Quando bateram na porta eu estava fazendo qualquer coisa muito humana. A última coisa humana. Meus olhos não puderam evitar o esbugalhar estupefato quando me deparei com um extraterrestre bem verdinho, com antenas pendulares e um sorriso simpático. Através de uma conexão cósmica sobrenatural, entendi suas palavras como se saíssem da minha boca e reverberassem nela mesma:
– Você foi escolhida para me provar que eu não devo destruir a humanidade. Com licença...
Anuí – o que mais poderia fazer? Meu agora hóspede raspou os pés (de três dedos apenas) no tapete sujo, com uma polidez galante. A sala de estar que dava para a porta de entrada não poderia estar mais balburdiada, com todas aquelas roupas amarrotadas reunidas aos montes no sofá. Brinquedos das crianças em todos os cantos e migalhas da janta de ontem salpicando as quinas. Suas órbitas amarelas giravam em todas as direções daquela decoração atípica e meu estômago gelava. Não era um cartão postal nobre sobre as maravilhas da humanidade.
– Eu acabei de preparar o café, você aceita?
– Sim.
Bebeu através de um sugador que nasceu onde deveria ser a boca, algo que me lembrou um desentupidor de pia. Quando o café mergulhou nele pela primeira vez, foi como se uma corrente elétrica tímida caminhasse pelo seu rosto. E veio depois um esboço de sorriso. Tentei não encará-lo, concentrando-me nas xícaras vazias da pia, mas ele parecia bastante à vontade. Arredou-me com seu quadril largo, lavou toda a louça e repetiu o café até não haver mais café. E então lavou tudo novamente.
– Logo devo começar a fazer o almoço, se você quiser me ajudar a preparar...
– Não posso. Já estou de saída...
– De saída? Mas... Você avaliou a sobrevivência do mundo nessa visita tão rápida?
– Claro que não! Esse é só um encontro de rotina, voltarei quando a senhora estiver dormindo.
E ele então desapareceu numa constrição completa do seu corpo até mais nada existir, uma implosão silenciosa.
Busquei os filhos na creche para que pudessem sujar toda a casa com a janta requentada. Então vieram para dormir na minha cama, a meu chamado. Não era costumeiro, embora elas sempre insistissem, todos as noites, incansavelmente. Mas a candura das crianças poderia significar clemência e essa covardia toda poderia ser minha salvaguarda.
E quando o gosto melado e ébrio do sonho escorreu pelo canto da boca e fez poça no travesseiro, ele estava lá, sentado numa cadeira tosca sobre a maior planície e a mais verde da Terra, com esse enorme cobertor de gramíneas que irritava os pés sonâmbulos. Quase camuflava, o E.T, enquanto acariciava as próprias antenas numa despreocupação turista. Um punhado de mil ou dois mil pássaros brancos de todas as espécies sobrevoava nossas cabeças como espectadores aflitos. Tampavam o céu. E os dedos do sol, os que não morriam ali, escapavam por frestas mínimas entre as ranhuras das aves, desenhando círculos esparsos no firmamento. Plumas choviam sobre o mundo e eu podia senti-las arrepiando meu corpo notívago.
– Bem, é agora. Prove o valor dos homens.
E algo dentro da minha mente já sabia o que fazer, um processamento de comandos e ritmos e movimentos que talvez estivessem gravados em mim desde o meu nascimento para que eu executasse ali, naquele momento fatídico. Onde o destino seria subjugado.
Acomodei-me na minha cadeira igualmente tosca e materializei uma harpa, a maior que eu consegui. E quando ela surgiu sua beleza paralisou tudo. O universo cravejou ali seus olhos. De sua ponta mais distante duas grandes asas de cobre planavam, e as plumas pararam de precipitar, medrosas. Suas curvas eram de simetria perfeita, marmórea e de brilho tilintando. Apologética. As quarenta e seis cordas paralelas eram delgadas beirando o invisível. Uma bela criação humana, ele haveria de perceber. Talvez a única, a arte. Todo o resto corrompe essências. Portanto eu me faria ser ouvida pela expressão do que eu era em tons desordenados. Os raios solares encontraram espaço e se acomodaram como ouvintes educados. Mergulhei no vazio de mim.
