para eu desprender numa silhueta só. Há chamas demais que me queimam para uma pessoa só me salvar. São tantas e tantas cadências. No meu passado – tantas saliências. E reticências. Há em mim um céu de covardia tão lindo. Sou covarde...
E o fim do beijo.
Eis o efeito colateral: o que antes era belo exala um cheiro enojado. Diálogos toscos, frases de prontidão. Eu quero logo é o silêncio profundo. A calmaria que a solidão dá, antes do martírio da consciência. Sentei no chão e cobri os joelhos com as mãos suadas. E a corpulência toda se reduz a uma esferinha de homem. E o suor das mãos sinto também no rosto empalidecido de um medo cru. O suor de um quente culpado. Culpado... E o celular toca:
Eu atrasei no serviço, meu bem. Em meia hora estarei em casa.

