domingo, 2 de outubro de 2011

Remetente

Meu caro Daniel,

Parece que ela dormiu (ou finge com a triste inocência de boneca que não é), então agora posso vomitar essas letras bravamente contidas nas camadas de mim que quase caem no esquecimento.

Sobre dormir. Labuta pesarosa como nunca foi! Quando os ponteiros já se cansam de anunciar o arrastar dos segundos e o sono pesa as pálpebras em sarcófagos temporários, Débora evita olhares. Seus túmulos particulares. Caixões negros de detalhes vermelhos em gotas de sangue. Vira-se para a parede e repete, noite após noite, a mesma sinfonia pétrea, calcária e inóspita: a que suspira de seus dedos retinindo incansavelmente na parede. E retinindo e retinindo... Como se escrevesse nas linhas de argamassa as palavras que não ousaria me dizer em costuras incongruentes, indecifráveis. De tecido podre. E eu me torno cúmplice do seu martírio silencioso, tocando seus ombros que me repelem em arrepios. Beijando suas costas de choro corredio. E sei que ela não deseja, que não há desejo, mas são as diligências de um casamento. Eu, o marido - o faço em busca de qualquer coisa que antagonizasse aquele silêncio crepitante de almas, em busca dessas almas talvez inscritas nas ranhuras daquelas quinas que ela desbravava mais que a mim. No fim, meu corpo padece à morte – infelizmente – temporária, temporariamente.

Dois dias atrás percebi na sua silhueta agora esguia e sem vida o impulso desesperador de quem não suporta ver os firmamentos cederem. Agarrou-me com a ferocidade (e o fedor) de um animal e cravejou as unhas longas no meu pescoço. Roçou a língua áspera no meu queixo e eis as primeiras palavras proferidas naquelas noites de tortura: pediu, no tom monocórdio de quem implora, que a penetrasse. Animalesca como nunca outrora. Os pudores são detalhes esquecidos pra quem fora esquecida pelos detalhes. Eu sou menos que isso. Não reagi, observando-a patética na tentativa de se despir, desajeitada, descompassada, fazendo nós nas próprias vestes e irrompendo em lágrimas ao se dar conta de que já não há mais firmamento. Abaixo de nós um abismo que engole tudo, e nada mais. Senão o meu toque frio e indesejado.

O telefone bem próximo ao abajur e não há ninguém do outro lado. Amigos? Nenhum. E essa culpa que ela deposita no arquejo dos meus ombros talvez eu não seja capaz de diluir. Sozinho assim. Nasci de um ventre com pouca vontade, e minha relação com a culpa sempre fora de maiores faíscas. A vida sempre atrelada à culpa de viver. E há na figura masculina essa responsabilidade pela integridade de sua prole, e talvez os gêmeos sucumbiram porque minha essência não era boa o suficiente. Ou pelos pecados dessa vida e de outras, pelo bel azar ou macumba ou olho gordo ou não sei. As respostas são várias e as perguntas, infinitas. É um presente de Deus que eu não compreendia, ousaram me dizer. Podia sentir a pulsação na garganta de Débora pela vontade de esbravejar pros meus ouvidos e para os vizinhos que a razão da hecatombe toda sou eu. Mas esse mesmo Deus de intenções misteriosas pôs no meu quarto essa mulher tão mergulhada na piedade de si mesma! Eu também teria o que vociferar, e ela não estava disposta a ouvir. Esse contrato silencioso nos silenciou.

Essa ideia em tormenta que turbilhona aqui e ali e quer virar verdade, mas é repelida. Inutilmente, pois já é a verdade desde que germinou: não sinto tristeza pelas crianças. Nem escassas fagulhas nos cantos mais obscuros de mim - certeza, pois procurei por longas horas de auto depreciação, durante chuvas extensas salpicando a janela... Sem sucesso. Afinal, morreram antes de existir. Nenhuma dor. Talvez tenhamos poupado aflições tantas! Ou são meros argumentos pra justificar minha mesquinhez? Ainda assim, não encontro no baú de mim lágrimas para homenageá-las. Mas lágrimas por essa solidão intrínseca que devora o mundo e além, lágrimas para os olhares piedosos, que julgam em palavras felpudas e também lascivas. Pelas vontades que evaporaram no poço raso que nos tornamos e por essa figura putrefata que me acompanha como uma maldição nas noites de comum zelo. Parca polidez das ocasiões sociais, segurando a mão dela na união perfeita de casal que não somos e jamais seremos, corrói a sanidade limite com a qual redijo.

Sou um tecelão de poucas linhas, um escrivão de palavras curtas e interrompidas por muitas vírgulas. Minha música é a melodia sem notas que compõe o silêncio e meus episódios de vida são quadros borrados por poucas cores. E cores sem vida. Meu sorriso é na fração inexistente do imediato e a dor é eterna, e a única a me manter firme nos dois pés fraquejados. A crueldade existe, enovelando cada palavra dessa cartilha, e sou eu.

Eu os culpo e os odeio, estes filhos que antes de nascer já tiraram tudo de mim. Escarro feito, assim termino.

Perdoe-me, se for possível.

Daniel.

9 comentários:

  1. mergulhou muito fundo na cabeça do personagem... vc descreve tão bem o estado mental da pessoa que parece impossível essa pessoa não existir.

    parabéns gui! ^^
    cada vez melhor o/

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  2. Nossaaaaaaaaaaaaa *_________*
    Muito legal a ideia de escrever uma carta para si mesmo. É interessante acompanhar a carta e chegar no final e perceber que é nada mais que um despejo do íntimo. Adorei a construção de repúdio, e idéias brilhantes como a das crianças que não nasceram.
    MENINAAAAAAA hehee
    TUDO DIVINO(polis) heuhe
    abraçooooooooooo
    quando volto para ler um conto seu me recordo como escreve bem e profissionalmente,
    parabéns!!!!
    =DDDDDDD

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  3. Se um dia eu conseguir colocar tanta emoção e realidade nas descrições como você, me sentirei a melhor escritora do mundo. Perfeito!

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  4. conto intenso, como tudo o que escreve. capta bem o clima que quer passar. parece que vive o conto antes de escrevê-lo.. e durante, em nossa leitura, somos sugados para dentro dele. particularmente, adorei as metáforas da melodia do silêncio e da fração do imediato =))

    aquele abrax!

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  5. Muitoooooo bomm. Me identifiquei com uma parte ahahua.

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  6. Amo esse jeito profundo e, até certo ponto, melancólico de escrever. Quanta originalidade. Quanto talento.
    E quão bom é mergulhar nessas palavras e esquecer um pouco da realidade.

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  7. Suas palavras têm tanta força que ferem. Profundo.

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  8. Escreve bem, mas há muita coisa desnecessário em seus textos. Nunca ouviu falar nessa frase?

    "O mais difícil não é escrever muito: é dizer tudo, escrevendo pouco."

    Ela diz tudo.

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  9. Seus textos mostram essa inquietude de que você fala em seu perfil. E você sabe usá-la de uma maneira criativa.

    Um abraço.

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