Quando os dedos dançaram nas cerdas e vergastaram toda a sua extensão, o silêncio foi brutalmente rasgado, docilmente substituído. A canção era de um lúgubre agitado, como uma cachoeira que ferve. Retumbando em pedras grandes e turbilhonando por onde passa. Era imperfeita, como eu e todos. Um vitral com peças faltantes. Tropeçava e levantava em harmonias mais fortes e por vezes trovejava, sem calma, naquela planície desertada. Para enfim convergir numa brisa litorânea e perene. O alienígena nunca tinha visto cachoeiras ferventes e tinha medo de descargas luminosas, eu podia ver na sua feição. A música era aquela respiração contida da pessoa que ama, mas teme, porque respirar é permitir que o tempo passe. E depois dele vem o fim... O fim que está em tudo, renegado pelos amantes. Que leva as mãos de tragédia a tampar nariz e boca.
E quando todas as incertezas humanas combinadas foram canalizadas e aspergidas ao instrumento, horas se passaram demoradas, e minhas mãos resistiam pouco naquela luta pra provar o eterno. Alguns filetes vermelhos pintaram o antes quase invisível, eis a pele frágil. E o sangue tingia tudo e o plumeiro era agora escarlate e caía novamente de terror. Mas os dedos se mantinham. Árvores vermelhas germinaram e tão logo germinaram suas folhas padeceram, e outras germinaram. Sulcos e fendas abriram no assoalho em direção ao infinito e os tremores abissais modelavam vales e montanhas e cumeeiras. Tudo era uma viagem ao caos, e depois um retorno ao nada para começar de novo. Rumo ao silêncio das coisas planas. E ele sentado ali.
As notas exauridas, dissecadas e retorcidas, dramatizadas pelo meu âmago que nada tem a ver com o que é simples, eternizaram-se no longínquo poder da memória, núcleo dos homens e dos pesares.
O sonho terminou de rompante, como os sonhos fazem. No fim, ele voltou no dia seguinte e pediu mais café, fez sua última implosão, voltando satisfeito para seu planeta.
Adorei! Um conto muito divertido e gostoso de ler, a descrição do alienígena é única, quase de um sonho em que se tem pouco ou nenhum medo e só sobra a imaginação e o percurso. Uma escolha boa ser a arte o que pode ser melhor dos humanos, além de ser verdade, permite despertar outros todos sentimentos que poderiam ser ditos os mais belos da humanidade.
ResponderExcluirAbraçoooooooo! =DDDDDD
Que bonitoo!! Não esperava que o conto do ET fosse bonitim ^^
ResponderExcluirE tem música \o/
Gostei muito irmão, a cena da harpa ficou bem bonita =)
Beleza das palavras e criatividade fantásticas. Parabéns.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirinteressantíssimo esse episódio da harpa. estudando teatro musical, uma das coisas que ouvi foi que, quando falar não é suficiente, surge a melodia. e talvez a melodia da harpa pudesse dizer aquilo que fosse insuficiente pra ser traduzido em palavras, e é este o grande poder da música... e o engraçado é que com a sua escrita a melodia vinha na minha cabeça, junto com imagens oníricas, como se eu visualisasse o sonho da personagem!
ResponderExcluirrapaz, estou impressionado com a forma como escrever, como narras os fatos e coloca poesia neles. é uma escrita rara, preciosa! gostei mto! grande abraço e meus parabéns!
*escreves
ResponderExcluirE ai arte?:p
ResponderExcluirOi,amiguinho(achei legal seu blog),visite/siga o Blog do XANDRO
(meu blog para retribuir o carinho)vc vai gostar!;)
http://blogdoxandro.blogspot.com/